A folha-seca e suas parábolas fatídicas

1. Quando a bola variava

A bola “dente-de-leite” era um clássico nas ruas e nos campos das cidades brasileiras nas últimas décadas do século XX. Era fabricada com uma borracha sintética e tinha um custo acessível para as famílias de menor renda. Replicava os modelos de bolas oficiais de gomos pintados em preto e branco, semelhantes às que víamos na televisão e que eram mais caras e raras, naqueles tempos em que a globalização ainda não havia se efetivado. Nos espaços gramados em que nós millenials jogávamos bola, ela rolava fácil amortecida pelo piso vegetal. Já no asfalto ou na terra, a borracha se desgastava, criando uma casca que a tornava mais rígida e, consequentemente, mais resistente.

Também não era incomum que, ao bater em alguma superficie pontiaguda, a bola rasgasse e já fosse ao chão em retalhos para o lamento coletivo. No entanto, seja na grama, na terra ou no asfalto, algo que nos fascinava eram as possibilidades de “vareio” que a bola ganhava quando chutada. Como era muito leve, conforme o chute e o vento, fazia curvas imprevisíveis, enganando destinatários de passes e goleiros. De tempos em tempos, aparecia alguém com uma bola nova, que mobilizava nossa atenção e nossos esforços até quando a luz do dia estivesse disponível.

Para jogar na rua, era necessário reproduzir o campo com linhas riscadas com tijolos e contruir gols de chinelos ou pedras. As ruas (com poucos carros) e os espaços de convívio comum, como parques, áreas abertas e praças, viravam campos e locais de peladas homéricas. Para quem vivia no interior nem tão profundo do país, num bairro em construção na periferia de uma cidade paulista que recebia trabalhadores imigrantes de outros Brasis, essa experiência do futebol na rua era comum, com grandes clássicos contra o time da “rua de trás” ou da “rua de cima”, no nosso campo ou no deles. 

Nos bate-bolas das manhãs entre os garotos do bairro, meu pai, antes de sair para o trabalho do dia, – devidamente vestido com calça e camisa – pedia para tentar um chute chamado “folha-seca”, no qual a bola subia e caia rapidamente, desnorteando o goleiro e promovendo uma curva impensável. O efeito na bola “dente-de-leite” era ainda maior e o “vareio” também. Contra minha vontade, de vez em quando tentava mostrar como o chute poderia ser executado, simulando uma “injeção” na bola, que fazia com que ela rodopiasse e ganhasse ainda mais variação. Ainda não entendia o que o jogador ganharia ao chutar em curva, pois, na minha imaturidade de expectativas racionais sobre o mundo, um chute forte e direto seria muito mais eficaz.

Dois jovens mais velhos, os quais eu particularmente admirava, também improvisavam chutes diferenciados antes do dia de trabalho. Gaspar, um jovem filho de uma família da da rua de trás, jogava muito bem, mas estava sempre ocupado com os trabalhos no bairro em construção. Já Cavalcanti, filho de pernambucamos na rua de baixo, passava por lá de vez em quando, descia da bicicleta e nos explicava sobre a importância de jogar e bater na bola com a cabeça erguida, observando onde o goleiro estava e os espaços abertos. É curioso o modo como o nosso futebol de rua era sempre convidativo para aqueles sujeitos em direção aos compromissos, talvez um pequeno escape de um dia que ainda começaria em rotinas intensas e de subalternidade.

Com a ampliação da urbanização brasileira no final do século XX, quem veio depois da Geração Y (o outro nome para os millenials, nascidos entre 1981 e 1996) passou a ter dificuldades em encontrar diversão nas ruas e espaços abertos, que receberam cada vez mais carros e empreendimentos imobiliários. No entanto, as curvas da bola “dente-de-leite” e a sugestão do chute em curva do meu pai ficaram na minha memória, além de outras lições. A folha-seca passou a ser algo que sempre passeava entre meus pensamentos. Com o tempo, descobri que o chute havia sido inventado por Didi, o mítico “meia-armador” da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1954, 1958 e 1962, ídolo do Fluminense e Botafogo e autor do primeiro gol do Maracanã, em 1950.

No entanto, jogador amador mediano que fui, sem grandes pretensões para além do meio do campo, o mistério da execução da folha-seca permaneceu. Compreendi a necessidade do recurso inteligente de passes e chutes em curva no jogo, para além da inóqua objetividade do tiro direto e forte. Porém, mais coisas vieram à mente a partir da sugestão de meu pai e suas tentativas de fazer a bola variar naquelas manhãs na rua em que morávamos. E, sem que eu soubesse, Didi – Valdir Pereira de nascimento – e sua folha-seca poderiam dizer mais sobre o jogo e, quem sabe, sobre eu mesmo, sobre meu pai e sobre o mundo.

Meu pai, tendo nascido em 1940, vivenciou pelo rádio a inacreditável derrota para o Uruguai na Copa do Mundo de 1950. Uma roteiro de referências constantes remetiam para as comidas cobertas por lençóis brancos e abandonadas depois do jogo, no qual, em tese, o Brasil seria campeão. Vindo de vitórias grandiosas contra Espanha (6 a 1) e Suécia (7 a 1), a seleção brasileira, vestida de branco, precisava apenas de um empate contra o Uruguai do gigante Obdúlio Varella, no Maracanã recém inaugurado. Mas não deu: 2 a 1 para os uruguaios, “gente de sangue quente”, que fizeram o impensável naquela tarde de 16 de julho de 1950.

Na Copa do Mundo da Suiça, em 1954, uma nova derrota, agora para o espetácular time dos “Mágicos Magiares” da Hungria, com Lantos, Puskas, Czibor, Grosics, Hidegkuti e outros. Esses complicados nomes do Leste Europeu eram comuns em nossa casa, o que nos fez sempre admirar a seleção húngara. A tragédia promovida pelos uruguaios e a racionalidade extrema de fútebol húngaro envolveram o pensamento do meu pai e talvez a poética folha-seca de Didi fosse uma resposta simbólica de que também tínhamos nossas possibilidades e recursos. A vitória na Copa do Mundo de 1958 também pode ser entendida nesse contexto, vencida contra os pretensamente superiores europeus e efusivamente comemorada por brasileiros, que buscavam entender seu lugar e seus valores no mundo.

Mas quem foi Didi? Qual foi o seu papel nessa grande aventura futebolística que deu ao Brasil e aos brasileiros um lugar e uma identidade no “teatro das nações”? Esse sujeito e seu chute, que tanto fascinaram meu pai – e, consequentemente, a mim – teve uma história considerável, uma longa vida como profissional de um esporte que ajudou a reiventar, com chutes, pensamentos e atitudes. Não se trata aqui de idolatrar uma figura cuja vida já é muito conhecida, mas a busca por compreender Didi e a folha-seca acabou refazendo caminhos e dialongando com outras formações e concepções para além das manhãs nas quais tentávamos refazer seu chute em bolas de borracha que variavam. Vejamos então aonde isso nos trouxe.

2. De uma pancada, a folha-seca 

Valdir Pereira, titular absoluto daquele time campeão na Suécia, nasceu em 1928 no interior do Rio de Janeiro, em Campos de Goytacazes. Jogador de técnica refinada, começou jogando em times amadores na década de 1940 em sua cidade natal, até chegar ao time profissional do Americano de Campos, em 1946. Numa transferência curiosa, Didi jogou também no Lençoense, time da cidade de Lençóis Paulista, onde conheceu um jovem político chamado Ulisses Guimarães que o manteve no time da cidade, conforme o próprio Didi conta numa entrevista nos anos 1990, veiculada posteriormente no programa “Grandes Momentos do Esporte”, na TV Cultura.

Didi voltou ao Rio de Janeiro no final dos anos 1940, para jogar no Madureira e no Fluminense, onde foi reconhecido pela primeira vez como grande jogador. Em 1950, marca o primeiro gol do Estádio Mário Filho, o Maracanã, numa partida festiva entre as seleções Paulista e Carioca. Em 1957, o já nacionalmente reconhecido Didi chegou ao Botafogo, que não ganhava nenhum título desde 1948. Foi decisivo para a superação desse jejum: liderou o time numa final vencida por 6 a 2 contra o favorito Fluminense, para a festa dos botafoguenses que passam a ver em Didi um ídolo a ser reverenciado.

Para comemorar o título e o fim do jejum, Didi caminhou uniformizado de General Severiano, sede do Botafogo, até a sua casa, na Rua Coelho Neto, no bairro de Laranjeiras, acompanhado por torcedores e por sua esposa Guiomar, cumprindo a promessa que havia feito contra quem não acreditava no título. A crônica esportiva passou a identificá-lo como “O Príncipe Etíope”, pela classe com que jogava e pelo aspecto de nobreza que mantinha no trato e na liderança da equipe. Homem de confiança do também mítico João Saldanha, o “João Sem Medo”, comunista, jornalista e então técnico do Botafogo, Didi torna-se o “meia-armador” clássico, aquele que joga e que pensa o jogo, cria estratégicas e adaptações para que o time pudesse funcionar.

Mas e a folha-seca, que nos encantou e encanta? Como o chute apareceu? Onde se encaixa na saga de Didi? Não deixa de ser curioso que uma forma de bater na bola possa ter uma genealogia, uma explicação para a sua existência, mas trata-se exatamente do caso. E é o próprio Didi quem revelou a origem do chute, numa conhecida entrevista para a edição de agosto de 2000 da Revista Bundas, criada pelo ilustrador Ziraldo. Vejamos a descrição de Didi da origem da folha-seca, que começa num jogo noturno daquela extensa carreira futebolistica:

Eu levei uma pancada no tornozelo, um carrinho que tocou meu pé apoiado. Inchou na mesma hora. Botaram éter, e tal, e eu terminei o jogo. Mas fiquei quinze dias fazendo exames, pra ver se tinha infecção. Não acharam nada e eu não ficava bom. Aí eu comecei a bater na bola “cortando”, e não sentia. Comecei a fazer peso. Amarrei um paralelepípedo com arame, coloquei um paninho pra não ferir o pé e fiquei suspendendo, com a ponta dos dedos. Fiquei com isso aqui forte [aponta a parte superior dos dedos, logo abaixo do peito do pé], mas perdia as unhas a cada três meses. E eu jogava com a chuteira 40, embora calçasse 41, para o pé ficar bem coladinho. Eu colocava a chuteira antes de entrar no gramado, amarrava ali mesmo. Não usava tornozeleira nem faixa, só meia e chuteira. E dava um laço de sapato, comum. Eu pegava na bola “cortando”, e ela passava a barreira e caía. Quer dizer, a única preocupação era tocar certo pra que a bola passasse da barreira. Se passasse, era só levantar os braços, ela ia lá no cantinho. 

Para Didi, que fora mecânico automotivo, buscar soluções alternativas poderia ser comum. Tais soluções alternativas (ou “gambiarras”) podem muitas vezes ter sido necessárias para a sua própria sobrevivência. Didi também tinha uma perna menor do que a outra, devido a uma falta violenta que sofrera no início da carreira. Essa situação fazia com que tivesse que pensar rápido em dribles e passes, para evitar que se desequilibrasse ou que a bola fosse tomada. A folha-seca surge então como uma adaptação, um modo de bater na bola, no qual o pé contundido não sofresse tanto. No entanto, ao “cortar” a bola, Didi percebeu que produzia um efeito diferenciado, útil para vencer o goleiro em chutes de longa e média distância. A bola “variava” mais, como aquelas bolas dente de leite de nossas infâncias.

Trata-se então de um chute como adaptação às circunstâncias, considerando o que se sente e o que era necessário para a superação, conforme as condições do meia-armador. Contrariando a ingênua racionalidade, Didi cria um meio de vencer a gravidade e jogar com ela, fazendo a bola subir e cair de forma a contrariar expectativas. Um dos gols mais importantes da história do futebol brasileiro veio de uma folha-seca de Didi, num jogo perigoso contra o Peru, nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 1958, em 21 de abril de 1957. Depois de empatar o primeiro jogo, o Brasil precisava vencer, pois, caso contrário, poderia ficar fora da Copa do Mundo. Num contexto de duas derrotas trágicas nos mundiais de 1950 e 1954, um fracasso maior seria nem participar do próximo Mundial.

A seleção peruana cometeu então uma falta na entrada da área, aos 10 minutos do segundo tempo. Tratava-se de uma boa ocasião para um chute direto, objetivo e forte, que poderia encaminhar o Brasil para a Copa. Mas Didi vai para a batida e já se esperava outra ação. Sai então uma folha-seca, uma batida na qual a bola subiu e caiu de repente, realizado com o lado externo do pé, que confundiu o goleiro peruano Rafael Asca, que esperava um chute direto e objetivo. A bola ainda bateu no travessão antes de quicar dentro do gol, com o goleiro imóvel no centro da meta (conforme podemos ver na inacreditável foto que captou esse exato momento). Gol do Brasil, classificado para voar em direção à Copa da Suécia e à história.

3. A folha-seca assombra o mundo

Na competição mundial, a seleção brasileira só enfrentou seleções europeias. Venceu a Aústria por 3 a 0, empatou em 0 a 0 com a Inglaterra, e a incrível sequência de vitórias por 2 a 0 contra a União Soviética, 1 a 0 contra o País de Gales, 5 a 2 na França e finalmente 5 a 2 na Suécia, em Estocolmo, com exibição quase perfeita do time vestido de azul, “sob o manto de Nossa Senhora”, nas palavras de um dirigente da seleção. Contra a União Soviética, Didi dá um passe em curva para Vavá abrir o placar, num jogo conhecido pelos “três minutos mais fantásticos da história do futebol”, nos quais o Brasil dominou o jogo contra os racionais e maquínicos soviétivos. Já no jogo contra a França, Didi marcou de folha-seca, contra o atônito goleiro Claude Abbes, abrindo caminho para a goleada. 

Na final da Copa do Mundo, houve um prenúncio de tragédia: o Brasil tomou um gol da Suécia, numa falha impensável para um jogo daqueles. O fantasma de 1950 poderia voltar. Mas Didi caminhou tranquilamente, buscando a bola dentro do gol e orientando o time, com a bola debaixo do braço. O atento Didi parece superar naquela caminhada as desconfianças que inferiorizava o futebol brasileiro entre os grandes europeus. A explosão de alegria do estádio pareceu não impactar o frio, sensível e racional Didi, que, segundo as próprias palavras, optou por caminhar “devagarzinho” até o meio de campo para reiniciar a partida. Sente o gol, sente a torcida, e talvez até medo de um novo fracasso. Mas, ao mesmo tempo pensa, cria estratégia com os companheiros e diminui o ímpeto sueco. Na sequência, o Brasil deslanchou e impôs a vitória pelo placar de 5 a 2.

Na premiação, Didi recebeu um aperto de mão do Rei sueco, Gustavo Adolfo, que desceu ao campo para cumprimentar os novos campeões mundiais e conhecer o melhor jogador daquele Mundial. Didi também ganhou uma série de descrições da imprensa mundial, que exaltavam seu talento e liderança: “Oitava Maravilha do Mundo”, “Mr. Football”, “Napoleão Negro”, entre outros. Entre tais comentários, Gabriel Hanot, jornalista e referência da crônica esportiva europeia, atuando no tradicional jornal esportivo francês L’Equipe e na vultuosa revista France Football, descreve Didi após o título brasileiro:

Este homem é, na verdade, uma pérola negra muito rara e valiosa, que todo amante do bom futebol deve procurar ver e relembrar para todo o sempre. Afinal, não é muito comum aparecer um jogador com tais virtudes, em qualquer parte que seja. E Didi é a um só tempo artista, malabarista e jogador de futebol. Um passe seu de 50 metros equivale a meio gol. E, quando chuta, suas bolas fazem como o próprio mundo: giram, giram, giram… E traçam, irremediavelmente, uma parábola fatídica para o melhor dos arqueiros…

No ano seguinte, 1959, Didi e a esposa Guiomar desembarcaram no verão de Madrid para que o meia-armador pudesse compor o gigante Real Madrid, de Don Santiago Bernabeu, que não media esforços para formar um time com os melhores do mundo. Didi foi o primeiro homem negro a vestir aquela camisa. Ali já estavam Alfredo Di Stéfano, argentino naturalizado espanhol, o “dono do time”, e o mítico Ferenc Puskas, ex-capitão do exército húngaro e líder da seleção da Hungria que assombara o mundo anos antes. Ali consegue títulos e um relativo sucesso, porém, dada a concorrência e os afetos envolvidos, principalmente numa disputa com Di Stéfano sobre o papel principal naquele grande time, Didi resolve voltar ao Botafogo no ano seguinte. 

Campeão do mundo e mundialmente reconhecido, o brasileiro fora uma grande ameaça para a estrela maior daquela companhia. Mesmo assim, o seu distinto chute ainda teve sucesso no país das touradas. Nas suas palavras, na entrevista para a Revista Bundas: “No Real Madrid, eu tentava calcular a folha-seca de acordo com o vento que soprava no estádio. Pra isso treinava muito, mas não revelava o segredo a ninguém. Todos achavam que era por acaso.” E o próprio Di Stéfano reconheceu seu talento, conforme conta em sua autobiografia Gracias, Vieja: “Como jogador, Didi era extraordinário. Jamais vi alguém chutar como ele. Pude observá-lo fazer passes inacreditáveis, lá do meio-campo. Parecia que a bola sairia reta, mas subitamente desandava a fazer curvas, mudando misteriosamente de direção. Seu chute era puro efeito! Tentei imitá-lo algumas vezes, mas jamais consegui…”

Aos 32 anos, Didi voltou ao Botafogo, para jogar novamente com maestria e alegria. Em 1962 sagrou-se bi-campeão mundial, na Copa do Mundo do Chile, confirmando o potencial da “escola brasileira de futebol”. Nos anos seguintes, Didi iniciou outra carreira, agora como treinador de clubes brasileiros e estrangeiros, além de passar por seleções de diferentes continentes. Em 1970 levou uma forte seleção peruana para a Copa do Mundo do México, onde, num fatídico encontro, vê seu time ser derrotado pela seleção brasileira cujo sucesso ajudou a construir. Continuou a rodar o mundo, com trabalhos no Oriente distante e indo e voltando ao Brasil. Multicampeão, respeitado no mundo do futebol e figura lendária da construção da identidade futebolística do país, Didi morreu aos 72 anos, em 2001, no Rio de Janeiro.

4. Quem pensa e quem sente?

O desenvolvimento de um chute que fazia a bola voar e cair como uma folha-seca veio de uma adaptação necessária ao que Didi sentia num certo momento, situação que o fez buscar recursos e ajustes para a continuidade do jogo, conforme relata a descrição que o prórpio jogador fez. Há aqui uma relação entre corpo e mente, que parece revisar uma concepção de senso comum que temos sobre essa relação: uma mente que planeja e orienta um corpo que age. No entanto, no caso de Didi, aquilo que seu corpo sentiu promoveu mudanças no ritmo de sua ação, criando uma solução funcional e que que passou a ser otimizada e direcionada pela mente do sujeito. A exposição parece tomar rumos estranhos, mas é justamente essa estrannheza que nos veio à mente na continuidade do entendimento da folha-seca. 

O neurocientista português António Damásio apresentou caminhos sobre esse estranho debate das relações entre mente e corpo. Damásio realizou estudos inovadores em neurociência, fundamentais para a ampliação da compreensão a natureza constitutiva do pensamento de ordem superior. Num provocativo livro de 1994, intitulado O erro de Descartes: Emoção, razão e o cérebro humano, busca evidenciar que “não somos máquinas pensantes que sentem, mas somos máquinas sensíveis que pensam”. O “erro de Descartes” do título do seu livro seria a concepção tradicional do filósofo francês de que haveria uma superioridade, um domínio puro e simples da mente em relação ao corpo, que, domado por aquela, conduziria processos racionais e deliberativos da experiência humana. Ou, conforme descrito em latim, cogito, ergo sum (penso, logo existo).

No entanto, partindo de investigações neurocientíficas e evolutivas sobre os modos através dos quais os afetos e sentimentos atuam nos humanos, Damásio concluiu que tais divisões tradicionais entre corpo e mente, matéria e espírito, carne e alma são ilusórias, pois compreendem de forma inadequada os processos de florescimento da vida e os modos pelos quais as formas de vida lidam com a realidade. O caso da distinção entre razão e emoção é mais um dos mitos que criamos acerca de nós mesmos, a partir da pressuposição de existência de um pretenso elemento superior (racional ou espiritual), para além da matéria e da natureza, que nos torna autônomos em relação ao mundo natural. Nada mais distante da realidade segundo Damásio, uma vez que até mesmo nossas capacidades mais sofisticadas de pensamento e reflexão estão envolvidas de sentimentos e emoções, dos quais não podemos escapar. 

Nossa distinção reside numa combinação singular para Damásio. De um lado encontramos especificações para a vida que nunca tivemos chance de estipular, como as necessidades, os riscos e as exuberantes forças propulsoras de dor, prazer, desejo e impulso reprodutivo – o “duro desejo de durar” de toda forma de vida – oriundo de tempos remotos e ancestrais. De outro lado, graças a recursos cognitivos que se expandiram de maneira gradual, porém decisiva, desenvolvemos capacidades para diagnosticar as circunstâncias que sentimos e experimentamos, respondendo de maneira inventiva aos desafios colocados pelo ambiente (como a contusão no pé de Didi que o impedia de chutar normalmente).

Em A estranha ordem das coisas, livro de 2018 que dá continuidade à contestação ao dualismo cartesiano entre mente e corpo, Damásio destaca que, intuitivamente, imaginamos que para haver qualquer forma de cultura, primeiramente é necessária uma mente, ou algo parecido com uma mente, pronta e acabada. Só assim, ao guiar um corpo inerte, essa mente poderá produzir e reproduzir cultura, guiando sentimentos. No entanto, conforme a hipótese de Damásio, a ordem das coisas é estranha pois se trata do inverso disso: “A atividade cultural começa e permanece profundamente alicerçada em sentimentos.” Essa nova visão tem implicações relevantes, uma vez que precisamos agora reconhecer as interações favoráveis e desfavoráveis dos sentimentos com o raciocínio caso quisermos compreender os conflitos e as contradições humanas.

Para explicar esse desenvolvimento, Damásio aborda o modo principal através do qual as formas de vida se regulam: a homeostase. Trata-se de um processo de regulação entre as formas de vida e os meios onde se encontram. Na sua definição: “A homeostase é o conjunto fundamental de operações no cerne da vida, desde seu início mais antigo – e há muito tempo desaparecido nos primórdios da bioquímica”. Trata-se assim de um “imperativo poderoso”, cuja realização permite a todos os organismos “nada menos do que perdurar e prevalecer” A homeostase produz sensações e sentimentos nas formas de vida, pautando reações e comportamentos. E não foi diferente no caso da espécie humana.  

Numa distinção entre “mundo interno” e “mundo externo”, Damásio apresenta sua hipótese sobre a origem dos sentimentos a partir de processos homeostáticos e sobre como tais sentimentos passam a ter conteúdo informativo para as formas de vida. A partir disso, as mentes se expandem e se enriquecem de informações do seu redor, juntamente com o desenvolvimento da memória, configurando respostas emotivas em relação aos acontecimentos e relações. Dessa forma, um rico caminho estará aberto para o florescimento da consciência e da subjetividade. O retrato do humano aqui é inovador, pautado por sentimentos e emoções que impactam o modo como construímos nossa relação com a realidade, criando soluções para a nossa manutenção. Uma mente puramente livre, independente do corpo e dele soberana, parece então um quadro a ser revisto.

5. O segredo de tudo

Sepp Herberger, técnico da Seleção da Alemanha campeã do mundo em 1954, vencendo a Hungria na final da Copa da Suiça, viajou para o Brasil logo após a Copa de 1958. Conhecido como “A Raposa”, por ter dominado e vencido a forte seleção húngara, Herberger veio ao país para conhecer os talentos e as estratégias dos latino-americanos. Nada melhor então do que estar com os campeões do mundo, que alegraram a Europa com novas formas e possibilidades para o esporte. Num desses momentos, encontrou com Didi, a quem não deixou de perguntar: “Esse toque na bola meio de lado, estaria aí o segredo de tudo?”. Conforme relatado por Péris Ribeiro, em seu livro sobre Didi de 1993, o brasileiro respondeu: “Sabe que nem sei mais, sêo Herberger… Acho que tudo acontece é na hora do lance, quando a gente decide que rumo a jogada deve tomar.”

A resposta de Didi evidencia que a contingência das circunstâncias faz o corpo promover respostas, sem planejamento e estruturação prévias. Talvez ele próprio não soube respoder justamente por ser uma prática naturalizada, na qual o próprio corpo sabe o que fazer.  E provavelmente nem existissem meios para explicar aquela forma de chutar em termos objetivos e racionais. No caso da folha-seca, bater na bola “meio de lado” foi fruto da necessidade de minimizar os efeitos de uma dor, logo aperfeiçoada para uma batida consciente, com a qual fez gols e lançamentos. Não havia “um segredo de tudo”, do qual um sujeito era senhor e proprietário, mas sim um aperfeiçoamento de um modo que floresceu em meio a circunstâncias de uma vida e suas necessidades. Por homeostase, da descrição de Damásio, num equilíbrio entre ambiente e vida, que se mantém em busca de respostas aos desafios da realidade. 

Conforme vimos, tal cenário aponta para a contestação da concepção cartesiana de humanidade, uma visão cindida entre corpo e mente, com consequências para outras fragmentações entre nós mesmos, outras formas de vida e o mundo, tais como as conhecidas distinções entre razão e emoção, natureza e cultura, humanidade e animalidade. Quem apontou o risco de tais fragmentações para a compreensão da humanidade foi a filósofa britânica Mary Midgley (1919-2018), cujo trabalho envolveu principalmente a tentativa de superação de tais enquadramentos, promovendo um retrato mais amplo e coerente do que somos e como vivemos. Em diálogo com outras áreas, Midgley promoveu reflexões sobre o risco de visões fragmentadas da natureza humana, que produziram um estranho retrato da humanidade, numa forma de vida cindida entre “guerras internas e externas”.

Midgley argumenta que razão e sentimentos não são forças separadas e opostas, mas sim aspectos interligados do nosso ser. Não é possível promover uma separação prévia entre tais instâncias, porém, à maneira cartesiana, dissociamos a mente do corpo e tratamos este último como algo que a razão pode e deve “superar”. Reconhecemos então apenas as características que parecem ser exclusivas dos seres humanos, em particular a capacidade de raciocinar, e criamos um mito de que somos dotados de agência através de uma “central”, que domina nossos corpos e deliberações, numa concepção distorcida da vida humana. Numa de suas análises concisas, Midgley aponta em A presença dos mitos em nossas vidas (2003) que: “A divisão do mundo por Descartes entre esses dois superpoderes, mente e corpo, que mal se comunicavam, é extremamente insatisfatória.”

Nesse sentido, Midgley defende a unidade de nossa natureza, principalmente em relação às estruturas mais básicas de nossas motivações, que envolvem tanto pensar quanto sentir. Tais motivações e seus elementos podem muitas vezes entrar em conflito, mas podemos lidar com tais circunstâncias também a partir de condições de nossa própria natureza. As divisões artificiais de tais processos, além de infrutíferas, não podem ser percebidas na prática e remetem a expectativas de um projeto fragmentador e reducionista, que visa a compreensão da realidade a partir de partes menores constituintes que se juntam e formam o todo.

O peculiar chute de Didi, que tentávamos replicar sob o olhar atento de meu pai naquelas manhãs no interior, nada mais é do que uma evidência disso. Didi é incapaz de explicar em termos objetivos como o faz para Herberger, pois sua prática está ligada à natureza unificada e conjunta de mente e corpo, que não são fragmentados e não se sobrepõem. Entender para replicar, num processo de engenharia reversa, como possivelmente pretendia o racional e objetivo técnico alemão, seria inviável, já que uma “receita” para folha-seca demandaria uma separação entre uma mente que raciocina e um corpo que atua. Somente Didi, através de sua história, ambiente, circunstâncias, contingências e adaptações, conseguiu aprimorar o chute. Diferente da expectativa do mito cartesiano, sentir e saber estavam envolvidos nos segredos da folha-seca e em todo o resto.

Referências

CASTRO, Ruy. Estrela solitária: Um brasileiro chamado Garincha. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

DAMÁSIO, António. A estranha ordem das coisas: As origens biológicas dos sentimentos e da cultura. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. (2017)

DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: Emoção, razão e o cérebro humano. Tradução de Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (1994)

DESCARTES,  René. Discurso  do  método.  Tradução de J.  Guimburg  e  Bento  Prado  Jr.  São  Paulo: Nova Cultural, 1987. (1637)

MIDGLEY, Mary. A presença dos mitos em nossas vidas. Tradução de Alzira Allegro. São Paulo: EdUnesp, 2014. (2003)

MIDGLEY, Mary. Beast and man: The roots of human nature. Ithaca: Cornell University Press, 1978.

PORTO, Roberto. Didi: Coleção Perfis do Rio. Relume-Dumará, 2001.

RIBEIRO, Péris. Didi: O gênio da folha seca. São Paulo: Gryphus Editora, 2014.

RODRIGUES, Nélson. A pátria em chuteiras: Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

RODRIGUES, Nélson. À sombra das chuteiras imortais: Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

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