
Algo assim aconteceria mais cedo ou mais tarde. O “discurso” em torno da tática no futebol vem há algum tempo acelerando em direção a um beco sem saída.
Nem o mais perspicaz observador poderia prever que o destino desse emaranhado de narrativas convergiria justamente na cidade pesqueira de Grimsby, no norte da Inglaterra, numa quarta-feira chuvosa de fim de agosto. Mas foi exatamente ali que nos encontramos: amontoados diante de nossas transmissões ao vivo, assistindo a um português de quarenta anos sentado, desolado, no banco de reservas do Blundell Park, empurrando ímãs vermelhos minúsculos sobre uma prancheta plastificada em formato de campo de futebol.
A imagem — de Rubén Amorim, Almirante em desgraça, jogando “batalha naval tática” enquanto seu destróier de última geração, o Manchester United versão Premier League, afundava rapidamente diante do arrastão envelhecido e coberto de cracas do Grimsby Town, da 4ª divisão — viralizou de imediato. Ainda em tempo real, a cena transmitia uma sensação estranhamente familiar: como se um meme tivesse sido artificialmente inserido na realidade, um hiper-realismo que flutuava entre o cachorro do “This is fine” em meio ao incêndio e Wallace Hartley tocando violino enquanto o Titanic ia a pique.
Como acontece em tais singularidades, quando múltiplos fios narrativos colidem, as reações foram… mistas. Alguns não veem problema nenhum: treinador usa prancheta durante o jogo, nada demais. E de fato, à primeira vista não há nada de errado — nem remotamente interessante — em um técnico consultar a prancheta, acontece milhares de vezes por dia em praticamente todos os clubes, em todos os níveis. Mas o impacto”mêmico” que a foto gerou não é coincidência. Críticas simplistas do tipo “o jogo morreu” feitas pelos “verdadeiros barclaysmen” do planeta não carregam esse tipo de força.
O “Amorim e a fraude da prancheta” aparece como uma estranha inversão do “Wally With The Brolly” de Steve McClaren. Ambas as imagens retratam homens deslocados no tempo, aparentemente fora de sua profundidade, impotentes, incapazes de mudar a sorte de suas equipes sob a torrente implacável de uma chuva britânica. Enquanto a memeficação de McClaren simbolizava a queda do gentleman do futebol à moda antiga, justamente na aurora da era Guardiola, o momento de Amorim parece encarnar o “Último Homem” nietzschiano daquele mesmo movimento tático iniciado pelo grande Barça de Pep.
Já se passaram dezesseis anos desde a final da Champions de 2009, em Roma, quando os catalães tiki-takaram rumo à primeira de duas vitórias sobre o United de Alex Ferguson — e desde então o futebol sofreu uma lobotomia frontal. O jogo global é quase irreconhecível comparado aos dias vibrantes de meados dos anos 2000, quando Zidane, Kaká, Ronaldinho e companhia desfilavam sua genialidade rebelde nos maiores palcos, e sequências de mais de sete passes eram raridade. A influência de Guardiola é sem precedentes. Pode-se argumentar por Cruyff, talvez por Sacchi, mas provavelmente nenhum homem impactou de forma tão sísmica a maneira como o futebol é assistido, analisado, treinado e jogado.
O impacto do Barcelona de Guardiola no mundo do futebol não pode ser exagerado. Além das audiências globais crescentes, boa parte da viralização se deu nas redes sociais. A discussão sobre “tiki-taka” e as implicações de “sair jogando desde trás” dominaram os primeiros blogs e contas de Twitter de análise tática, abrindo espaço para uma nova onda de detalhamento online. Guardiola e seu sistema catalisaram o surgimento de blogs como o alemão Spielverlagerung (cofundado pelo hoje assistente do Bayern, René Marić) e o argentino Paradigma Guardiola, de Matías Manna, além de impulsionar o pioneiro inglês Michael Cox com o site Zonal Marking.
Os segredos estratégicos dos melhores times do mundo estavam sendo decifrados em tempo real, e a informação — em artigos longos, recheados de diagramas meticulosamente construídos em visão aérea — estava disponível para qualquer pessoa com internet. Muitos times e técnicos capturaram a imaginação, mas o Santo Graal era entender o método Guardiola. Como ele conseguia fazer sua equipe jogar com tamanha precisão e excelência sobre-humanas? Quais eram os princípios e a lógica por trás de sua organização? Aos poucos, as respostas surgiam. Análise após análise buscava desmistificar o funcionamento interno do sistema de Pep, até que a comunidade online de futebol se deparou com a lógica ofensiva mais potente já concebida.
“Futebol é ocupar racionalmente o espaço, e a bola se move para o espaço.” Foi o que Guardiola declarou numa demonstração de treino na Espanha em 2007. Felizmente, parte daquela sessão foi registrada em uma gravação precária de celular. No vídeo, com microfone, Guardiola aparece arrumando sua equipe no estilo meticuloso ao qual já nos acostumamos — o grande mestre preparando suas peças para lançar mais um gambito ofensivo perfeitamente formulado.
“É claro que este jogador tem de se mover quando recebe a bola, é claro que ele se move ao fazer a corrida de apoio para o espaço; nesse momento ele está em movimento, mas dentro do espaço que lhe é designado.”
Guardiola enfim havia explicitado o que tantos tentavam descrever. Suas equipes mantinham a posse porque os jogadores ocupavam os espaços de um tabuleiro invisível. Cada atleta sabia exatamente onde estar em cada situação, e sabia antes mesmo de o adversário perceber o que acontecia. Sempre três passos à frente, sempre livres, sempre disponíveis para o próximo passe. Após a revolução da marcação zonal de Arrigo Sacchi, a maioria dos times defendia por espaço e não individualmente; o método de Guardiola se ajustava perfeitamente a ocupar os vazios entre essas fileiras zonais.
No Bayern (2014–2017), fotos mostravam os campos de treino personalizados do catalão: elaboradas grades pintadas na grama, redes de corredores, caixas e zonas misteriosas. Para quê serviam aqueles marcadores? Como os jogadores os usavam como referência de posicionamento? A resposta estava na lógica complexa da ordem espacial de Guardiola, o Juego de Posición (jogo de posição), ou simplesmente Ataque Posicional (organização ofensiva baseada no espaço).
O que a mídia inglesa chama de “Guardiolismo” não tem nada a ver com “estilo baseado na posse”, “ter uma filosofia” ou “intelectualizar o futebol” — rótulos vagos que jornalistas como Rory Smith, Jack Pitt-Brooke e Jonathan Wilson gostam de soltar em podcasts. Trata-se do Jogo de Posição, sempre foi. As legiões de técnicos que seguem Guardiola o fazem usando versões e interpretações desse método. Alguns são bons, outros ruins, a maioria é entediante.
Se for alguma coisa, o Guardiolismo é, acima de tudo, espacial: trata-se de dar ênfase às estruturas ofensivas, às distâncias e ângulos entre companheiros, a “estar lá” em vez de “ir até lá”, à ocupação em vez da chegada. O treinador olha para a estrutura defensiva do adversário e decide qual de suas próprias estruturas ofensivas é a mais adequada para desmontá-la. Então escolhe os jogadores para preencher os espaços dessa estrutura.
E é aqui que o meme ganha sentido. Técnicos desse estilo acreditam que os jogos podem ser vencidos e perdidos na prancheta. O problema é que nenhum treinador de Jogo de Posição é Guardiola. Na verdade, nenhum chegam perto. Como explicar que, mesmo com uma diferença colossal de qualidade de jogadores a poucos metros do gramado contra o modesto Grimsby, Amorim buscava respostas nos ímãs da prancheta? Essa dissonância bizarra é o que dá força ao meme. Esse é o nicho autoindulgente em que treinadores de futebol fazem cosplay de Magnus Carlsen: os melhores jogadores do mundo são as peças, mas quem joga a partida é o técnico. Ele resolve o problema; os jogadores são apenas carne posicionada para executar o último plano abstrato do gênio da linha lateral.
A alternativa é inverter a lógica e permitir que a estrutura surja dos jogadores. Quem temos? Como podem se complementar melhor para potencializar uns aos outros? Se é um 4-3-3, joga-se num 4-3-3. Se é um losango, joga-se no losango. Se há um bom falso 9, monta-se um sistema com falso 9. Simples. Quando Lionel Scaloni achou que Di María era o único ponta pronto para jogar a final da Copa de 2022, adivinha? Jogou só com um ponta. O assistente Matías Manna resume a abordagem argentina, que prioriza a realidade humana dos jogadores em vez do design abstrato da estrutura: “Estar num escritório não é o mesmo que estar em campo. O olhar do treinador não é apenas tático. A vida é altamente especializada. Você tem de ter uma visão global para escolher jogadores. A arte de treinar é a arte de alinhar jogadores.”
Hoje, Rubén Amorim aparece como um estruturalista posicional extremo — talvez sempre tenha sido. Amorim joga 3-4-2-1, e deixou isso claro. O homem não muda. Coloca os ímãs nos seus lugares e o resto deveria se resolver sozinho. Mesmo que isso signifique usar Mason Mount como ala-esquerdo, o que importa é a integridade da estrutura. Mesmo que Kobbie Mainoo não caiba nela, a integridade da estrutura prevalecerá. Nas próprias palavras de Amorim: “Podemos perder, mas temos de manter a posição.”