Por Marcus Arboés
Riscos no futebol é um tema que sempre vai e volta nos últimos anos do debate no futebol. Nos últimos eventos, o empate entre Arsenal e Manchester City e uma fala da Milly Lacombe a respeito do “Guardiolismo” apontaram um fato no futebol: o hoje, entendido como melhor futebol do mundo, é um jogo de poucos riscos, mas isso é algo bom para o futebol? Há um culpado?
Antes de discutir tudo isso, vamos contextualizar do que estamos falando. Imagine um passe dado na ponta esquerda, o atacante domina, recebe em uma situação onde tem o lateral adversário na sua marcação, com um corredor a ser explorado nas costas desse defensor. Ele carrega a bola para o fundo e é travado. No lugar de arriscar um drible, ele prefere girar a bola para, taticamente, abrir espaço.
Isso é errado? Não, mas mostra um fato: o jogador optou por não arriscar. Um drible arriscado, um chute arriscado com pouco ângulo, uma tabela no campo de defesa, um passe de ruptura, quebrando linhas de marcação, na saída de bola. A cada dia que passa, eu, particularmente, vejo menos isso acontecendo. E, quando acontece, é sob condições de menos risco.
Por que se arrisca menos?
Essa resposta parece óbvia a primeira vista: se você arrisca menos, erra menos. Se erra menos, tem mais chances de vencer. E o futebol também é sobre vencer. As narrativas, os prêmios partem da lógica da competitividade de haver um vencedor e sempre foi assim, mas não necessariamente os times em outras fases anteriores do esporte arriscavam menos.
A evolução tecnológica, técnica, física e tática do futebol é uma verdade inquestionável, mas nem toda evolução tratá só benefícios, porque nem futebol e nem a vida é “preto no branco”, “melhorou ou piorou”. Essa evolução do jogo trouxe pontos muito positivos para a profissionalização e equilíbrio das competições, mas em contraponto carrega problemas em outros pontos.
Isso, porque o mundo ainda consome o futebol com base nas narrativas e nas respostas prontas: “Guardiola venceu, a Espanha venceu, o futebol europeu é superior taticamente e o que fazemos aqui é errado”. Já foi batido na tecla aqui em vários textos de outros colegas de como algumas ferramentas foram universalizadas e aquilo que foi narrativamente colocado como superior passou a ser copiado e reproduzido.
Jogo de posição, ataque posicional, marcação por zona, periodização tática, tiki taka, supervalorização das respostas táticas, supervalorização das estatísticas… essas ferramentas do jogo foram importadas em diversos locais diferentes do mundo como resposta mais evoluídas e corretas, superiores e mais modernas.
Essas ferramentas, por si só, não têm nada de errado, mas todas têm ônus e bônus na prática, umas mais do que outras e, claro, sempre dependendo dos contextos em que estão inseridas. Mas os grande pontos em comum entre elas são: narrativa de modernidade superior; elas condicionarem mais controle do treinador sobre as dinâmicas do jogo, sobre o jogador e mais padronização das individualidades; e, principalmente: minimizam mais os erros.
Não significa que Guardiola e seus times sejam errados por fazer isso, afinal, Doku e Foden arriscam e bem. É só uma das várias maneiras de chegar ao gol e vencer, mas que se forem aplicados por aí de forma cega e descontextualizada, vai gerar automatismos e imposições a todos os tipos diferentes de jogadores e de equipes.
Como isso se relaciona com o risco? O jogo e o jogador acabam condicionados a evitar erros. Alguns são tão condicionados pela padronização que passam a ter medo de errar. Acertam 95% dos passes nos jogos, mas todos são passes seguros, enquanto um Ganso da vida acerta isso ou mais tentando sempre algo fora da curva.
E o que há de bom em correr riscos?
Dentro de um futebol a cada dia mais tático e mais padronizado, o drible arriscado, o passe arriscado, a jogada arriscada ou até a ideia, desmoronam parcialmente aquilo que está bem estruturado. Quando um risco dá certo, a estrutura se abala para cima ou para baixo. É um impacto primeiro mental, depois tático.
Jogar no contra-ataque tem ônus e bônus;
Jogar todo no campo adversário tem ônus e bônus;
Jogo funcional e posicional têm ônus e bônus;
Um jogo com mais acertos e menos riscos tem ônus e bônus;
Tudo no futebol tem ônus e bônus, inclusive o risco.
É só uma forma como todas as outra de chegar ao gol e vencer, a priori, e não é pior ou melhor que nenhuma outra. O Fluminense de Diniz, por exemplo, tem um estilo de jogo muito arriscado. Filosoficamente, ele trabalha em cima da mentalidade de auto confiança do jogador para correr riscos para ter grandes ganhos.
A saída de bola é arriscada, o time vai acabar errando, mas muitos jogadores potencializaram técnicamente e mentalmente suas características e conseguiram viver um auge no começo de 2023 e serem campeões da Libertadores pela primeira vez na história do time.
Isso não significa necessariamente que todo treinador adepto de um jogo funcional concorde com a filosofia de correr mais riscos no futebol, afinal, o ataque “aposicional” é só mais uma ferramenta, mas ela condiciona maior liberdade e autonomia até pela forma como se estrutura no campo, logo, maior auto confiança (algo que pode ser construído em qualquer cenário).
Vejam, por exemplo, essa fala do Renato Gaúcho sobre o estilo de jogo do Diniz no Fluminense:
“Eu sou totalmente contra o estilo de jogo dele. É uma roleta-russa. Saiu jogando bonito, todo mundo aplaude. Errou, é gol. Esse risco eu não corro, jamais vou correr. Do jeito que o time dele joga, o adversário sempre vai armar uma arapuca para roubar essa bola. Isso tem acontecido bastante e eles têm tomado gol ou sofrido ameaças. Fez e deu certo, é bonito. Errou? Perdeu o jogo”
Quando diz isso, Renato fala muito mais da saída de bola do Fluminense, conhecida como a mais arriscada do Brasil e talvez do mundo inteiro, que tira suspiro do jogador. Isso, porque Fernando Diniz é um pouco mais extremo, mas isso faz com que ele consiga “melhorar o jogador, melhorar a pessoa”.
E essa é a filosofia por trás de dar maior liberdade para arriscar. Errar é humano, todo jogador vai errar. Alguns jogadores irão errar mais e outros menos. Nem todo time no mundo vai ter condições estruturais, técnicas e de ter um Guardiola no comando para ser tão eficiente nos acertos.
O erro também é uma faca de dois gumes. Você pode se sentir mais confiante por saber que, se errar, pode recuperar a bola e tentar o arriscado de novo. Ao mesmo tempo, pode errar e se sentir para baixo. Só que no futebol e na vida, erramos mais do que acertamos.
Então ajudar os jogadores a lidar com os erros de forma sadia e a tentarem arriscar mais, fazer aquilo em que acreditam, humaniza mais o atleta.
Quando se fala de desumanização em inibir o risco, é isso. Por um futebol contextualizado, onde cada indivíduo é respeitado como ser humano e não como um reprodutor de números, vitórias e títulos. Por mais riscos no futebol.
Antes de mais nada, parabéns pelo texto e pela forma como descreveu sua ideia
Porém, tenho uma ideia um pouco diferente e vou explicar o porquê. Hoje em dia os times são especialistas em contra atacar. Os setores de análise de desempenho são muito avançados e há razoável informações sobre onde o rival é frágil, em que situações ele é frágil, o que deixa esses momentos ainda mais perigosos. Por exemplo, no clube que atuo, estou estagiando, os rapazes da análise verificaram o seguinte: quando a equipe trocava menos de 15 passes no terço final, sofria mais transições. Quando trocava 22 passes, diminuía por algum motivo o número das transições na metade. Essa correlação levou o treinador a mudar algumas tendências ofensivas e a equipe passou a estar mais segura para atacar. O porquê disso é resposta do técnico, mas há uma serie de questões por trás que são relevantes, não é algo que possa ser reduzido a um fragmento de ideia de ‘o jogador não pode arriscar’. Uma perda gera muitos problemas e cada time conta com 2 ou 3 homens que com 50 metros a frente são absolutamente mortais! Muitos falam que o City foi excessivamente automatizado contra o Madrid. Mas eu pergunto: quantas equipes conseguem enfiar o Madrid dentro da área por 45 minutos sem conceder a Vini, Rodrygo e Jude transições? O Madrid mereceu passar, não estou dizendo o inverso. Mas quanto terminaria esse jogo se o Madrid tivesse tido mais recuperações?
Além disso, a ação individual está inserida dentro de um contexto que envolve rivais, espaço, companheiros, bola. Logo, quanto melhor a equipe conseguir criar cenários onde há vantagens respectivas a esses elementos, melhor pro jogador, até pra ele poder arriscar sob condições melhores. Do que adianta querer arriscar com 3 rivais em cima? Quantas vezes isso vai dar certo e quantas vezes vai dar errado?
Vou pegar um exemplo simples, de uma equipe que você citou: Fluminense
O André corre riscos quando recebe do Fábio dentro da área e busca conduzir na frente do rival? Sim! É um risco? Sim. Nenhum time no mundo faz isso. Mas como o Fluminense mitiga esse risco? Com uma série de automatismos, ou ‘condicionamentos padronizados’ como você colocou. É o time na América do Sul que melhor o faz e está entre os 4 do mundo que melhor buscam o 3° homem. Pra isso, deve haver automatismos e coordenação. Não pode ficar a cargo da interpretação pessoal do atleta. Quem pensa que a saída do Flu não é maquinada está cometendo um grande erro. Se não um pensa A, o outro pensa B, e não há benefício coletivo nessa divergência. Quando André vem de frente, Ganso baixa e busca Marcelo como 3°, às vezes Martinelli, depende. Só que antes de isso ocorrer, sabe exatamente onde e como deve estar pra ter mais vantagem sobre o rival. Os jogadores se reconhecem dentro desse automatismo. 1° homem, 2° homem, 3°..podemos falar de outras situações que exemplificam mas essa é a mais basica. Por isso, eu acho estranho de certa forma dizer que o jogador está condicionado pela padronização e isso se opõe ao risco. Não é o caso! Não há sentido em dizer que a saída do Flu é de riscos, e que isso pressupõe maior liberdade ao jogador, e criticar o condicionamento padronizado; o que mais há na saída do Flu são padrões: de passe, de recepções, de movimentos, pequenas estruturas de superioridade. Todo esse risco que o Diniz invoca é muito treinado. A última coisa que tem ali é desordem. Há sim, no sentido geral, diferentes padrões em relação ao JDP, mas eles continuam existindo, só de forma diferente, com outra concentração de jogadores, outras distâncias, etc.
Muito boa a experiência que você trouxe e acredito que há algo que falta no texto publicado que abra margem para essa interpretação. Toda ação tem o seu risco e todo mecanismo que ajude a mitigar riscos de qualquer ação que vá se ter, será bem-vindo. O risco ao qual me refiro é o de uma ação de jogo que, independentemente do contexto, seja mais arriscada que outra. Um passe progressivo numa saída de bola como a do Fluminense é mais arriscado que uma dinâmica de terceiro homem numa saída mais posicional, por exemplo. Independente do quanto se treine uma automatização de ações, algumas delas que oferecem mais riscos do que outras, algumas irão te dar mais progressão e mais espaço do que outras, algumas irão expor mais teu time do que outras.
A automatização, em si, não é um problema e nem aquilo que está sendo questionado na proposta do texto. Ela é uma ferramenta utilizada dentro de uma cultura de “garantia de que erros pouco aconteçam”, assim como o ataque posicional, como a marcação por zona, como a metodologia sistemica. A grande questão do texto é o ponto de como o erro está sendo visto, trabalhado e como a autoconfiança em relação a eles é trabalhada. O exemplo do Fluminense serve para elucidar que, para fazer uma saída arriscada como aquela, precisa de autoconfiança, e isso vem com o estímulo do treino, tem muita automatização de processos de jogo ali, como você disse, mas autoconfiança também. Depende mais do “como” do que da ferramenta utilizada.
Muito obrigado pela contribuição e pelo excelente comentário!