“Guardiola: El orden es el que alimenta la espontaneidad. Panzeri: La espontaneidad es la que construye el orden natural”. Rodrigo Zacheo
“A bola vai às posições, e não as posições vão até a bola’’. Juanma Lillo
“De hecho, en el fútbol todo se basa en la distancia”. Cruyff sobre o que aprendeu de Rinus Michels
“El fútbol bien jugado tiene tácticas: ¡muchas! En lo posible una para cada jugada. No una sola para cada partido. Pero todas en el momento, imprevistas. Porque el fútbol es lucha de imprevistos”. Dante Panzeri
“Garrincha não pensa, vive então de quê? Vive do instinto, da prodigiosa e instantânea clarividência do instinto. Enquanto os outros se atrapalham e se confundem de tanto pensar, Garrincha age com rapidez instintiva e incontrolável”. Nelson Rodrigues
Barcelona, 13 de fevereiro de 1999. Naquele sábado frio, Kluivert recebe a bola de costas para o gol, gira, e dá um passe picado por cima da defesa adversária para Rivaldo invadindo a área pelo seu centro. Era o terceiro (e último) gol do Barcelona contra o Real Madrid. No vestiário, a alegria pela goleada foi substituída por um Van Gaal sisudo. Ele estava irritado com Rivaldo. No seu jogo de posição, que variava entre o 343 e o 433, Rivaldo era um ponta-esquerda. O brasileiro devia manter sempre sua posição e esperar a bola chegar em vantagem para desequilibrar com dribles, gols e cruzamentos, mas sempre preso à ponta. No terceiro gol, Rivaldo abandonou o espaço determinado, se tornou um meia-atacante por trás de Kluivert junto a Luis Enrique, tanto é que ambos invadiram a área no passe do holandês, fez o gol e irritou Van Gaal. Essa história foi contada por Rivaldo num documentário feito pela Barça TV[1].
No final daquele ano, Rivaldo — entre desobediência e obediência à ponta — foi premiado como o melhor do mundo pela FIFA. O prêmio lhe deu coragem a dar um ultimato a Van Gaal: quero disputar a posição no meio por trás do atacante. O recém melhor do mundo foi para o banco e o time perdeu. Enquanto holandeses, como Cocu e Kluivert, apoiavam o técnico; outros, como Sergi, diziam que o brasileiro brilhava mais como “falso 9” ou 10. Para os holandeses, Rivaldo devia cumpria sua função dominando o espaço para que a equipe interagisse melhor depois. Para Rivaldo e os brasileiros, o talento exige liberdade de expressão, rompendo (sem anarquia) os espaços pré-determinados, buscando as interações e as tabelas rápidas, dominando deste jeito os espaços.
Este episódio, como tantos outros, nos mostra um choque futebolístico entre duas culturas tão diferentes. No futebol, há o espaço e o tempo. O espaço é o suporte para a criação, o lugar que permite a interação entre os sujeitos. Santo Agostinho, um dos principais filósofos que falaram sobre o tempo no Ocidente, costumava dizer que o tempo é percepção psicológica. Para ele, havia o eterno na “Cidade de Deus”, e o tempo na “Cidade dos Homens”. O tempo, como suporte do eterno, era decorrer e percepção da consciência individual. Não há passado e futuro como separados, mas o presente do passado, o presente do presente, e o presente do futuro. O tempo depende da consciência do indivíduo.
Espaço e tempo estão no futebol, mas como dominá-los individual e coletivamente? Para Van Gaal, era preciso controlar os espaços primeiro para depois fazer as coisas certas no tempo certo. Ou seja, dominar o espaço antes para interagir depois. Para Rivaldo, era preciso fazer as coisas certas e no tempo certo para mandar nos espaços. Ou seja, dominar o tempo antes do espaço. Esse choque entre duas maneiras distintas de enxergar o futebol, cada uma com sua razão, não excluíam espaço ou tempo, mas viam a relação entre ambos cada um à sua maneira.
Nesta tradição, encontram-se as raízes da falta de entendimento atual sobre a recepção do “guardiolismo”, não só no Brasil. Triangulações, terceiro homem, jogo de posse, amplitude, tudo isto pode existir em vários tipos de organização ofensiva, embora sejam confundidos atualmente como sinônimo de “jogo de posição”. A essência de cada organização ofensiva se encontra na maneira como se apropria de cada elemento do futebol num todo integrado. E isto também não significa que as coisas são estáticas ou que não exista hibridismo entre as várias formas de ataque. Para entender o jogo de posição, é preciso primeiro chegar à sua tradição originária.
1. Ataque Posicional: a tradição inglesa
De maneira mais estruturada e como filho do Rúgbi, o futebol — tal como entendemos hoje — começou na Inglaterra, embora “jogos de bola” e com os pés sempre tenham existido e em diversas culturas. O futebol nasce na Inglaterra em plena “era vitoriana” no século XIX. Há uma palavra para entender o seu contexto: exterioridade. Na “Era Vitoriana”, a moral de cada sujeito já não era apenas uma relação de cada indivíduo com sua consciência (diante de Deus ou não), mas uma relação exterior com o seu meio social. Isto significa que era preciso provar para toda a sociedade as suas virtudes morais. Era uma época de “exterioridade da moral”. E o esporte, como uma secularização da guerra, era um dos lugares onde os sujeitos deveriam demonstrar virtudes como a coragem, a disciplina e a autoconsciência do eu.
O futebol nasce na Inglaterra muito ligado ao domínio dos espaços e às estas virtudes específicas que deveriam ser demonstradas. Quando chega ao Chelsea em 2009, Carlo Ancelotti diz que, diferente da Itália, na tradição inglesa se considera menos a ideia de assimetrias, coberturas, compensações, etc. Para ele, isto dificultava o pressing, fazia os jogos mais verticais, buscando as costas da última linha defensiva e a prova física o tempo inteiro na demonstração de coragem e impetuosidade.
A ideia de domínio de espaço sempre foi algo caro ao futebol inglês, que ficou caracterizado na origem do jogo pelas bolas longas, disputa pelo rebote, vitórias físicas, etc. Segundo Jonathan Wilson, no livro A Pirâmide Invertida, as novas regras do impedimento na década de 1920 (agora se exigia que dois e não mais três adversários estivessem entre o receptor da bola e o gol) levaram a passagem dos primeiros esquemas em 1–2–7 ou 2–2–6 ou 2–3–5 para o 3–2–5 (WM), devido a necessidade de ter mais homens para defender e fazer transições. A mudança na lei facilitou o jogo por baixo, de transições e aumentou o número de gols.
Um nome fundamental é o do treinador inglês Herbert Chapman. Antes da mudança da lei, segundo Wilson, ele já havia construído o time do Northampton Town para atacar não só buscando o domínio nas bolas longas, mas contra-atacando em velocidade. A partir de 1925, e depois da mudança na lei do impedimento, dirigiu com grande sucesso o Arsenal. Os seus times se destacavam pelas transições e pela elaboração ofensiva em velocidade. As funções dos jogadores estavam ligadas ao espaço. Usando o WM, cada jogador ocupava uma posição, e o nome desta correspondia ao espaço que devia ocupar e vencer, para depois interagir socialmente e controlar o tempo, acelerando-o sempre que possível. Por exemplo, um “right winger” (ponta-direito) estava sempre aberto na direita e deveria se lançar rapidamente ao ataque. Diferente do mundo italiano, brasileiro ou argentino que, como veremos depois, as posições não correspondiam necessariamente ao espaço.
Este jogo, transformado na década de 1920, cria a percepção de que é realizado em quatro partes agora: defesa posicional, transição defesa-ataque, ataque posicional, e transição ataque-defesa. O ataque posicional se torna uma das fases do jogo, em especial, para a realização de ataques verticais, dominando primeiro o espaço para fazer tudo no tempo adequado. O ataque posicional é, na verdade, uma maneira de atacar controlando os espaços em primeiro lugar, cara ao mundo anglo-saxônico e às suas raízes culturais, e não uma fase propriamente dita do jogo. Do mesmo modo, a defesa posicional pode ser substituída por outras formas de organização, como mostrou a Itália posteriormente.
No século XIX, nasce na Escócia, a ideia de um futebol de posse, que temporiza as ações dos jogadores ao invés de buscar bolas longas e disputa-las. Wilson afirma que este estilo ficou famoso no Queens Park da Escócia. Todavia, se este tipo de “futebol de posse” não foi o mais influente no mundo inglês, foi exportado para outros lugares da Europa por vários treinadores. A principal figura aqui é a de Jimmy Hogan. Ex-atacante do Bolton, foi um treinador com sucesso na Hungria, na Áustria e na Suíça. Exportando o jogo escocês de toques curtos, posse, mobilidade entre as posições, domínio do tempo para o espaço, construiu o que ficou chamado de “Danubian School”. Neste sentido, as influências se realizaram de acordo com cada país. Na Áustria, o “Wunderteam” comandado pelo atacante lendário Sindelar (talvez, o primeiro “falso 9”), trocava passes com muita mobilidade entre os jogadores; enquanto o estilo alemão era mais veloz e a Hungria dos anos 50 utilizava mais das transições.
Assim, nasce no futebol europeu tanto o estilo mais posicional, que marcou época entre os ingleses, quanto o “futebol funcional”, que exigia mais mobilidade, criação, assimetrias, funções descritivas de movimentação (como o falso 9) e não simplesmente espaciais, e a força individual no controle dos tempos do jogo para dominar os espaços. Do espaço para o tempo ou do tempo para o espaço. Se você pegar as posições do futebol no idioma inglês verá que as posições são sempre atreladas ao espaço (left back, right back, defensive midfield, right midfield, left midfield, attacking midfield, second striker, centre-forward, right winger, etc), não encontrando um similar para a ideia de “falso 9”, uma descrição de movimentações, compensações, uma função descrita primeiro no controle do tempo.
A influência austríaca-alemã foi fortíssima no futebol italiano, e a influência húngara marcou o futebol sul-americano, em especial, o brasileiro. No futebol holandês, a influência do futebol clássico inglês é marcante. E lá, nasce uma nova maneira de enxergar o domínio dos espaços, que depois dará no “jogo de posição”.
2. Jogo de Posição: a bola vai às posições
2.1. Os primórdios do Jogo de Posição e o “Futebol Total”: a superioridade vem do jogo
Apesar de uma curta passagem de Jimmy Hogan pela Holanda entre 1909 e 1910, a grande influência do futebol holandês veio do jogo praticado na Inglaterra, país de tradições culturais em comum. Em 1865, o primeiro jogo de futebol realizado na Holanda foi organizado por trabalhadores ingleses do setor têxtil, que jogaram contra membros britânicos de uma delegação que se encontrava na cidade de Haia. Até hoje, há o uso de muitos termos em inglês (como side back, centrales, wing, centre forward) em concorrência às adaptações holandesas.
Fundado em 1894, o estádio do Ajax ficava próximo de um bairro de judeus em Amsterdã, criando uma forte ligação entre o clube e os judeus. O clube começou a se tornar grande a partir do período em que foi dirigido pelo inglês Jack Reynolds, entre 1915 e 1925, 1928 e 1940, e 1945 e 1947. Reynolds era um adepto do futebol rápido de Chapman, como também gostava de trabalhar transições com passes curtos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, Reynolds tornou-se prisioneiro dos nazistas, que tinham invadido a Holanda. Ele ficou num campo de prisioneiros na Polônia até a sua libertação. Numa bela história, voltou a liberdade ao fim da guerra para treinar o Ajax e ser campeão holandês novamente, dirigindo o jovem atacante Rinus Michels de 18 anos.
Entre Reynolds e o Rinus técnico em 1965, o Ajax teve outro inglês no comando: Vic Buckingham, o mesmo que também antecederia Michels no Barcelona. Buckingham tinha uma grande ênfase no futebol de posse. Quando o inglês dirigiu o West Bromwich nos anos 1950, a imprensa inglesa o comparou ao futebol húngaro que tinha submetido a seleção inglesa a grande humilhação em Wembley no mítico 6 a 3 de 1953. O Ajax combinaria velocidade, direção espacial e um sistema baseado em toques curtos não só em transições. Para reforçar a “escola Ajax”, as divisões de base eram instruídas a praticarem o mesmo futebol do profissional, comandadas por Jany Van der Veen como destaca Cruyff[2].
Quando Rinus Michels assume o Ajax há um ponto de culminação desta tradição e também de novo impulso. O historiador inglês das raízes culturais do futebol holandês, David Winner, afirma que o jogo proposto por Michels estava de acordo com a reatualização da pintura e da arquitetura clássica holandesa, que valorizava a manipulação dos espaços[3]. Cada polegada do espaço seria minunciosamente trabalhada, de maneira obcecada e precisa, tal como um Saenredam no século XVII.
Rinus Michels foi um verdadeiro arquiteto do “futebol total”. No começo do século XX, a cidade de Amsterdã foi reformada pela arquitetura expressionista, influenciados pela ideia de Michel de Klerk que a cidade industrializada deveria crescer como uma “obra de arte”[4]. Cada espaço público da cidade deveria ser modelado de acordo com um conceito único e integrado, sendo a cidade a expressão do sentimento dos seus cidadãos. Era preciso primeiro manipular os espaços para depois eclodir a expressão de sentimentos dos indivíduos. Era a “Cidade Total”. Um dos arquitetos desta escola, Dan Roodenburgh, foi membro da diretoria do Ajax nos anos 1930, implantando a ideia de que a disciplina coletiva e o domínio dos espaços eram fundamentais para os indivíduos se expressarem posteriormente.
Durante os anos 1960, as ideias da “Cidade Total” voltaram à tona em Amsterdã, com a percepção de que cada espaço deveria ser manipulado corretamente num conceito integrado para obter do indivíduo a resposta mais adequada. Em 1963, foi lançado o “Total Design” por Wim Crouwel. Por ser manipulado, estes espaços não deveriam ser lineares como no modernismo do início do século, mas plásticos, móveis, interativos, etc. Os edifícios deveriam manipular os espaços para serem flexíveis para a expressão do indivíduo, embora integrados. O espaço dominado levaria à arte colaborativa[5].
O “Futebol Total” (totaalvoetbal em holandês) de Michels era uma reprodução da “Cidade Total”. Michels, apelidado de “O General”, pensava que o futebol era como a guerra e como bom holandês era um obcecado por espaços e pelo seu domínio. A sua ideia era fazer um futebol de posse, passes curtos e imposição partindo primeiro do domínio de espaços como na tradição inglesa de autodisciplina. E aqui surge também o mito que os times anteriores de posse o faziam porque possuíam grandes jogadores, mas não tinham organização e estratégia para tal, tendo os holandeses conferido método ao “futebol bonito”. Os times anteriores eram organizados, mas não do espaço para o tempo, mas do tempo para o espaço, com outros tipos de conceitos.
A Holanda não era uma seleção de destaque, nem os seus times tinham tido enorme sucesso na competição europeia. Michels acreditava que poderia obter sucesso fazendo do jogo (o coletivo, o conceito integrado da “Cidade Total”) o protagonista. Por isto, disciplinando o corpo e ensinando a mente, os jogadores poderiam exercer o futebol de posse primeiro dominando os espaços.
O “Futebol Total” de Michels deseja o seguinte: a) dominar cada espaço do campo de maneira racional; b) tornar o espaço colaborativo, com jogadores mudando de posição embora dominando o espaço em que esteja; c) manter a posse com toques curtos buscando sempre desequilibrar o adversário e achar o homem livre por trás da linha defensiva do adversário.
A troca de jogadores por posições já era feita nos grandes times do passado como a Áustria dos anos 30 e a Hungria dos anos 50, mas estas trocas eram feitas pelas interações e funções práticas de cada jogador, reforçando a imaginação do indivíduo e sua capacidade de intuir e “brincar” com a bola. Michels, um sujeito bastante duro e amante dos jogos de estratégia e dos livros de guerra, achava esta maneira uma anarquia criativa. Para ele, era preciso criar mecanismos para manipular os espaços de maneira colaborativa. Assim, os jogadores se movimentavam pelas posições pré-determinadas, mas sempre com um deles ocupando o espaço determinado. No começo, Michels era um adepto do 4–2–4 construído pelo Brasil de 58, mas nos anos 70 se rendeu ao 4–3–3 (com o líbero, uma espécie de 1–3–3–3). No “carrossel holandês”, os jogadores mudavam de posição verticalmente:
Além disso, a equipe deveria fazer pressão na saída de bola adversária e fazer a linha de impedimento corretamente, subindo com todos os defensores juntos no momento coordenado. Com a bola, haveria sempre três posições na esquerda (Krol, Henegen, Rensenbrink), na direita (Suurbier, Jansen e Rep) e no centro (Rijsbergen, Haan e Neeskens), independente da troca de espaço entre eles. Krol poderia assumir o espaço de Rensenbrink, este vir atrás na de Henegen, e Henegen vai para a de Krol. Os três devem estar sempre em posições horizontais distintas para facilitar as tabelas. Cruyff era o elemento de total liberdade para recuar e triangular com estas três posições pelos lados e por dentro. A intenção era fazer do craque holandês a ligação para superar a linha de defesa adversária ou produzir o “homem livre” contra a marcação:
Na foto, Cruyff recua, e recebe a bola de quem estiver na meia-esquerda para acionar o ponta-esquerda, que se encontra por trás da segunda linha defensiva. Ao mesmo tempo, o mediocentro assume a posição de Cruyff. Deste modo, cada jogador deve dominar a posição independente de qual das três esteja, para que se possa triangular e encontrar o “homem livre” por trás da linha defensiva.
Assim, Michels queria construir um futebol de posse que fosse do espaço para o tempo, que dominasse cada pedaço de campo, e o jogo fosse o protagonista, sendo o jogador educado para exercê-lo bem desde as categorias de base. Um time hermético e perfeccionista, que manipulasse os espaços para que o indivíduo pudesse se expressar depois de maneira colaborativa.
Dos seus atletas, Michels exigia uma grande dose de responsabilidade, disciplina e autoconsciência de si e dos seus movimentos. Como afirma Winner, Michels falava de jogadores como números para um sistema e não como indivíduos[6]. O sistema global é mais importante do que a liberdade dos jogadores e sua intuição para formar um sistema como no mundo brasileiro, argentino, húngaro, italiano, etc. Winner compara Saenradam com os renascentistas italiano. Ao contrário dos italianos, no pintor holandês não há espaço para a opulência, os exageros, o pátrio que vem do familiar, mas só para a precisão e a minunciosidade[7]. Na pré-temporada, Rinus montava um verdadeiro acampamento militar para os seus jogadores.
Com Michels, o “futebol de posse” primeiro domina os espaços para depois os homens interagirem, com mecanismos e disciplina interior, diferente daquele futebol lúdico dos cafés de Viena ou do cinismo familiar italiano ou do futebol de atrair para enganar dos brasileiros. Ao contrário do que afirma a escola holandesa (algo disseminado hoje em dia por seus fãs), estes times que iam do tempo para o espaço não eram desorganizados, pelo contrário. Mas a maneira de organizar uma equipe partia de outras premissas e obedecia a outro tipo de lógica. O “Futebol Total” era um “maarkbaarheid”, para Winner, capacidade para moldar e controlar o ambiente físico, recebendo a resposta adequada dos indivíduos de maneira colaborativa[8]. Na tradição do ataque posicional, isto significou uma revolução, pois mostrou como os espaços do campo poderiam ser racionalizados e flexíveis ao mesmo tempo. Em outras tradições, legou principalmente a troca constante de posições, a pressão alta, a linha de impedimento. A ideia de que todos deveriam atacar e defender constantemente.
A respeito da importância da disciplina dos corpos no “Futebol Total”, Cruyff falou: “El Fútbol Total requiere jugadores con talento bajo una disciplina de grupo. Alguien que se queja o que no escucha es un problema para el resto, y se necesita un jefe como Michels para cortar eso de raíz. Aparte de la calidad de los jugadores, el Fútbol Total es, sobre todo, cuestión de distancia y posicionamiento. Esa es la base de todo el pensamiento táctico. Si aciertas con la distancia y la posición, todo encaja. También requiere mucha disciplina. Nadie puede ir por su cuenta. Eso no funciona. Si alguien empieza a presionar a un contrario, el equipo entero tiene que unírsele”[9].
Michels legou para Cruyff o entendimento da importância do espaço e da sua manipulação. Sistematizando muito dos movimentos daquele tipo de jogo, Cruyff percebeu que era possível praticar um tipo de jogo específico (chamado depois de “jogo de posição”), onde sua raiz era melhorar sempre a sua posição para criar vantagens em busca do “terceiro homem”. A (suposta) superioridade definitiva do jogo.
2.2. Cruyff e a criação do “jogo de posição”: sempre o “terceiro homem” livre por trás da linha defensiva
Quando assumiu o Ajax como treinador na década de 1980, a maioria dos times holandeses jogavam no 442 como na Inglaterra. Enfrentando dois atacantes, Cruyff pensou que só precisaria de dois defensores e um líbero. Contra uma linha defensiva de quatro, dois pontas bem abertos e um atacante. E quatro homens no meio-campo, em formato de losango, lhe dando superioridade. Era o 3–4–3, com os 4 do meio dispostos em losango e não em linha.
Todavia, foi no Barcelona que Cruyff teve mais sucesso e influência. No Barcelona que já havia tido treinadores notáveis neste tipo de jogo, como Laureano Ruiz, Vic e Michels. A ideia de Cruyff era construir uma maneira sistematizada de jogar na busca do domínio dos espaços e do tempo no campo. Como na escola holandesa, ele partia do espaço para o tempo. Dominar os espaços de maneira ordenada para interagir em vantagem.
Para isto, usava de vários conceitos como: a) simetria de sistema (ou seja, não havia mais jogadores de um lado do que de outro), mas com assimetrias verticais e horizontais para criar linhas de passe; b) amplitude, pois o campo precisava ser aberto pelos pontas para criar espaços e definir por dentro; c) profundidade para buscar a ruptura decisiva por trás da última linha defensiva; d) desmarques de apoios para ir garantindo que a equipe ia avançando no campo com toques curtos e com jogadores recebendo por trás de cada linha defensiva ou do defensor que o marca individualmente (e o jogo de passe “funcional” se apoia bastante nos desmarques para toques curtos, por sinal); e) a posse de bola para desequilibrar o adversário; f) obsessão por superioridades; g) pressão assim que se perde a posse da bola.
Todas estas características integrantes do time de Cruyff podem ser encontradas em vários sistemas. São fundamentais para ele, mas não são o que fazem o jogo de posição. O jogo de posição é o uso de tudo isto dentro de uma maneira específica de jogar o futebol. Ele pode ser caracterizado pela maneira de jogar que busca constantemente o terceiro homem em todas as suas ações de construção de jogo. Mas não é qualquer terceiro homem (presente em qualquer tipo de triangulação), mas sempre o terceiro homem que se encontra livre por trás das linhas de pressão do rival. Três características essenciais para tal:
a) Homens afastados da bola e bem posicionados (as posições)
No jogo de posição, não se deve correr muito, mas estar bem posicionado dentro da sua posição. Os jogadores devem se manter em suas posições, embora possam trocar uns com os outros de maneira adequada. Cruyff dizia: “Eu quero jogadores que possam fazer movimentos decisivos em pequenos espaços, quero que eles trabalhem o mínimo possível para economizar energia para aquela ação decisiva”. O holandês também dizia que os seus atacantes deviam correr só quinze metros, a menos que fossem burros ou dorminhocos.
Jogando no 343, cada jogador possui uma função ligado ao espaço que deve dominar. Assim, a equipe estará sempre agrupada na hora de circular a bola e pressionar após a perda dela. Os jogadores se movimentam pouco, sempre dentro da sua esfera de influência. Cruyff aposta na facilidade e eficiência do jogador que corre menos. No Bayern, Guardiola usava este campo de treinamento com posições todas demarcadas para posicionar cada jogador corretamente em seu espaço de acordo com a posição da bola:
Como sistematizou intelectualmente Lillo, os jogadores não devem buscar o setor da bola, mas esperarem no seu setor adequado (de acordo com o movimento da bola) a bola chegar em boas condições para a ação decisiva. Num ditado que já virou popular para explicar um dos elementos do jogo de posição: “a bola vai às posições, e não os jogadores vão até a bola”. Cada jogador tem sua posição correta para não correr muito, exigindo autoconsciência e disciplina. Ao mesmo tempo, dentro dessas posições se deve oferecer apoios em diferentes alturas no campo para facilitar as linhas de passe. Estas alturas são treinadas e especificadas de acordo com a posição da bola. Primeiro o espaço, depois a interação. Dominando o espaço, se deve dominar o tempo posteriormente para saber a hora certa de passar a bola, recebe-la, se desmarcar, etc. A ordem alimenta a espontaneidade.
Por estas características, se percebe como a figura do “ponta-armador” (ou do falso-ponta) não costuma existir no jogo de posição (ou mesmo em ataques posicionais que não fazem jogo de posição). O ponta-armador precisa ter liberdade para flutuar com a bola, um esquema de compensações para quando se perde a posse, o uso de muitos jogadores no setor da bola para tabelar curto e criar superioridade numérica, maiores deslocamentos e aposta na liberdade criativa e na sua inteligência intuitiva.
b) Jogar a partir das posições para criar superioridade
Estabelecida as posições, é preciso saber fazer a bola passar por elas e criar superioridade para os próximos portadores da bola até o gol. Para tal, é fundamental jogar curto e desequilibrar o adversário desde a saída de bola. Como definido por Lillo: movimentar a bola a partir das posições para que cada jogador em sua esfera de influência possa desequilibrar. O passe nunca deve ser feito no pé do companheiro, mas um metro a frente como estabelecia Van Gaal.
Uma saída de bola com menos gente perto da própria área e mais gente oferecendo apoio é importante para o jogo de posição para ampliar o campo e bater linha defensiva por linha defensiva. A “saída de três”, também chamada de “lavolpiana” (por causa do técnico argentino Ricardo La Volpe), abre os zagueiros e traz o volante central para jogar entre eles na saída, facilitando o uso dos laterais mais avançados e criando linhas de passe para exercer a ideia de terceiro homem por todo o campo. O Barça de Cruyff fazia essa saída de certa maneira com os dois zagueiros e o líbero.
A equipe deve buscar mover a bola sempre para atrair o adversário para um lado e resolver do outro. Se começa pela direita, termina pela esquerda. E assim segue. Passando a bola em espaços pequenos de um lado, podem jogar para o outro lado para o ponta aberto em superioridade qualitativa contra o defensor. É importante não confundir esta ideia com a de fazer um “lado forte” e um “lado fraco” nos ataques funcionais, que é outra coisa como veremos.
É interessante notar que Arnold Muhren dizia que o futebol era como um jogo de xadrez para os holandeses, pois deveríamos controlar o jogo com a bola, limitando os espaços, jogando mais com a cabeça do que com os pés. A ideia de ter superioridade é tocar sempre para encontrar um homem livre. Chegamos ao ponto mais importante do jogo de posição.
c) O conceito de “homem livre” (o terceiro homem)
Numa dessas descrições famosas, Xavi mostrou o que seria o “terceiro homem” e por que isto seria indefensável. Usarei o seu exemplo. Piqué sai com a bola, a conduz, atrai um marcador, Xavi está próximo dele, mas marcado. Messi oferece um apoio livre para o zagueiro com a bola. Piqué é o primeiro homem, Messi se torna o segundo homem e atrai a atenção do defensor de Xavi. Então, Messi pode tentar um passe direto para Xavi ou recuar para Piqué passar a Xavi livre e por trás da linha de marcação que subiu para defender Messi. Xavi é o terceiro homem, aquele que se encontra livre e por trás da linha defensiva para receber a bola e fazer o time avançar.
Nesta foto, dá para perceber o lateral-esquerdo como primeiro homem, o ponta como segundo homem, e Iniesta desmarcado para ser o terceiro homem. A ideia de terceiro homem como “homem livre” parte do seguinte princípio: usando o goleiro desde a saída de bola, há onze jogadores contra dez defensores. Um homem sempre estará livre desde que se saiba conduzir e atrair desde a saída de bola. A busca do jogo de posição é encontrar este homem livre por trás da linha defensiva para ir avançando no campo.
No caso exemplicado por Xavi, Piqué conduz a bola e atrai um defensor, a bola vai para a Messi e atrai a segunda linha de defensores. Recuando para Piqué, este pode encontrar Xavi livre, desmarcado depois destas linhas defensivas. O jogo se reinicia e Xavi é o novo primeiro homem. Assim, a equipe vai avançando no campo em vantagens e desequilibrando o adversário após trabalhar os espaços. Por isto, a bola pode ir sem problemas retornando ao goleiro, pois significa atrair para encontrar o homem livre.
Neste sentido, a função do primeiro homem é conservar ou atrair. Ele seria um intérprete da jogada. O segundo homem é um trabalhador, pois participa como figura passiva entre o primeiro e o terceiro. E o terceiro homem é o agressor, aquele que deve se desmarcar por trás da linha defensiva para receber a bola em vantagem. Este terceiro homem pode ser buscado também num passe vertical para o ponta ou mesmo num passe longo para o centroavante rompendo última linha defensiva. Cruyff dizia sempre: passe curto, mas olhar sempre para Romário se ele tiver em condições de romper. Como falava Van Gaal, quando o primeiro passa para o segundo, o terceiro já deve estar se movendo para o desmarque.
No Bayern, Guardiola precisava acelerar a rotação da troca de passes e ser mais vertical, então o time alemão buscava nos dois pontas o terceiro homem na maior parte do tempo. Douglas Costa e Coman, por exemplo, se encontravam abertos e profundos para receber por trás das linhas defensivas num passe mais longo e no 1 x 1 contra seus defensores. A superioridade aqui é qualitativa, a do drible em velocidade.
Em síntese, a busca do terceiro homem é o desejo de ir encontrando superioridades por trás da linha defensiva que pressiona o homem com a bola, criando vantagens dali em diante quando se encontra o homem livre. Contra a defesa individual, é busca pelo desequilíbrio e encontro do homem livre na pressão ao goleiro com a bola. O terceiro homem evita também o contra-ataque porque a posse está sempre indo para o desmarcado, livre de riscos. Cruyff sempre dizia: ter a bola e mirar o jogador mais adiantado, jogando profundo menos chances de contragolpe.
Com estas três características, temos o jogo de posição definido. Uma equipe que pratica o jogo de posição é aquela que busca sempre estas três coisas. Amplitude, profundidade, pressão alta, sair com goleiro são todos elementos acessórios, que outros sistemas ofensivos podem fazer sem praticar o jogo de posição. Com o tempo, foi se preparando uma metodologia de treinamentos para o jogo de posição, com diferentes tipos de rondos e exercício técnicos e táticos para executar este jogo de superioridades.
Em 2013, Guardiola disse que apenas ele, Paco Jemez e Laudrup no Swansea faziam o jogo de posição. Hoje, podemos dizer que treinadores como Sarri e Quique Setién também o realizam. Uns são mais heterodoxos, como veremos com Guardiola, e outros são mais ortodoxos, como era Van Gaal. Muitos treinadores usam também uma sabedoria espalhada, propriamente ou não do jogo de posição, como podem praticar um ataque posicional (onde os jogadores dominam os espaços primeiramente) sem realizar o jogo de posição.
3. Ataque Funcional: interagir para dominar
Longe do mundo anglo-saxão, mais precisamente na Itália, o futebol ia se desenvolvendo ao transformar a ideia de posição. O lendário Vittorio Pozzo, bicampeão do mundo com a Itália na década de 1930, era amigo do treinador da seleção austríaca Hugo Meisl e trocava com ele ideias sobre o futebol. Mas, ao contrário do time austríaco, que derrotaria na semi-final de 1934, Pozzo optou por um futebol também móvel, cheio de compensações, mas cínico. Pozzo apostava no indivíduo, nas vitórias pessoais dentro do jogo, nos recuos para atrair o ataque adversário e sair em velocidade com o seu craque Giuseppe Meazza.
Pozzo fez uma adaptação crucial no 2–3–5, pois acreditava que o WM de Chapman não deria certo para o tipo de jogador italiano. O 3–2–5 seria um “sistema”, uma ideia inicial, mas Pozzo criou um “método” para se adaptar às mudanças da lei de impedimento. O método era uma adaptação para as características dos italianos, exigindo menos fisicalidade, mais compensações defensivas, marcações individuais, e contragolpes.
No método, um meio-termo entre o 235 e o 325, um jogador era ao mesmo tempo um volante a frente dos zagueiros e um zagueiro central, recuando ou cobrindo os lados. Os dois zagueiros eram divididos, um devia marcar individualmente o centroavante adversário e o outro ficava na sobra, sempre protegendo a área. Os alas da linha de 3 do 235 marcavam individualmente os pontas. No ataque, estes alas se tornavam meio-campistas, pois o 5 recuava para trás dos alas como se fosse um 2125, dando mais estabilidade para evitar contra-ataques. A junção móvel entre o zagueiro/volante, os alas e os “mezzalas” (Meazza e Ferrari, os meias-atacantes) por dentro gerava uma superioridade de ataque e muita mobilidade. As funções dos jogadores estavam ligadas primeiro aos movimentos, a mobilidade e as compensações que exerciam dentro do método, e depois ao espaço em campo.
Na semi-final da Copa de 1934, dois times “funcionais” onde os jogadores exerciam função de mobilidade e haviam várias compensações. A Áustria apostando num futebol lúdico e de posse, a Itália com seu jeito mais cínico. Ambas as seleções privilegiavam um tipo de futebol que procurava, acima de tudo, controlar o tempo de cada indivíduo para só assim dominar os espaços. Interagir para ser senhor dos espaços, e não ser senhor dos espaços para interagir. Meisl ainda usava várias trocas de jogadores entre as posições, antecipando o que faria a Holanda de 74, mas dentro de outra base.
Assim, na Itália, algumas equipes passaram a usar o “sistema” e outras o “método”. Com o método, a Juventus foi pentacampeã italiana entre 1931 e 1935. Depois da Segunda Guerra Mundial, estas características históricas foram usadas para construir o “gioco all’italiana” e o catenaccio. A Inter de Helenio Herrera ficou marcada pelo uso do catenaccio nos anos 1960. Era basicamente um 1–3–3–3, com um zagueiro de líbero e o outro na caça. O lateral-direito jogava recuado como mais um zagueiro, e o lateral-esquerdo jogava espetado como se fosse também um ponta. O ponta-esquerda virava um segundo atacante, e o ponta-direita era um ala, uma espécie de meia que também entrava no meio. Cada função do catenaccio adequiriu um nome específico para indicar os movimentos e os controles deste jogador.
Ao contrário do mundo inglês, onde a posição estava ligada ao espaço, na Itália, a posição era a função do jogador dentro de um sistema móvel e cheio de compensações, privilegiando interações. No Calciopédia, Arthur Barcelos descreve a história do futebol italiano e numa das partes fala do catenaccio e assim desenhou a Inter e as funções dos jogadores[10]:
O líbero era o “livre” da marcação individual. O “terzino fluidificante” precisava ter grande fôlego e qualidade para apoiar, o “terzino marcatore puro” precisava saber defender e estar atento para fazer a cobertura do ala tornante, além da marcação individual. O ala tornante era mais um meia, que sabia recuar, fazer a jogada de linha de fundo e entrar pelo meio. Ao contrário do que se pensa, era mais um jogador com liberdade para flutuar pelo campo e voltar do que um ala preso à ponta. O seconda punta era o “fantasista”, o mágico, o craque do time, que jogava com liberdade por trás do atacante. O regista era o playmaker mais ofensivo, devia organizar as ações do time por dentro, juntava as linhas, e lançava os atacantes. O mezzala interno tinha que controlar o tempo da equipe, sabendo compensar os movimentos de todos os jogadores, podendo abrir para cobrir o lateral, apoiar o segundo atacante, recuar no mediano, etc. As posições de cada jogador representavam sua função de interação em campo. Partindo do controle do tempo, se dominava o espaço em que se jogava.
Em 1982, a Itália foi campeã do mundo com uma adaptação do catenaccio. Usando um misto entre defesa individual e por zona, mas com funções táticas semelhantes ao catenaccio. Graziani era o “seconda punta”, Conti o “tornante”, Tardelli o “regista”, Antognoni o “mezzala”, Cabrini o “terzino fluidificante”. A Itália também era mais ofensiva e realizava algumas trocas de posições como os outros times da época, influenciados pela Holanda de 74 neste aspecto.
No Brasil, os sistemas ofensivos foram sempre fortemente marcados por compensações e também pela descrição de funções. A vinda do húngaro Dori Kürschner ao país nos anos 1930 mudou muita coisa. Nos adaptamos a nova lei do impedimento (de maneira tardia), e foi implantado o WM com várias compensações, além da ideia de futebol de posse com variação de movimentos.
Esse estilo casou com o jeito brasileiro de jogar futebol, baseado em atrair, indicar uma coisa, e enganar o adversário. A mestiçagem tinha proporcionado também jogadores com tornozelos finos, panturrilhas fortes, e cinturas malemolentes, o que significava potência, drible e velocidade. Além disso, os jogadores brasileiros eram ricos em imaginação, picardia, criando respostas inusitadas para cada jogada. O brasileiro era o inverso do homem de Rinus Michels. Um futebol “irresponsável”, imaginado, mas sempre organizado coletivamente em suas versões vencedoras, ao contrário da mitologia criada por europeus e reproduzida por incultos nestas terras.
Espacialmente, como na Itália, na Áustria e na Húngria, se privilegiava primeiro as interações para controlar o tempo, adaptando os sistemas posicionais para gerar compensações. E isto era feito com grande poder imaginativo e criativo, exingindo aura e paixão, o inverso do exercício de disciplina proposto por Michels.
Em 1950, o Brasil jogou no WM mas com os dois médios e os dois meias-atacantes dispostos em paralelo. Ou seja, se criava a figura do “primeiro”, do “segundo”, do “terceiro” e do “quarto” homem de meio-campo, onde elas giravam entre o quadrado e o losango de acordo com a posição da bola, e com a liberdade dos jogadores. Em 1958, o Brasil recuou um dos médios para ser o “quarto-zagueiro”, influenciado já pela Hungria de 54, e recuou um dos meia-atacantes para exercer a função de meia-armador (Didi), e criou também a figura do falso-ponta (Zagallo). Um 4–2–4 que já apontava para o 4–3–3 assimétrico. O falso-ponta em 58 retornava para linha de Didi e de Zito para defender em 4–3, e atacava como um ponta mais de “lado fraco” e segunda bola, já que Garrincha monopolizava o jogo, recebendo os lançamentos de Didi. Em 1962, Zagallo foi cada vez mais um armador, deixando um “espaço vazio” na esquerda, onde o ponta-de-lança, Amarildo, infiltrava para receber ali e “brincar” quando nenhum dos adversários estivesse atento.
Aqui se cria também a ideia de “lado forte” e “lado fraco” da jogada. Cruyff, na lógica do jogo de posição, dizia que uma equipe deveria atacar por um lado e definir pelo outro. Isto era feito simetricamente dentro do sistema, podendo ir da esquerda para direita ou da direita para esquerda. No ataque funcional do Brasil, havia uma estratégia anti-posicional. Você coloca mais jogadores de um lado do campo, o “lado forte”, que será sempre aquele, ganha superioridade numérica por ali, produzindo um jogo vertical, de toques curtos e criativos, apoiado em torno dos desmarques dos jogadores para receberem a bola. Interagir e controlar o tempo para dominar o espaço.
Nenhuma seleção encarnou isto melhor do que a de 70. No alegórico gol de Carlos Alberto Torres na final contra a Itália, estão do lado esquerdo: Everaldo, Piazza, Gerson, Clodoaldo, Rivelino, Jairzinho e Tostão. Sete jogadores com Pelé ao centro, responsável por gerir tudo isto. Quando o time da Itália é desequilibrado para o “lado forte” do Brasil, a bola chega em Pelé, que já sabe que Torres passará livre no “lado fraco” para concluir a jogada. Uma estratégia prática e anti-posicional para desequilibrar o adversário e fazer o gol no lado oposto da concentração de jogadores.
Além disso, era uma seleção que recuava as suas linhas para atrair e depois enganar e brincar com o adversário usando destas estratégias, da habilidade, da criatividade, da técnica, da imaginação, da intuição. Na esquerda, um meia-atacante que era falso-ponta. Na direita, um ponta-de-lança que era segundo atacante. Um meia-atacante (Tostão) que era um 9. Mobilidade, compensação, e muitas estratégias anti-posicionais para criar superioridade no campo, atrair e brincar com o engano dos adversários.
A tradição brasileira de “jogo bonito”, indo na contramão da holandesa, sempre foi aglutinar jogadores no setor da bola, associar-se, infiltrar nos espaços vazios, brincar e principalmente usar e abusar dos desmarques. Querer e ter a bola. Permitir muitos jogadores a irem ao encontro da bola e tabelarem através dos desmarques.
Em 1966, a Inglaterra resolveu recuar não só um ponta para a linha dos volantes (como Zagallo em 58 e 62), mas dois deles. Nascia o 4–4–2, na tradição simétrica dos sistemas ingleses, que levou a vitória na Copa em sua casa.
A seleção brasileira de 1982 era um exemplo de “ataque funcional”, baseado no acúmulo de jogadores pela direita com Zico, Sócrates, Leandro, Cerezo e Falcão, com Júnior oferecendo apoios por dentro. Éder muitas vezes vinha na direita e Júnior ficava mais aberto. Contra a Itália, um grande jogo de Falcão, Zico e Sócrates pelo lado direito, enganando a marcação individual da Itália e criando dezenas de oportunidades a partir dos desmarques e de toques curtos e inteligentes. Uma aula para desestabilizar marcações individuais.
Em 1994, o Brasil ganhou com um 442 mais rígido e, logo que Zagallo assumiu, resolveu voltar a defender sem a bola de maneira distribuída, assimétrica, como afirmou em entrevista ao Roda Viva[11]. Disse: “Agora eu quero que essa Seleção também seja distribuída quando a posse da bola estiver com o adversário, ou seja, sem a posse da bola. Se ela tivesse dois pontas-de-lança que não jogassem parados, que viessem fazer a função de um lateral, do meia direita…por que os dois pontas não podem fazer?”. E sobre o seu sistema ofensivo: “Se a Seleção, desde que assumi, evoluiu nesse aspecto fazendo uma mudança númerica com 4–3–1–2…Quando eu falo na mudança, você não vai ver essa equipe nunca dentro de um 4–3–1–2, mas é só para chamar a atenção que existe um número 1 que vai ter que chegar mais à frente, completando como se fosse um ponta-de-lança, para destacar dos outros. Ele tem que ter uma habilidade, inteligência, saber jogar no meio campo, tem que ter discernimento…”.
Na nossa vizinha Argentina, também era desenvolvido sistemas funcionais, o mais famoso sendo “La Nuestra” dos anos 1940. Originalmente um 2–3–5, o River Plate de 1940 praticava o uso de diversas assimetrias, concedendo muita liberdade aos jogadores. O médio-direito era quem recuava para a linha de 2 para ser uma espécie de terceiro zagueiro, ao contrário do método de Pozzo em que era o mediocentro. O zagueiro da direita centralizava e o da esquerda virava um lateral-esquerdo por trás do ponta-esquerda, Loustau, que virava uma espécie de ala. O médio-esquerdo centralizava junto com o mediocentro e Pedernera como “falso 9” ou futuro “enganche” recuava para ligar ou colar toda a equipe por dentro. Os dois meia-atacantes, Moreno e Labruna, buscavam os desmarques para infiltrar os espaços deixados por Pedernera, sendo Moreno mais armador e Labruna atacante. O ponta-direito Muñoz também atacava por dentro. Era um futebol amparado em desmarques e em compensações, aglutinando jogadores por funções.
Adepto deste tipo de jogo, o jornalista Dante Panzeri ficou conhecido por defender um “futebol fantasista” contra o futebol utilitarista ou cientificista da nova Buenos Aires industrializada. Para ele, a tática se estabelecia em cada jogada, na pré-concepção (treinada ou não) de cada jogada onde os jogadores irão interagir; mas, ainda assim, o que domina todo jogo é o impensado. Futebol, a dinâmica do impensado. O jogo argentino seria a expressão do homem argentino com suas máscaras, mitos, confusões e picardia. Num tempo onde a Argentina importava técnicos europeus e se dizia que precisava imitá-los para triunfar. A resposta veio no título de 1978 quando Menotti propunha uma releitura da “La Nuestra” a partir do 4–3–3. Bielsa, adepto primeiro do controle de espaços para o domínio do tempo, mas também do futebol de posse, irá representar uma espécie de “terceira via” no mundo argentino.
Sendo assim, estabeleci a construção histórica destes três conceitos de organização. Equivocadamente alguns dizem que o “Futebol Total” é a primeira elaboração organizada ou metódica do “jogo bonito”. Na verdade, é a primeira construção com estas características que vai do espaço para o tempo. Os ataques funcionais vão do tempo para o espaço, e sempre foram organizados coletivamente, mas com outras premissas, basicamente desconhecidas no mundo inglês ou holandês. Tempo e espaço precisam ser dominados para a prática do futebol bom ou eficiente, mas como fazer e de onde partir sempre foi a questão central. É importante lembrar que isto são tipologias, e que times e treinadores podem arquitetar várias intermediações entre estes tipos, do mesmo modo que há a marcação individual e a defesa posicional ou por zona, mas também vários modelos de exercer os dois tipos ao mesmo tempo.
Na primeira parte, mostrei a construção histórica destes tipos de ataques. Na próxima parte mostrarei os seus usos hoje. A heterodoxia do jogo de posição de Guardiola, o ataque posicional sem jogo de posição de Conte (e com várias compensações no sistema defensivo como bom italiano), o ataque acelerado de Klopp que “agride” e encurta tempo e espaço ao mesmo tempo, as atualizações históricas dos sistemas funcionais de Ancelotti e Tite.
[2] CRUYFF, Johan. La Autobiografia. Ed. Planeta, 2016. (p.11)
[3] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.48)
[4] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.24)
[5] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.32)
[6] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.45)
[7] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.45)
[8] WINNER, David. Brilliant Orange: the neurotic genius of dutch football. Bloomsbury Backs, 2012. (p.46)
[9] CRUYFF, Johan. La Autobiografia. Ed. Planeta, 2016. (p.35)
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