Futebol, o alimento dos deuses

Copo de cerveja num campo de futebol

No princípio, quando os seres rastejavam como larvas cegas nos interstícios do carbono, foi necessário que dessem o primeiro drible para compreenderem a liberdade. O drible, sim, a primeira metáfora da evasão anterior à linguagem, posterior aos dinossauros, o primeiro traço seguro da evolução. A espécie sai do organicamente predeterminado para se transformar em outra coisa, graças à arte do fingir, substância do drible, que, como um arroubo energético, também faz conectar nossos corpos e mentes aos Divinos e mesmo aos Deuses menores, que, disfarçando-se de pequenos gandulas, ali, à beira do campo, recolheram os fragmentos do mundo que ainda não havia sido narrado.

E se o que chamamos de evolução não for uma linha reta? Estaria mais para um delírio espiralado de calamentos que morde a própria cauda sob o disfarce de adaptação? A consciência do ser jamais emergiu por seleção, mas por sedução. Sedução de superar, como faz o driblador diante do oponente. Dar um drible é sair do que você é e ir para onde você fingia ser o tempo todo. No campo, só os dribladores sobrevivem.

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Universo; Via Láctea; Planeta Terra; América do Sul; Brasil; Paraná; Curitiba; Santa Felicidade, bairro italiano da cidade; avenida Toaldo Túlio, por onde ele percorre, e já são quilômetros a fio, numa mão o vinho, na outra o casaco dobrado, seu escudo contra a provável queda da temperatura mais tarde. Sábado de sol e vai ter jogo de bola. Está bem, porém triste – e na tristeza, sente-se estável. Uma vida de solidão soturna. Pensa que… progresso mesmo não existe, o que existe é mudança de estados vibracionais.

De primatas para poetas. De vagabundos para homens de negócios. Sem tempo nem mesmo para frequentar uma cancha. E daí vai: da carne para o som – do som para a luz – para o silêncio novamente. A história, com seus impérios, algoritmos mirabolantes e aviões supersônicos, é só o registro malfeito de um experimento químico que reage continuamente em nossos neurônios, por todos os tempos.

Com a cabeça girando, ele diz a si próprio: quero tudo. Aos 28 anos, o homem quer a mulher para se casar e, depois, “fazer as coisas” – construir uma casa, criar um propósito, deixar pegadas na calçada que serão interpretadas como traço civilizacional por algum antropólogo eurocentrista daqui a dez mil anos.

Querer, fazer, criar, construir… estes verbos todos, surrados, esgotados, de quem resta apenas o arremedo do próprio sentido, ele reflete, esquecendo-se de que aprendeu ainda jovem que signos eram arbitrários, e logo sentindo o azedume, o claro enigma azedo do último gole da garrafa. Por sorte, ainda estava na Toaldo Túlio, onde há as melhores lojas de vinhos da cidade. Muniu-se de mais um e quebrou a via bairro adentro. Gosta quando o jogo é na casa do Trieste, clube ítalo-brasileiro da divisão amadora, pois assim pode unir suas duas maiores paixões, o vinho e o futebol.

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Não fomos moldados por lutas e genes, mas por visões. A mente humana, essa orquídea de ossos e vazios, floresceu não porque precisava, mas porque enlouqueceu diante do real.

A verdadeira mutação não foi com o polegar, que potencializou o poder das mãos. Em algum ponto cego da selva, entre camadas de musgo, uma criatura olhou o céu e ele respondeu com formas que escorriam para dentro do crânio. E o humano começou a ser febril: a linguagem, a música, o fogo, o mito… veja: não fomos nós que domesticamos o símbolo. Foi ele que nos ingeriu. Lentamente, como um fungo paciente, colonizou nossos sonhos, nossas falas e nossas paredes de caverna. Pintamos bisões não porque precisávamos caçá-los, mas porque queríamos nomear o indizível e direcionar a realidade. As artes, a religião, o humor: tudo deriva desse impulso primordial de transformar percepção em forma e abrir portais, fendas do improvável. E o tempo, por fim, sai como uma caricatura que distrai, ou, numa outra figura, um boneco de papel machê carregado por xamãs virtuais.

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Transformando percepção em forma e forma em disputa, porque tudo derivou de uma coisa que um dia foi sonhada, e nos sonhos estamos sempre competindo, ele segue para o setor visitante do estádio. Ali está a arquibancada, o seu divã, o local do seu descarrego mental e energético, onde, entre goles e gritos, realinha o impulso de luta e sobrevivência.

Veja estas arquibancadas: como sabemos, é a sequência metafísica do Anfiteatro Flaviano, as pessoas sentando-se para se entreter com a desgraça alheia rolando lá embaixo, todo o quid pro quo que corre na fenda do improvável. Ou talvez para se anestesiar – o futebol é curioso por isso, é um enorme brinquedo, um alucinógeno por excelência. Todo ser humano tem impulsos de dar chutes, desde o ventre da mãe, e o futebol é o resultado da memória muscular. Depois, cunhou-se o limite ético: como forma de justiça, pode-se usar pés mas jamais pés e mãos, então as mãos foram proibidas. A cabeça e o peito seguem válidos.

Se as mãos representam a extensão técnica que chancela a evolução humana, e no futebol são proibidas, está claro: o jogo tem a intenção de frear o progresso lógico por um instante, e, não obstante, tornar-se um salto evolutivo, um Alimento dos Deuses. Como ele não está em campo, ainda pode usar as mãos: uma sempre segurando o vinho, outra, desorientada, depois de largar o casaco no concreto, agarrava ora os cabelos ora o alambrado. Um alimento dos deuses, como escreveu Terence McKenna em sua delirante cartografia (referindo-se a fungos/cogumelos e ergotinas), é aquele que traz reações neurais e proporciona deslocamento alucinado do sentido humano, o permitindo enxergar além do óbvio, e, por essa exata razão, progredir em sua organização. As pessoas bebem vinhos, cervejas, cafés, consomem plantas e compostos químicos, tudo para transcender o estado zero da consciência, e quando o fazem, podem acessar um novo nível nos próprios pensamentos: seus problemas viram soluções óbvias, sua linguagem presa acha o sentido para desatar, sua memória além do conscius salta e traz pistas interessantes sobre o self, o ego é substituído pela sintonia com a experiência coletiva… mas é óbvio que não apenas estas substâncias, chamemos de reagentes neurais diretos, conseguem provocar efeitos como estes. Somos seres complexos e passionais, procuramos avidamente pelo transe, pelas sensações e emoções que estão gravadas em nosso subconsciente ao longo de centenas de milhares de anos da espécie – e as conseguimos, pode-se dizer, com alguma facilidade, em coisas que provocam um salto do sentido. E, enquanto ainda primatas, temos no futebol essa transferência mais rápida de informações entre nós mesmos: ele nos torna mais emocionados, mais suscetíveis a mudanças repentinas e caoses tempestuosos que irrompem novas eras. O futebol, como espetáculo mortífero e aglomeração barbaresca, nos traz uma nostalgia de tempos em que vivíamos no limite e morríamos com extrema facilidade. Por isso, ele atiça instintos de luta, fuga e permite uma conexão mais elevada com a própria experiência.

Sem arquibancada e jogo de futebol, somos fracos: somos mortos, previsíveis, fragmentados, homens de baixa frequência, apenas trabalhando e sobrevivendo. Com ele, seguimos a mesma programação da vida, mas há um realinhamento imperativo, um novo jogo primordial e um reencontro com a crueza da própria força, o poder interno absoluto e indivisível, l’état c’est moi. Mas, além disso, o futebol nos transpõe entre épocas e fendas de tempo, fazendo o mundo se tornar mais desequilibrado e imprevisível e, portanto, acelerando um processo emergencial de homeostase. Sem esta pílula divina, por exemplo, o século XX teria andado muito mais devagar: a digitalização, os inventos, as dinâmicas sociais talvez demorassem décadas a mais para chegar.

O futebol nasce da sociedade industrial e, por coincidência (ou decorrência direta), como alternativa evolutiva a ela: sem toda a potência, a emoção aguda e o tremor desesperado que ele causa, a espécie teria bem menos motivos para acreditar que ainda poderia muito mais do que pressionar alavancas dezesseis horas por dia. O futebol é um dos últimos triunfos remanescentes da natureza sobre a cultura.

E é por isso que é tão difícil acreditar na hipótese contrária, que é tão mais aceita por aí, de que o futebol tornaria os homens inertes, moles, conformados. É bem o contrário: o que eleva o ser ao seu nível mais transpositor é o que o propulsiona com mais violência para frente. O futebol seria, sim, um psicotrópico abstraio – quem sabe fiel à intelectualmente desonesta analogia opiácea – mas jamais com efeito anestésico; sua função é polir as lentes da consciência.

No campo, gol, gol, gol e mais outro gol. Prorrogação, pênaltis, festa, decepção. Isso é o jogo: um estádio se dobrando em várias partes, como um símbolo infinito, o grito da torcida invocando seus ancestrais – primatas! Uma metáfora para a busca pela vitória humana, que instala-se num lugar onde a realidade escorrega para dentro do impossível.

Ele sai do estádio pronto para ser gente de novo.

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Imagina quando o futebol foi jogado pela primeira vez! Em cada passe a eclosão da linguagem primitiva, uma gramática alucinada feita de cores, gritos e fungos, potente e tortuosa como um chute de Nelinho. Os primeiros sapiens (ainda sem nomes, apenas as vontades seminais e pupilas dilatadas) deviam dar pontapés em pedras sob a bênção invisível de um céu que pulsava. 

E a psicodelia? Essa geometria líquida diluída numa enorme biblioteca de Babel vista de dentro, com suas escadas em espiral se dissolvendo em goles de metilenodioximetanfetamina e cantos de arquibancada. 

Teria certa vez um zagueiro como Roberto Perfumo ou Elías Figueroa se transmutado no Quetzalcoatlus, subindo com fome para cabecear a bola, e descobrido que deveria ter outro corpo, outras funções motoras. Com os macacos, o mesmo: deveriam ter corpus erectus para conseguir cabecear mais alto. E deveriam ser bípedes, para correrem mais comodamente. Os estádios estavam vendo tudo, dobrando-se feito origami. E, no entanto, não se descarta a hipótese de sonho.

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Esse tal McKenna é louco mesmo. Imagine escrever em plena década de 1970 que um primata chapou o coco com cogumelos e por isso evoluiu até tornar-se homosapiens, e que portanto as variações dos fungos, desde o álcool e o MDMA até o café, ao agirem como expansores de consciência, são responsáveis por toda a evolução, e ainda tornar-se referência na botânica e na antropologia? Mas talvez esteja certo: e se um cogumelo moldou a consciência? Se um sopro vegetal acendeu o logos? Não há mais nada a discutir. Nós evoluímos? Não – evaporamos!!! Nosso destino não é um futuro. É um devaneio!

O ponto aqui é: se tudo é devaneio, se a evolução foi um tropeço sob cogumelos, se a linguagem é uma alucinação consensual e o tempo um truque de um prestidigitador cósmico, o futebol é, inevitavelmente, sua epifania mais terrestre.

Pela vicinal avenida Manoel Ribas, eufórico pela classificação do Operário Pilarzinho na casa do rival, os pés calejados, a boca borrada de roxo, ele volta a passos apertados para o centro da cidade. Nota, com estranhamento, que sempre está com pressa nas voltas, muito mais do que nas idas. Por que essa sensação de que o tempo sempre acabará no meio do caminho? Impossível ser feliz quando a vida sempre promete acabar na metade. Cadê o amor? Já entendeu: nada vem de mão beijada, e aliás tem coisa que sequer vem.

Quer estar livre dos amigos e das mensagens do trabalho. Sossego: parar num lugar, comer algo e sentar para escrever o ensaio que há meses promete, na pura empáfia de um escritor que aguarda para deslanchar, a tal “qualidade” que por sua vez é-lhe prometida desde que entreviu um encontro com uma egrégora maldita, que teria apontado o propósito. Acreditar em dom ou dane-se isso também? À moda antiga, parou na última papelaria aberta do dia e comprou caderno e duas canetas. Uma caneta foi para o bolso do casaco, que já o protegia do início de noite gelada. Encontrou um lugar interessante, um televisor pendurado no teto transmitindo Vasco e Botafogo pelo streaming que supostamente desafia o monopólio das telecomunicações. O lugar até é ajeitado, e bem plural, tendo de bêbados tétricos a casais instagramados. A fome era alta: asinha de frango, batatas fritas com cebolinha por cima e o litro de Original para acompanhar. Cerveja, lembrou – é fungo, né? Se o garçom for formado em botânica, vai entender a brincadeira. Mas não disse nada a ele, apenas pediu a próxima cerveja e comentou “jogo ruim do cacete”, minutos antes de o Botafogo ampliar para 2 a 0. Pouco tempo depois, o dono do bar troca o YouTube pelo canal fechado, e a partida já era Bahia e Atlético Mineiro, enquanto ele se compenetra nos rascunhos do ensaio, atrás de uma Chicago de garrafas vazias sobre a mesa. A vida e a morte são ciclos retroalimentativos, ele reflete sobre a ideia central do ensaio, e tem vontade de compartilhar com alguém: que deuses somos nós?

Alguém que nunca chutou uma pelota na vida, mas talvez tenha uma iniciação ludopédica pelos labirintos oníricos ou pela própria intuição, poderia dizer que o futebol é uma forma de mitologia cinética, uma poesia coletiva para nomear o inominável. Tudo sempre foram arquétipos: Hermes é meio-campo; o goleiro é Cronos, tentando segurar o fluxo; e o ponta esquerda definitivamente é enchido pelo Espírito Santo. E que assim seja até o fim de todos os tempos. Cada posição no campo foi criada não pelas funções, mas com os papeis do imaginário – e ele pensa, rindo, que foi lateral-direito porque essa, afinal, era sua posição no mundo: modesto, discreto, o último que fala e primeiro que apanha, o que tem pavor da ideia de incomodar alguém, aquele para quem falta oportunidade (talento?) para brilhar além daquilo, enfim; “eis-me aqui, sem nenhuma tragédia”, como diz a letra da sua antiga banda de rock, e o que nos sobra? O futebol, esta dança cósmica acelerada em câmera lenta, parece-lhe perfeitamente um sonho que os deuses tiveram e esqueceram, mas que persiste na memória dos homens como um eco circular.

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A mente humana não é e nem teria porque ser um produto final. É uma interface em beta, um código viciado, alucinado pela própria capacidade de imaginar. E talvez toda a estrutura da realidade esteja assentada sobre esse delírio: o de que há algo para entender. O que chamamos de “mundo” é apenas o que resta depois que a percepção desintegrou a matéria em metáfora. Graças a isso, estamos sempre em débito com a própria consciência: o que eu deveria saber mais do que aquilo que apenas sei?

Depois do que já foi discutido até aqui, o que restaria para definir o futebol, além de um exercício de fé? A fé é o alimento do espírito através da visão periférica. A íris do olho aponta para o objeto central, mas o que realmente constrói o mundo é o que corre pelas laterais do campo de visão – caso contrário, seríamos nada mais que um guruato de São Tomé. Qual é a grande metáfora do futebol, afinal, senão um meio pelo qual conseguimos evidenciar a existência dos deuses, não como imagens estáticas, mas como conjunto de sensações, impressões e presságios da alma?

Vinte e dois corpos orbitam sobre esferas esvaziadas, sob os gritos de milhares de vozes tribais, ressoantes numa única vibração; desatinos rituais vestidos em chuteiras e dryfits; minutos de tempo derretido; estádios como catedrais momentâneas construídas de geometria fria de pedra em movimento, e seus campos, os úteros onde os mitos são reciclados; gols como metáforas eufóricas da reinvenção do fogo; nos dribles, marca-se o retorno da serpente visionária; e os torcedores, os psiconautas definitivos, entregam o espírito a esta jornada coletiva.

Portanto, não é exagero dizer: o futebol é a culminância lógica de uma espécie que comeu o fruto proibido e, ao invés de construir torres, investiu no jogo do engano. É o gesto coletivo que mais se aproxima do divino, por não vencer a morte e, não obstante, por um breve instante, ignorá-la, ou melhor, driblá-la. E quando o juiz apita o fim, retornamos à caverna à espera do próximo êxtase.

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Encontraria com Taís? Vindo da Rua São Francisco, bastou ele passar pelas argolas de cavalos para avistar, assim que passasse pela Rua Presidente Faria e chegasse ao Passeio Público, a sua silhueta esguia sobre o parapeito da janela do apartamento, ansiosa para vê-lo lá de baixo feito uma formiga desorientada que disputava contra a luz de dois postes republicanos para enxergá-la das alturas. Tantos anos que ele já não a conhecia direito, sua nova vida, mas o riso sarcástico dela ainda era incontornável. Foi natural desde a primeira mensagem que ele queria uma nova chance, mesmo por meios tortos, de viver com Taís aquilo que não cabe na vida de um jovem senhor de 21 anos, para quem a alma já mostrara muito, mas o corpo queria a comprovação. Por que essa aflita corrida contra a promessa do fim? Agora, passaram-se sete anos; ela não é mais isso, você não é mais aquilo… e como foi natural entrar pelo elevador, aquela caixa de inox que nos teletransporta para outra realidade, e, por ironia, nos consegue levar ao inferno mesmo indo para cima… e como foi natural ter batido à porta de Taís e entrado na estreita dependência do seu flat de 40 metros quadrados, tão estreita quanto sua cintura envergonhada; a lucidez em seus olhos era invejável, mesmo que nenhum de nós soubesse exatamente que barreira estaria sendo quebrada ali. Talvez fosse tudo coisa da sua própria cabeça, ele avalia, a cabeça, esta assassina homeopática que vai minando aos poucos a clareza do que o mundo de verdade é: uma mentira embalada pela linguagem. O que é falar certo, fazer certo? Lembra que disse que a gramática era uma alucinação consensual. Mas Taís mantinha este sorriso pernicioso que parecia antecipar qualquer movimento, e cada vez pressionava mais, um pirata apontando a faca para alguém na prancha. O baseado começou a fazer maior efeito, o que fez com que sua íris travasse levemente enquanto eles conversavam – ele se lembrava, ela era de família italiana, e vinha do oeste de Santa Catarina… ah, as catarinenses… ele a reconhecia antes dos olhos, pelo cheiro, odor ancestral de alguma lembrança enterrada debaixo de quilos de vergonha e açúcares. Sentados sobre o mesmo colchão, pareciam flutuar um sobre o outro, como numa profecia invertida, e diziam palavras mecânicas, como se as almas tivessem saído para dar uma volta. O beijo constrangido quebrou os espelhos da mecânica dele, que custou a acreditar, e preferia cancelar tudo, voltar apenas a conversar, ela capricórnio com vênus em escorpião (teria como fazer outra coisa da vida?), ele virgem com vênus em leão; o vinho barato que deixaria uma marca de três dias no cérebro; a vergonha de sentir amor por aquele teatro paleolítico, pós-tudo, mas logo era tarde, Taís e ele acabam entregando-se ao ódio formal, como se traduzissem um idioma morto. Ele lembra de desmaiar num átimo e despertar com a cena trágica do sorriso de Taís, aquele arquétipo terrível de “Closer”, e ela recusando-se a tudo por “nada fazer sentido”. De volta para a rua, ele decidiu que precisava de um banho e uma bebida forte, certo de que lhe fazia falta, mas simplesmente parou e maturou – um plano de largar tudo, ela é que tá certa. Eu é que tô esperando demais, pensou. Como anda o ensaio? Que merda, ele havia deixado o caderninho lá no trabalho. Éramos deuses mesmo, ou só frequentamos uma mesma casa?

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Os 10 álbuns definitivos da era dos deuses:

1 – Strawberry Alarm Clock – Incense And Peppermints (1967)

2 – Grateful Dead – Aoxomoxoa (1969)

3 – Boston Tea Party – The Boston Tea Party (1968) 

4 – The Miracle Seeds – Nuclear Watermelon (2025)

5 – Arawak – Accadde a… (1971)

6 – Lemon Jelly – LemonJelly.ky (2000)

7 – Ghetto Brothers – Power Fuerza (1971)

8 – Khruangbin – Con Todo El Mundo (2018)

9 – Gábor Szabó – Jazz Raga (2010)

10 – Jethro Tull – Benefit (1970)

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Os 10 camisas dez da gnose:

1 – Diego Armando Maradona

2 – Arthur Antunes Coimbra

3 – Gheorghe Hagi

4 – Carlos Alberto Valderrama Palacio

5 – Michel François Platini

6 – Juan Román Riquelme

7 – Teófilo Juan Cubillas Arizaga

8 – Luis Suárez Miramontes

9 – Augustine Azuka “Jay-Jay” Okocha

10 – Álex Darío Aguinaga Garzón

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Mas há que se comer a hóstia do delírio, que se abrir o crânio à visitação do absurdo e, entre fractais e serpentes falantes, ter a imagem que retorna, persistente como um sonho recorrente, de um campo de futebol, o templo de grama onde os deuses vêm se distrair da eternidade. Depois de tudo, o futebol é ainda o último espaço de ordem natural e, simultaneamente, o laboratório cultural da sociedade inspirada pelo espectro da evolução. Lugar onde se acredita com o corpo inteiro, e na verdade um ato mágico coletivo em que milhares de pessoas se alinham numa frequência emocional compartilhada, urrando por milagres pré fabricados; entorpecidos de linguagem, de simbologia, de ancestralidade ressoando na alma, percebemos que a realidade é apenas um contrato mal impresso entre sinapse e silêncio. Há de se considerar a linguagem o primeiro ácido. Pois ela dissolve o concreto, desmanchando as paredes do real que ainda não era delimitado; o verbo veio antes da luz. A luz é apenas uma consequência de ter dito “que se faça”, e a vida, você sabe, não espera – a linguagem falha – mas o drible ainda ensina! Ora, bata os escanteios da redenção. Ainda estamos salvos um jogo num potreros e terrões, um passe no vazio, uma pancada seca no ângulo do impossível.

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