O século XIX é conhecido pela Pax Britannica, quando o Império Britânico tem pleno domínio sobre os mares e as rotas de comércio. Junto com as mercadorias, o estilo de vida vitoriano também era exportado. Na Inglaterra vitoriana buscava-se uma forte coesão social através da repressão interior para sustentar uma ordem hierárquica. Ou seja, havia grande apelo por uma disciplina rígida, pela severidade, pelo trabalho árduo, pelas expressões das regras de etiqueta e padrões morais.
Nesse contexto, o futebol era visto como um esporte de vândalos. Foram as “leis do jogo” de Morley que fundaram o “futebol moderno” e o trouxeram para a Inglaterra dos valores vitorianos. O futebol se espalha pelo mundo e pelo Brasil através dos ingleses, nem sempre filhos da rica aristocracia, mas carregando intrinsecamente os mesmos valores vitorianos, baseados em forte repressão interior. Ou seja, no início do século XX, o futebol tornou-se o esporte mundial dos cavalheiros “bem educados”, dos espíritos “bem formados” que controlavam rigidamente os seus instintos. Todavia, esse esporte rapidamente ganhará o coração da multidão.
No Mediterrâneo, na Escócia, no leste europeu, na Argentina, no Brasil, a história é parecida: o futebol vai se tornando um esporte de massas, dos operários, dos pobres, dos mestiços, dos negros, e os valores da multidão se chocam com os valores vitorianos.
No Brasil do início do século XX, o futebol torna-se expressão do “branqueamento” desejado por partes de nossas elites. O negro era excluído do campo do jogo como figura incompatível com os valores “civilizados” impressos no futebol. Diante das nações vizinhas, as elites brasileiras queriam exibir o país como uma nação branca e “civilizada”. Por isso, em 1919, o governo brasileiro chegou a proibir a presença de negros e mulatos na seleção brasileira de futebol.
A incorporação do negro no futebol brasileiro não se deu apenas pelas conquistas formais, pelas permissões para entrar em campo e participar do jogo. Eles também traziam um estilo e uma maneira diferente de viver o jogo. A multidão brasileira de pobres, mulatos, bestializados não queria jogar o futebol como os ingleses. Os nossos valores eram outros. A nossa percepção de ordem era muito diferente da ordem vitoriana. Queríamos nos movimentar, driblar, atrair para enganar. Desejávamos um jogo de encontros inesperados, imprecisos, comunhão com o nosso cotidiano: “afastou-se do bem-ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas”.
A incorporação do negro ao futebol não se dá apenas no campo de jogo. A partir de Flávio Costa e dos anos 1950, o Brasil vai construindo uma cultura, uma história e uma tecnologia no futebol. O futebol brasileiro ganha a sua própria identidade. Contudo, esse não é um processo plano, linear, sem conflitos. O racismo, que excluía o negro do campo de jogo, permanecia por lá, reciclado em outros discursos. Esse racismo sempre negou e lutou contra essa identidade do futebol brasileiro.
Após as eliminações da Copa de 1950 e 54, o negro foi culpado por setores de nossas elites instruídas. Não conseguíamos competir contra os “retos” europeus porque o negro seria indolente, preguiçoso, indisciplinado, sem autocontrole, sem rígida formação moral. Com o tempo, esse racismo escancarado foi sendo reciclado. Setores da elite instruída formulavam os seus discursos nos rádios, jornais e televisões após os fracassos. No lugar do “negro”, entrou a figura do “futebolista brasileiro”, quase todos negros e vindos da pobreza: “o jogador brasileiro seria indolente, preguiçoso, indisciplinado, sem autocontrole, sem rígida formação moral, sem respeito pela tática e pelo coletivo, etc.”
Há um conflito latente aqui. Os setores mais endinheirados contavam com um acesso mais fácil à educação e às indicações de emprego, e ocupavam os melhores postos da elite instruída. Eles formulavam os discursos nos meios de comunicação de massa. Todavia, o futebol brasileiro em campo era construído pelos nossos pícaros driblando a miséria com uma bola de futebol, e arquitetando um mundo de valores completamente oposto ao do cavalheiro vitoriano. Essa tensão entre uma elite que quer “branquear” o país pela cor e pela cultura para mostrar o Brasil como parte da “Europa civilizada”, e uma multidão de pessoas que falam outra língua e que construíram a identidade do futebol brasileiro, permanece, mas não é linear.
A elite instruída que articula as explicações para o jogo nos meios de comunicação não são unânimes e nem homogêneas. Um mesmo jornalista pode inconscientemente admirar e repudiar o legado do futebol brasileiro. Pode reciclar o argumento racista sem se dar conta. Essa tensão existe e ganha contornos heterogêneos. Quando jogamos no lixo a identidade do futebol brasileiro, quando tratamos o “futebolista brasileiro” em geral como preguiçoso, indisciplinado, estamos reciclando esse velho racismo.
Essa reciclagem ganhou contornos mais visíveis após o 7 a 1. Milton Santos nota que uma das expressões da globalização é a fábula. A globalização como uma “aldeia global”, um triunfo feliz e homogêneo de um modo de vida é uma fábula que esconde as relações de poder. Os que usam a globalização como fábula nos oferecem apenas um caminho, como se todos os modos de vida tivessem que desaguar depois do mesmo trajeto. Siga aquele modo de vida ou pereça.
No futebol, nos dizem que para vencer devemos usar as mesmas metodologias, ideias e raciocínios que seriam triunfantes no “mundo desenvolvido”. Contudo, a realidade sempre bifurca e mostra outra coisa. Após o 7 a 1, setores das elites instruídas articularam o seguinte discurso: “o futebolista brasileiro é indolente, preguiçoso, não cumpre obrigações táticas, e o futebol brasileiro é atrasado, antiquado, superado, e deve ser esquecido”. Para arrematar, nos informaram sobre o “fim da história” no futebol: “com a globalização, tudo converge para o triunfo da melhor metodologia, do futebol corretamente aplicado, devemos alcançar esse estágio de evolução”.
Essa fábula, desmentida pela heterogeneidade do sucesso e do fracasso, foi utilizada para reciclar o velho mote do racismo no Brasil. Sem perceber, caímos nessa armadilha. Além disso, o futebol brasileiro é feito e consumido cada vez mais para setores com renda elevada. Elas compram produtos, pay per view, assinam planos e vão sempre aos estádios, formulam os discursos nas redes sociais e legitimam essa tensão entre a ordem e o pícaro. Os setores mais pobres estão sendo excluídos não só do acesso ao estádio, mas do modo de vida do próprio futebol. É como se estivéssemos jogando no lixo o futebol construído pelos marginalizados e voltando para o futebol brasileiro “branqueado” do início do século XX.
A crise profunda do futebol brasileiro passa por aí. Não se trata de defender o imobilismo, e nem de se agarrar a uma ideia infantil de globalização como fábula, mas de redescobrir a força dialética do pícaro que deu singularidade ao nosso jogo.
Texto retirado do Twitter @Jozsef_Bozsik