A eliminação precoce da Alemanha, que acabou caindo na fase de grupos da Copa do Mundo pela segunda vez seguida, foi bastante sintomática e expôs os problemas que a Mannschaft enfrenta desde o ciclo para a Copa da Rússia. As transições defensivas problemáticas de um time que empilha jogadores à frente da linha da bola para atacar e acaba se desprotegendo atrás, além de uma falta de contundência da equipe em ambas as áreas, acabou custando (mais) um mata-mata de Copa do Mundo para os alemães.
No entanto, apesar de escancarar os problemas, a Copa do Qatar também mostrou por que Hans-Dieter “Hansi” Flick é uma das grandes referências em organização ofensiva no futebol mundial. O treinador já mostrava sua característica ultraofensiva no Bayern de Munique, que sob Flick ganhou a Champions League com recorde de gols marcados (goleando o Barcelona por 8 a 2) e conquistou a Bundesliga de 19/20 marcando 100 gols, apenas 1 a menos do que o recorde histórico do campeonato (que pertence ao Bayern de Gerd Müller, nos anos 70).
A Alemanha foi líder em praticamente todos os indicadores ofensivos durante a fase de grupos. Dentre as 32 seleções, a Mannschaft liderou em finalizações, finalizações a gol e grandes chances criadas. A Alemanha finalizou 69 vezes (26 contra o Japão, 11 contra a Espanha e 32 contra a Costa Rica) e criou 17 grandes chances. Além disso, manteve uma média de posse de bola de 59%.
Uma estatística que resume bastante o poderio ofensivo da Alemanha é a de gols esperados (ou xG, sigla em inglês para expected goals). Essa estatística avalia a “probabilidade de um chute acertar um alvo e/ou virar um gol”. Ela mapeia a posição e condição de uma finalização e calcula sua probabilidade de virar um gol, dando-a um valor de gol esperado (xG) através de um número de 0 a 1. Assim, os gols esperados avaliam a qualidade dos chutes de uma partida e, a partir disso, calculam quantos gols “deveriam” ter sido marcados.
A Alemanha acumulou, ao longo da fase de grupos, assustadores 11,12xG, sendo 3,53xG contra o Japão, 1,24xG contra a Espanha e 6,35xG contra a Costa Rica. Em todas as suas partidas, a Alemanha superou seu oponente em gols esperados e, somente no jogo contra a Costa Rica, criou mais xG que 29 das 32 seleções em seus 3 jogos na fase de grupos. Para mensurar o tamanho do poder ofensivo da Alemanha de Flick a partir dos gols esperados, deixo aqui algumas comparações: a Alemanha acumulou 3,15xG contra o Brasil no 7 a 1, o Bayern acumulou 5,59xG no 8 a 2 contra o Barcelona e a Espanha acumulou 3,79xG no 7 a 0 sobre a Costa Rica. No final da Copa do Mundo, os 11,12 gols esperados da Alemanha a deixaram em terceiro lugar no quesito, atrás apenas das finalistas França (14,38xG) e Argentina (16,36xG). Ambas disputaram 7 jogos (com 2 prorrogações para a Argentina e 1 para a França), enquanto a Alemanha jogou apenas 3.
Os problemas defensivos dos times de Hansi Flick não são segredo algum, e não é minha intenção varrê-los para debaixo do tapete. Eles existem, são graves e custaram uma participação no mata-mata para a Seleção Alemã. No entanto, é fácil perceber que, se Flick contasse com uma contundência ligeiramente maior de seus atacantes na hora de finalizar, a Alemanha com certeza ainda estaria na Copa do Mundo. A demora da Mannschaft em matar os jogos, mesmo produzindo tanto, foi seu principal calcanhar de Aquiles. Ficar no mundo do “se” no futebol é pouco produtivo, mas se a Alemanha conseguisse converter melhor o que criou no primeiro tempo do jogo contra o Japão, dificilmente levaria a virada na segunda etapa e provavelmente passaria de fase. Além disso, se a Alemanha convertesse o que criou no segundo tempo do jogo contra a Espanha, talvez conseguisse virar e melhorar sua situação no grupo. Por fim, se a Alemanha tivesse, no jogo contra a Costa Rica, a mesma eficácia que o Bayern do próprio Flick teve no 8 a 2 sobre o Barcelona, talvez o time passasse a Espanha no saldo de gols e prosseguisse para o mata-mata. O fato é que nada disso aconteceu, mas Hansi Flick deu todas as armas a seus jogadores de ataque para que acontecesse. Ele, em três cenários diferentes, usou três estratégias diferentes e teve sucesso em cada uma delas. Aqui, vou destrinchar as distintas organizações ofensivas da Alemanha de Hansi Flick na Copa do Mundo.
Subjugar seu adversário a partir da posse: a mistura posicional/funcional contra o Japão
A estreia da Alemanha na Copa de 2022 não era nem um pouco cômoda, embora talvez parecesse à primeira vista (ao final da partida, percebeu-se que foi ainda mais incômoda do que o previsto). O Japão tinha um time muito jovem com uma proposta muito clara: os japoneses não faziam questão de manter a posse de bola por períodos longos, mas isso não significava que eles iam se trancar em seu próprio campo, enfiando 10 jogadores dentro da área e aguardando uma chance de contragolpe cair do céu. Pelo contrário: a marcação japonesa era alta, agressiva e digna de um time que quer dar as cartas do jogo.
O Japão era, talvez, o pior encaixe de jogo que a Alemanha poderia enfrentar. Os japoneses estavam dispostos a morder os alemães o tempo todo e deixá-los desconfortáveis com a posse em todo momento para que a bola fosse recuperada nas faixas mais perigosas do campo. Bola recuperada, a instrução era clara: os japoneses deveriam disparar contra a Alemanha, aproveitando que a Mannschaft ataca com muitos jogadores e acaba deixando espaços nas costas da defesa. Para isso, o Japão não adiantava a pressão até os zagueiros: preferia dar um passo para trás e cercar os volantes, principalmente Kimmich. O jogador do Bayern é um autêntico “motorzinho”, que arma o time desde trás e dita o ritmo do jogo. Tirando-o do jogo, a Alemanha já sofreria o primeiro baque.
Assim, a Alemanha tinha um cenário claro pela frente: teria que encarar, a partir da posse, um adversário que não a deixaria confortável momento nenhum enquanto tivesse a bola.
1. A saída de bola em 1+3+2
A Alemanha saía jogando a partir de uma estrutura de 1+3+2: o primeiro passador era o goleiro Neuer, muito ativo nessa fase inicial de disitribuição. À frente do camisa 1, a Alemanha formava um trio de zaga: o lateral-esquerdo David Raum se lançava ao ataque, enquanto o lateral-direito Niklas Süle, zagueiro de ofício, se juntava a Rüdiger e Schlotterbeck para compor um trio de defensores. À frente dos 3 zagueiros, Kimmich e Gündoğan formavam uma dupla de volantes.
A saída de bola da Alemanha começava a indicar o plano de Flick para avançar em campo: para fazer a bola progredir, o time deveria se estruturar em um ataque posicional. A ideia era que a Mannschaft precisava controlar os espaços do campo, espalhando seus jogadores e, assim, dificultando a marcação alta do Japão, que precisaria cobrir um espaço muito grande para cercar a Alemanha. Por isso, a saída de bola alemã era extremamente definida no 1+3+2: nenhum outro jogador de linha deveria descer para se apresentar, pois isso comprometeria o posicionamento dos atacantes e a ocupação dos espaços. Apenas Müller, esporadicamente, baixava para virar uma opção de passe, mas mesmo assim ele continuava na faixa de campo destinada a ele.
2. Progredindo com a bola a partir de um 3–2–5 posicional para manipular os espaços
À medida que a bola progredia e a Alemanha ganhava metros, ficava clara a estrutura que Flick escolheu para o jogo: ele alinhou a Mannschaft em um 3–2–5 posicional. A estrutura 3+2 na saída de bola continuava, com o trio de zaga logo atrás da dupla de volantes. No ataque, Gnabry e David Raum abriam bastante o campo, enquanto Havertz, Musiala e Müller se posicionavam por dentro. Havertz era um falso 9: ele partia da posição de centroavante, mas frequentemente recuava e circulava pelo ataque para tirar a referência dos zagueiros. Müller e Musiala atacavam os “meio-espaços” (ou half-spaces, em inglês), faixa do campo entre o lado do campo e o centro.
Com essa estrutura, a Alemanha causava sérias dúvidas ao Japão, que se defendeu em uma linha de 4 por todo o primeiro tempo. Os alemães tinham uma linha de 5 atacantes para atacar 4 defensores, que ficavam em dúvida: se os laterais japoneses marcarem Gnabry e Raum, as faixas centrais ficarão esvaziadas e Musiala, Müller e Havertz terão espaço. No entanto, se os laterais japoneses fecharem para marcar Müller e Musiala, Gnabry e Raum ficarão livres pelos flancos. Assim, partindo de sua estrutura posicional, a Alemanha manipulava os espaços para criar dúvidas nos japoneses e abrir buracos na defesa.
3. Ataque funcional e futebol associativo no campo de ataque
Quando a Alemanha consegue se instalar no campo de ataque, Flick muda radicalmente a organização ofensiva do time. Enquanto a Mannschaft usa uma rígida e bem definida estrutura posicional para sair jogando, percorrer metros, progredir com a bola e avançar em campo, a abordagem muda radicalmente quando a tarefa é ocupar o campo de ataque e criar chances de gol. Para isso, Flick parte para uma estrutura funcional e um futebol altamente associativo, usando aglomerações no setor da bola e assimetria para atacar o Japão.
Aqui, a ideia de Flick é concentrar suas peças ofensivas, dando-as bastante liberdade para se associarem, trocarem de posição, tabelarem, se desmarcarem e infiltrarem, algumas das principais especialidades dos meias que a Alemanha escalou, como Haverz, Musiala e Müller. Essa proximidade dos jogadores potencializa suas interações e dificulta muito a marcação do adversário, que precisa se desdobrar para bloquear tantas linhas de passe e jogadores de ataque.
Além disso, ao concentrar seis, sete e às vezes até oito jogadores em uma mesma faixa de campo, o adversário é forçado a arrastar seu bloco defensivo para aquele setor. Desse modo, a faixa de campo oposta naturalmente fica mais vazia, e um jogador que estiver bem posicionado nesse lugar esvaziado pode ser acionado em uma inversão para aproveitar esse espaço. É a ideia de lado forte e lado fraco, tão comum no futebol funcional: concentro muitos jogadores em um setor do campo, formando o lado forte, e ataco o setor esvaziado (lado fraco) em uma inversão.
Somente no primeiro tempo, a Alemanha teve 81% da posse de bola, finalizou 14 vezes e criou 2 grandes chances, além de ter sofrido apenas um chute: um verdadeiro monólogo. Os alemães tomaram conta da bola e esbanjaram seu poder ofensivo, além de não cederem rigorosamente nada ao Japão. Mesmo no segundo tempo, quando o nível da Alemanha caiu e os japoneses cresceram no jogo, o time de Flick ainda conseguiu finalizar mais 12 vezes e criar mais 3 grandes chances, mantendo 66% da posse de bola.
Avançando em uma estrutura posicional e ocupando o campo de ataque em uma organização funcional, a Alemanha mesclou os dois principais modos de se atacar com perfeição, e não saiu de campo com um placar elástico pois acabou tropeçando na falta de efetividade dos próprios atacantes. Assim, o time acabou abrindo uma brecha para tomar a virada do Japão, mas ao assistir o jogo, a sensação que ficou é que a Alemanha teve o resultado nas mãos por muito tempo. Por mais culpa dos jogadores que de Flick, a Mannschaft deixou-o escapar.
Retorno às raízes: pressão, gegenpressing e contra-ataque contra a Espanha
Contra a Espanha, a Alemanha encarava um cenário radicalmente diferente do que contra o Japão. Além de enfrentar a seleção que seria, em tese, sua principal adversária na luta pela liderança do grupo, a Alemanha encontrava um time espanhol altamente confiante. Na rodada anterior, a Espanha tinha exibido um futebol irretocável e, jogando a partir do Jogo de Posição, goleado a Costa Rica por incríveis 7 a 0.
Flick sabia que a Espanha de Luis Enrique era um time praticante do Jogo de Posição, com princípios ofensivos muito influenciados pelo Barcelona do Guardiola. Assim, o adversário da Alemanha queria ter a bola a todo custo e manter a posse por longos períodos de tempo. Frente a isso, Flick não quis brigar com a Espanha para dominar a bola e armou uma estratégia radicalmente diferente da usada contra o Japão.
Para enfrentar a Espanha, Flick voltou quase 20 anos no passado, quando o futebol alemão se desenvolvia sob forte influência de Ralf Rangnick. Aqui, os times da Alemanha se destacavam pela agressividade: marcavam com uma linha alta e de forma muito agressiva para que, ao recuperar a bola, atropelassem seus adversários em um contragolpe. Além disso, eram equipes com uma rápida reação ao perder a bola, saltando para pressionar o oponente e recuperar a posse o mais rápido possível. Para enfrentar a Espanha, Flick abriu mão da posse de bola para pressionar os espanhóis, tirando o conforto deles com a bola, recuperar a posse e atropelá-los em transições ofensivas.
1. Os encaixes de marcação da Alemanha
Hansi Flick armou a Alemanha em um 4–2–3–1 para espelhar o 4–3–3 que Luis Enrique escolheu para armar a Espanha. O jogo de posse de bola da “Fúria” passava muito pelo tripé de meio de campo: Busquets, o primeiro volante responsável pela saída de bola, e Gavi e Pedri mais avançados. Frente a isso, Flick colocou Gündoğan na posição de “camisa 10”, o meia central do 4–2–3–1, com Kimmich e Goretzka na dupla de volantes. Assim, a Alemanha contava com 3 meio-campistas, mas não em um trio como no 4–3–3: Gündoğan, mais avançado, fazia marcação individual em Busquets, enquanto Kimmich e Goretzka marcavam Pedri e Gavi respectivamente. Desse modo, Flick buscava sufocar o meio de campo espanhol e, assim, comprometer a circulação de bola de seu adversário.
2. Os gatilhos de pressão
Para pressionar a Espanha, a Alemanha usava um mecanismo chamado “gatilhos de pressão”. Os espanhóis construíam sua saída de bola com 6 ou até 7 jogadores: Unai Simón (o goleiro), Rodri e Laporte (os zagueiros), Carvajal e Jordi Alba (os laterais) e Busquets (o volante). Esporadicamente, Pedri ou Gavi baixavam um pouco para ajudar na saída de bola. Além disso, a Espanha espaçava bastante seus jogadores nesse momento; portanto, a Alemanha não conseguiria marcar agressivamente 6 jogadores espanhóis bem espaçados em campo efetivamente, além de se desgastar muito no processo.
Por isso, Flick instruiu seu time a seguir alguns “gatilhos” para iniciar a jogada. Quando a Espanha saísse jogando, os alemães avançariam a marcação e cercariam os jogadores, mas sem pressionar com tanta intensidade ainda. Assim, a Alemanha esperaria pelo momento certo, quando algum jogador espanhol desse um passe ou fizesse um movimento que deixasse a posse de bola ligeiramente mais exposta. Esse seria o “gatilho” que iniciaria a pressão alemã.
Normalmente, a Alemanha reforçaria a marcação em um lado do campo e deixaria o outro sem marcadores. Isso era proposital, pois forçaria a Espanha a jogar por aquele lado. Assim que a Espanha caísse nessa “armadilha” (normalmente recuando para o goleiro ou passando para um zagueiro ou lateral), o gatilho era acionado: a Alemanha começava sua pressão agressiva, apertando a marcação e forçando erros do adversário. Quando a posse espanhola ficava um pouco mais vulnerável, era a hora de “atacar” e recuperar a bola.
3. Pressionar, recuperar e acelerar: a Alemanha “rolo compressor”
A marcação agressiva da Alemanha tinha um principal objetivo: recuperar a bola em faixas avançadas do campo e, assim, poder armar um contra-ataque em uma zona muito mais perigosa, encurtando a distância que seria percorrida caso a Alemanha recuperasse a bola na defesa. Além disso, uma recuperação de bola no campo de ataque encontraria uma Espanha desorganizada, se preparando para atacar, o que potencializaria ainda mais o contra-ataque alemão.
4. Usando a posse de bola para “contra-atacar”
A última arma de Flick para atacar a Espanha não partia da pressão alta e recuperação no campo de ataque, mas sim da posse de bola. No entanto, a finalidade era a mesma: encontrar um cenário de campo aberto para que seus atacantes pudessem acelerar a jogada e atacar a defesa espanhola em velocidade. Assim, Flick desenhou um jeito de “contra-atacar” a Espanha, mas usando somente a posse de bola.
A ideia de Flick era usar o controle da bola de um jeito radicalmente diferente do jogo contra o Japão. Ao invés de espalhar suas peças pelo campo e avançar calmamente, a Alemanha concentrava mais a posse em seu campo de defesa, na saída de bola. Além disso, a Alemanha não usava mais a “saída posicional” do jogo contra o Japão, onde os jogadores de ataque não podiam descer para se apresentarem: aqui, muitas vezes um jogador mais ofensivo deixava sua posição para oferecer mais uma opção de passe.
Como o time de Luis Enrique queria ter a posse o tempo todo, os espanhóis naturalmente pressionariam a Alemanha para recuperar a bola rapidamente e voltar a dominá-la. Assim, a ideia de Flick era juntar muitos jogadores na saída de bola para atrair a pressão da Espanha e, a partir daí, criar um “efeito dominó”. A Alemanha saíria jogando e atrairia a marcação dos jogadores espanhóis; à medida que a Mannschaft conseguisse quebrar a primeira linha de pressão da Espanha e avançar com a bola em campo, mais jogadores adversários teriam que saltar de suas posições para pressionar os alemães, e assim por diante. Isso acabaria criando um “efeito dominó” em que, à medida que mais jogadores da Espanha avançassem para pressionar, mais espaço se abriria às costas deles até que a Alemanha encontrasse um cenário com o campo aberto, como em um contra-ataque. Por fim, os alemães poderiam aproveitar esse espaço acelerando. A ideia não era ter o controle da posse o jogo inteiro; apenas o suficiente para atrair a pressão espanhola para que o espaço às costas da defesa se abrisse.
Enquanto no jogo contra o Japão a Alemanha teve muito sucesso em subjugar seu adversário a partir da posse, avançando com calma em seu ataque posicional, superando a marcação agressiva japonesa e criando chances ao ocupar o campo de ataque em seu ataque funcional, a abordagem contra a Espanha foi radicalmente diferente.
Flick mostrou seu repertório e atacou a Espanha a partir de uma pressão extremamente agressiva e contra-ataques fulminantes, agindo como um autêntico rolo compressor. Além disso, quando tinha mais a bola, também a usava de um jeito diferente: ao invés de tentar ocupar o campo de ataque, preferiu atrair a Espanha na saída de bola para atacar os espaços que se formariam. Nessa nova estratégia, Flick também teve sucesso: finalizou mais vezes que seu adversário (11 contra 7) e acertou mais o alvo (4 contra 3). Além disso, criou mais grandes chances (3 contra 2) e chutou mais vezes de dentro da área (8 contra 3). Por fim, também acumulou mais gols esperados: 1,24 contra 0,70. A Espanha só superou a Alemanha na posse de bola (64%), mas produziu menos ofensivamente em todos os outros quesitos. Mesmo assim, o jogo acabou empatado; novamente, Flick acabou tropeçando na falta de efetividade de seus atacantes, que chegaram a desperdiçar a melhor chance do jogo no último lance dos acréscimos.
O desespero no tudo ou nada: bombardeio contra a Costa Rica
Para o jogo contra a Costa Rica, Hansi Flick fez uma mudança relevante. Ao invés de escalar Kimmich na dupla de volantes como nas partidas anteriores, o treinador escalou Goretzka e Gündoğan como volantes e mandou Kimmich para a lateral direita. Agora, a novidade aqui não é a volta de Kimmich para a lateral por si só (o alemão explodiu no Bayern de Munique como lateral-direito, mas joga regularmente como volante por clube e seleção há vários anos). A grande novidade foi o perfil do jogador que começou no lado direito da defesa. Contra Japão (Süle) e Espanha (Kehrer), o escolhido para jogar na lateral-direita havia sido um zagueiro de ofício. Isso, entre outras coisas, dava mais sustentação à defesa alemã, que já não era a mais segura da Copa. A entrada de Kimmich na posição mudava radicalmente o perfil: ao invés de um zagueiro a mais, a Alemanha ganhava, em sua linha de defesa, um jogador de perfil muito mais ofensivo, muito mais capaz com a bola no pé e, claro, menos seguro defensivamente.
Essa mudança previa o terceiro cenário que a Alemanha enfrentaria na fase de grupos: a Costa Rica não tentaria ser agressiva na marcação como o Japão e muito menos proativa na posse de bola como a Espanha: a estratégia costarriquenha era se trancar em seu campo de defesa, defendendo extremamente perto de sua área e dando a posse de bola para a Alemanha. A Costa Rica chegou para o jogo pensando em sofrer o mínimo de gols possível, sem pensar muito em como atacar a Alemanha ou deixá-la desconfortável com a bola. O jogo estava desenhado para ser um monólogo, um verdadeiro “ataque contra defesa”. Assim, ter um armador a mais em sua linha de defesa era muito, muito importante.
1. Saída de bola em 2+3
No jogo contra a Costa Rica, a Alemanha promoveu uma leve alteração em sua saída de bola. Enquanto no jogo contra o Japão os jogadores se alinhavam em um 3+2 (com 3 zagueiros e 2 volantes) para sair jogando, nessa partida a estrutura se inverteu e foi para um 2+3. A dupla Süle e Rüdiger iniciava a jogada, e tinha à sua frente 3 jogadores de meio de campo: Gündoğan mais recuado, Kimmich pela direita e Raum pela esquerda.
Essa mudança claramente foi promovida pela posição de Kimmich na lateral-direita, que implicava em duas coisas. A primeira, já explicada antes, é que o jogador que ocupava a lateral-direita não era mais um zagueiro que ia compor uma linha de 3 defensores, mas sim um armador. A segunda foi que, como Kimmich saíra do meio de campo, Goretzka iniciou como volante ao lado de Gündoğan. No entanto, o camisa 8 não é um exímio construtor, e é muito melhor atuando como um jogador que ataca a linha de defesa adversária com sua força física, um infiltrador. Assim, Goretzka ficava mais avançado, sem participar da saída de bola. Para Gündoğan não ficar sozinho à frente dos zagueiros, Kimmich e Raum formavam uma linha de 3 volantes com o jogador do Manchester City.
2. Avançando em campo de forma posicional
Assim como o 3+2 na saída de bola contra o Japão indicava uma estrutura em 3–2–5 posicional, o 2+3 contra a Costa Rica indicava o 2–3–5 que a Alemanha usaria para avançar em campo.
A estrutura 2+3, com os 2 zagueiros e 3 volantes, ficava na base da jogada. À frente, Goretzka e Musiala eram os meias mais avançados, que atacavam os meio-espaços e se posicionavam entre as linhas de marcação da Costa Rica. No ataque, Müller era um falso 9 e frequentemente se juntava a Goretzka e Musiala em uma posição mais recuada. Por fim, Sané e Gnabry abriam o campo.
O 2–3–5 posicional da Alemanha nessa partida era ligeiramente menos rígido que o 3–2–5 contra o Japão. Aqui, Flick escalou Sané (canhoto) na ponta direita e Gnabry (destro) na ponta esquerda. Portanto, eles naturalmente levariam a bola para dentro ao receber, e não para o fundo. Por isso, os pontas (Sané e Gnabry) se revezavam com os laterais (Kimmich e Raum) para abrir o campo, e trocas de posição entre esses atletas eram bem comuns. Além disso, o trio central formado por Goretzka, Müller e Musiala era extremamente fluido e sempre “brincava” com as trocas de posição para confundir os zagueiros costarriquenhos.
Por fim, Flick não espalhou tanto as suas peças pelo campo como contra o Japão e, mesmo em uma estrutura posicional, preferia deixá-la mais próxima. Isso facilitaria a compactação que veremos na sessão seguinte, criaria mais linhas de passe e, ainda, facilitaria o trabalho de perde-pressiona da Alemanha: ao perder a bola, a Mannschaft teria mais facilidade em recuperá-la imediatamente com seus jogadores mais próximos, pois isso facilitaria na dobra de marcação no setor da bola, além de abrir menos espaços. Assim, os pontas não ficavam colados à linha lateral, mas sim bem próximos da jogada. Além disso, a distância entre as linhas (2 zagueiros, 3 volantes e 5 atacantes) era bem curta.
3. Mescla posicional/funcional no campo de ataque
Para ocupar o campo de ataque, a Alemanha usava uma estratégia similar, mas não idêntica, ao jogo contra o Japão. Mais uma vez, Flick escolheu compactar seus jogadores em um lado do campo quando o time estava posicionado para atacar. No entanto, essa organização era mais uma mescla entre um ataque posicional e funcional, ao contrário do jogo contra o Japão, que mostrou uma Alemanah 100% funcional ocupando o campo de ataque.
Na partida contra a Costa Rica, a Alemanha esboçava sua estrutura posicional, mas apresentava intensas movimentações, aproximações e trocas de posição. Além disso, quando um jogador deixava sua posição, não havia outro que imediatamente a ocuparia, como em um clássico ataque posicional. Nessa fase do jogo, a Alemanha se preocupava pouco com suas posições e mais nas movimentações dos seus jogadores, sem prendê-los à lugares específicos. Assim, os jogadores tinham mais liberdade em se movimentar, criando assimetrias, desmarques e aproximações que confundiam a defesa da Costa Rica.
4. Trocação, desespero e bombardeio no segundo tempo
Para o segundo tempo, Flick realizou várias mudanças que tornavam seu time ainda mais ofensivo (principalmente após tomar a virada da Costa Rica). Primeiro, uma troca aparentemente defensiva: Goretzka saiu para a entrada de Klosterman, lateral direito, o que devolvia Kimmich ao meio de campo. Depois, Gündoğan, volante, saiu para a entrada de Füllkrug, centroavante. Raum, lateral, saiu para a entrada de Götze, meia-atacante. Por fim, Müller, atacante, foi substituído por Havertz, que também é atacante. No desespero, Flick esvaziou seu meio de campo (na reta final do jogo, a Alemanha tinha apenas Kimmich de volante) e preencheu sua linha de atacantes.
Assim, Flick armou sua Alemanha em uma mescla de 3–1–6 e 2–2–6 extremamente móvel. Klostermann se juntava a Süle e Rüdiger na saída de bola como terceiro zagueiro, mas frequentemente deixava a linha de defesa para avançar. Mais à frente, Kimmich era o único meio-campista do time, atuando como volante, e frequentemente ganhava a companhia de Klostermann para formar uma dupla de volantes. Por fim, uma linha de 6 atacantes. Flick trocou Sané e Gnabry de posição, para que o ponta destro ficasse pela direita e o canhoto pela esquerda. Assim, eles tinham mais sucesso em abrir o campo e levar para o fundo. Por dentro, Füllkrug era um centroavante típico, que fixava os zagueiros e era a referência dentro da área. Havertz atuava como um segundo atacante por trás de Füllkrug, circulando pelo ataque. Por fim, Musiala e Götze eram os meias que preenchiam os meio-espaços, normalmente bem próximos de Havertz.
No segundo tempo, com a classificação ameaçada e atrás no placar, Flick não queria controlar a posse de bola em todas as faixas do campo, dominar o meio de campo e avançar com calma para subjugar a Costa Rica. A ideia era preencher a linha de defesa costarriquenha e bombardear o gol adversário com sua linha de atacantes. Com seu meio de campo esvaziado, a Alemanha fatalmente deixaria espaços para a Costa Rica contra-atacar, mas Flick apostou no tudo ou nada. Foi nesse momento que aconteceu um verdadeiro bombardeio: apenas no segundo tempo, a Alemanha finalizou 20 vezes (7 no alvo), criou incríveis 7 grandes chances, acertou a trave 3 vezes e acumulou 4,70 gols esperados.
Conclusão: não há terra arrasada
A eliminação da Alemanha deixa, com certeza, um gosto amargo na boca dos alemães. Afinal, é a segunda queda na fase de grupos seguida que o país enfrenta. Além disso, a última vez que a Mannschaft passou das oitavas de final em algum torneio oficial foi na Euro 2016, quando foi eliminada pela França nas semifinais. Desde então, queda na fase de grupos nas Copas de 2018 e 2022, um quase rebaixamento na Liga das Nações e uma eliminação nas oitavas de final na Euro de 2021.
No entanto, como visto aqui, a Alemanha parece estar no caminho certo, pelo menos ofensivamente. Em 3 jogos diferentes, enfrentando cenários drasticamente diferentes, Flick usou 3 abordagens distintas e teve sucesso em cada uma delas. Seus conhecidos problemas defensivos custaram-lhe um mata-mata, mas nada disso poderia ter acontecido se seus atacantes fossem mais eficazes na cara do gol. A Alemanha foi, de longe, o melhor time ofensivo da fase de grupos: foi o que mais produziu e o que mais apresentou repertório. Aparentemente, a DFB sabe disso e resolveu manter Flick no comando da Seleção até 2024, na Euro, que é quando seu contrato acaba. O treinador já afirmou que não quer passar uma década treinando a Mannschaft como vários de seus antecessores, então uma saída depois da Eurocopa é bem provável. Se ela se confirmar, os grandes clubes europeus devem ficar muito atentos, pois uma das maiores referências em organização ofensiva e futebol de ataque estará no mercado.