Luxa: como a tevê gosta

Terça-feira, 25 de julho de 2023 – Bomba na imprensa esportiva. Vanderlei Luxemburgo, técnico do Corinthians, entra em atrito com jornalista após a vitória por 2 a 1 sobre o São Paulo. O que irritou o treinador foi a pergunta, na verdade um pedido para que “falasse sobre o jogo”, sem especificar quais aspectos e momentos. “Falar o quê sobre o jogo? Quem tem que analisar são vocês, da imprensa”, foi a resposta.

O episódio foi mal recebido, sobretudo por profissionais da imprensa esportiva, que vociferaram nas mesas redondas, blogs e redes sociais. Uma recusa ao padrão pergunta-resposta é, de certo modo, algo inesperado, e pode ser, de fato, motivo de choque. E quando esse choque cria existência, torna-se, por si, outro tipo de acontecimento, às vezes mais poderoso que o que se preparava para acontecer. Quando a internet repercute esses microacontecimentos, quem agradece é a televisão, que deles se aproveita para ganhar ainda mais força.

E a tevê não tardou a confirmar a expectativa: no domingo, o novo programa de Neto na Bandeirantes, Apito Final, foi armado num formato que mesclava Roda-Viva e teatro grego, no qual Luxemburgo teve de se explicar, como num tribunal, diante de Lívia Nepomuceno, Marília Ruiz e Cléber Machado, figuras da imprensa que atuaram como inquisidoras, o porquê de sua postura na coletiva. No primeiro bloco, se tratou da extensão do microacontecimento, e o clima esquentou. Sabendo de que o ambiente ficaria hostil com o treinador, no segundo bloco, no melhor modo morde-e-assopra, a atração esportiva exibiu um grudento conteúdo pré-montado, repleto de elogios ao “Pofexô”, com Neto reforçando o coro.

Padrão protocolar

A consolidação da internet e a investida midiática das redes sociais digitais, em sequência, provocou um grande assombro nos acadêmicos e profissionais da comunicação. Muito se discute o quanto, e em quais pontos, por exemplo, o jornalismo tradicional deve atualizar para ter neste novo mundo não uma espécie de produtor de ideias oponente, mas um instrumento aliado. Aparentemente, uma enorme reviravolta viria, ou vem, ou virá a qualquer momento, causando tremores irrefreáveis nos palcos da informação.

Na prática, o padrão clássico estabelecido no contexto de Guerra Fria, o do combo rádio + tevê, segue hegemônico. Não é por acaso: o conjunto de códigos e estratégias da produção informativa, com assinatura militar no caso do Brasil, foi meticulosamente organizado e planejado para atender a um projeto dos grandes empresários da época. Como seria este projeto? Constituir uma linguagem potencialmente duradoura, capaz de captar o espectador a longo prazo, e sem descompassar às diretrizes governamentais.

Assim chegamos ao chamado “método”, que continua trazendo, década após década, essa série de características, repetida de um jeito que acostuma sem exatamente exaurir. Como? Eis a grande pergunta, e onde está o triunfo de Marinho e Clark, especialmente.

Jovem guarda

O que sabemos, ou podemos ter ao menos uma ideia, sobretudo observando o cacoete jovem, é que existe um movimento circular entre obrigação e instituição: quanto mais se cumpre o protocolo, mais esse protocolo se enraíza, e, portanto, torna-se a orientação a ser dada à geração posterior. Essa outra geração, que já ama o instituído – aí onde esse cacoete jovem da “perfeição” entra – segue o protocolo santamente. E aí não importa se o conteúdo mudou levemente a forma, se não mais é feito para uma Philco Ford Colorscope, mas para um smartphone de palma de mão, ou se no dia de amanhã os carros podem recolher os pneus, como aviões, e passar a transitar pelos céus. Para qualquer efeito no campo da tecnologia e dos meios, o método tá ali, firmus et fortis.

Poucas situações são tão favoráveis para se perceber essa noção de conjuntos, protocolos e práticas prontas quanto uma coletiva de imprensa. Quando é no meio esportivo, no qual “não se vai tão a fundo” porque “afinal, é entretenimento de domingo”, tudo é ainda mais pronto.

Em tese, o resultado de um jogo de futebol não provoca impacto ou repercussão mais duradouros do que um acontecimento político ou econômico. Isto é, a margem de erro dos protocolos da imprensa nos eventos esportivos, para que nada fuja ao controle, é facilmente minimizada. Por isso, quando Luxemburgo recusou responder à pergunta de abertura da coletiva, a clássica “análise geral do jogo”, o choque foi mais forte que se podia imaginar.

Falar o quê do jogo, imprensa esportiva?

O resumo é simples, se assim você quiser: os ataques do Corinthians contavam-se nos dedos de uma mão. Em dois deles, porém, com doses tão altas de competência quanto de espírito, Renato Augusto conseguiu dois tentos para a equipe. O São Paulo, que ocupou o campo ofensivo por quase todo o tempo de jogo e teve mais chances, conseguiu anotar somente um, com Luciano, que em seguida se meteria em confusão e receberia amarelo, que o suspende da volta.

Suficiente, para a crônica esportiva tradicional do tipo televisivo. Um comentarista tomaria a frente e diria que o placar não refletiu o que foi o jogo. “Mas precisa refletir?”, alguém no estúdio pensaria em retrucar, engolindo as palavras. E, com uma pitada de provocação, mas de um tipo espirituoso, alguém comentaria que a vitória corintiana foi irracional – e, considerando que isso é uma virtude num jogo de futebol , o torcedor poderia entender não propriamente como uma crítica por si mesma à atuação da equipe, mas um argumento no polo oposto: a grandeza de se vencer um jogo em que se jogou pior. Depois disso, se sobrasse tempo, algum foco em momentos e incidentes-chave dos noventa minutos, como, no exemplo mais óbvio, polêmicas envolvendo a arbitragem – assunto que, aliás, há quem diga ser uma relativa novidade nas mesas. E isso é tudo, pessoal.

“Mas, veja bem…”

A pautação desse tipo de programa, no sentido exposto, vem sendo reconstruída com a gradual ascensão das análises táticas – que podem ser muito interessantes, e são, a não ser, talvez, pelo fantasma que as acompanha, a intransigente lógica do nexo-material, ou a redução da “fenomenologia”. Sei que desta discussão o leitor está cansado, e nem eu desejo alimentar a dicotomia “tatiquês” versus “essencialês”. E por tentar (veja bem) resistir ao perigo de demonizar um no enaltecimento de outro, não me embrenharei neste mérito – ao menos nesse artigo.

O fato é que a tendência de hiperexaminar cada movimento do jogo é perceptível nos programas. Comentários mais abertos, ou que não pontuem com precisão uma sequência de causas e efeitos visíveis, feito fossem os jogadores peões, bispos e cavalos manipulados por seus “casparofes” particulares (eu tentei…), caíram em descrédito por um perfil de espectador, mais exigente – e por outro lado, como disse, mais materialista – e que agora aguarda, por parte dos comentaristas, um checape altamente técnico, garantindo que nenhum evento do jogo fique órfão da razão.

Parênteses…

O fenômeno não se restringe aos comentaristas de futebol, ou mesmo aos mais absortos na seara tática. Pelo contrário, a exigência parece aumentar para que todos os envolvidos passem a sensação de serem entendidos – todos mesmo, pois se assumiu, em algum momento, que o torcedor também o é – e isso se torna uma demanda tão forte nos assuntos do jogo quanto, guardadas devidas proporções, a das análises sintáticas, técnicas, linguísticas em geral no campo literário – com a diferença de que estas, muito mais que aquelas, são um potencial instrumento para percorrer os caminhos de sabedorias extrafísicas, ao invés de serem, per se, a explicação;

(as comparações terminam cedo: a despeito de alguns focos de discurso mais vazios que outros, a literatura ainda é vista como arte, o que faz a diferença no objetivo do debate – chegar à zona das ideias e das intenções, onde, pela linguagem, de algum modo se pretendeu adentrar; enquanto isso, o futebol vai ao abraço do limítrofe rótulo de “esporte de alto rendimento”, cujas facetas restantes serão quase todas vinculadas à tecnicidade frígida, e percorrer dez quilômetros num jogo terá mais valor, em longa escala, do que fazer um gol de bicicleta de fora da área… encontrar ideias e intenções humanas pelos estudos de Bakhtin, vá lá. Por um heatmap? Difícil. Enfim, de todo modo, há análises e análises. E também sabemos: há algumas, dos dois tipos, que não vão a lugar algum).

Homem-mídia

Luxemburgo sempre foi um cara moderno, pra-frente. De antigo nele, só a carteira de trabalho. E entusiasta “dessas coisas táticas”. Isso deixa as coisas interessantes, porque fica praticamente eliminada a hipótese de que ele esteja meio “alheio” a este fenômeno – seja ele o neotatiquês, representado pela CBF Academy e afins, que ele malhava semanalmente em podcasts, sejam as novas tecnologias, o que é ainda mais estúpido de pensar de alguém que tem, entre outros empreendimentos, a própria emissora – portanto, atrasado. Durante a década de 1990, era comum ver Luxa aproveitando cada brecha para falar das táticas de seu time. Seu discurso, inclusive, incentivou essa reforma de conteúdo dos programas esportivos, que introduziu jargões consagrados como “nó tático”, na reta final daquela década – e que, na época, blogueiros emergentes, como Tostão, criticavam; vocês podem encontrar colunas antigas de Tostão por aí, nos escombros desse mundo cibernético.

Falar de tática?

O que há a fundo naquilo que se configura em problema? Penso que uma das melhores respostas venha de algo que Luxemburgo expressa na atualidade: sufoca-se a tática do tipo individual em detrimento da tática coletiva. Isto é, no meio dessa avalanche de 4-3-3s, 4-4-2s, 4-2-3-1s e 3-5-2s, há pouco espaço para o jogador criar e descobrir o jogo a partir sua própria impressão. Vemos, então, em Luxa, que esta visão não diz apenas sobre o futebol. Basta ver em quantas situações o ser humano se coloca ao protocolo. Como no campo, há “quebra de linhas” também na sala de aula, na cerimônia do casamento ou na coletiva de imprensa do jogo. Quebrar a linha, parece com “quebrar um osso”. A gente que aguente a dor.

No mais, é só lembrar da carreira de Luxemburgo e de quantas vezes ele esteve nesta mesma situação. Em seguida, pensá-lo como um homem de seus setenta e alguma coisa, com licença para se cansar. Tudo tem um limite, até a repetição extenuante dos discos-riscados. “Queria que você falasse um pouquinho sobre o jogo”, seria uma das frases que ecoavam no inferno dantesco?

“O mundo mudou”, ou guerra discursiva

Foto: TV Bandeirantes

Em um fervoroso bate-boca durante o programa Apito Final, uma fala pode ter sido a principal da noite: Cléber Machado (que, devemos lembrar, deixou o rádio precocemente para passar a carreira em emissoras consagradas – o padrão, lembra?) perguntou, com sinceridade, a Luxemburgo: “o que o jornalista deve perguntar [nas coletivas, senão sobre o jogo]?”, obtendo como resposta um transversalizado e agudo “o mundo mudou, Cléber”.

O que Cléber quis, ou poderia ter materializado como ideia: “se Luxemburgo está tão cansado da imprensa e da televisão, por que continua trabalhando?”. Ora, deixo ao leitor essa: trabalhar em um clube de futebol é a mesma coisa que trabalhar em um jornal? Com uma confessa ponta de conspiracionismo sci-fiano, vejo um dispositivo de guerra discursiva: o jogo é um floreamento do verdadeiro embate, que se dá entre representantes esportivos e midiáticos. O onze contra onze só acontece para produzir informações a serem trocadas em pingue-pongue entre clubes e imprensa.

O sintoma não é necessariamente novo – ainda na década de 1970, personalidades do futebol e da própria imprensa pontuavam a inclinação inconsciente da crônica esportiva de tomar para si o protagonismo da ação. A tendência foi crescente, acompanhando as transformações da tevê, o que tratarei melhor no tópico seguinte. Por ora, pensemos na situação atual, em conjunto à insinuação de Luxa. A tevê cria acontecimentos e microacontecimentos. “O mundo mudou”, então, significa não necessariamente a descentralização do comando do acontecimento, mas da disposição de suas informações constituintes. A internet não “recriou o jornalismo” tanto assim, como se convenciona dizer. Porém, é um poderoso difusor dos microacontecimentos, prestando um grande auxílio ao universo da telerrealidade.

“Neotevê” e os microacontecimentos

Entre os questionamentos de Cléber, Lívia e Marília, num dado momento, por um deles, quem exatamente não lembro – ou, possivelmente, todos ao mesmo tempo – foi feita a pergunta capital: “por que não responder sobre o jogo?”. Luxemburgo citou o fenômeno da internet, da rapidez da informação e da facilidade em se descontextualizar uma fala. Isso é um fato conhecido: o que ele diz decerto será pervertido à mercê da manchete de amanhã. Qualquer coisa, mesmo o nada – similarmente ao que aconteceu.

Ou seja, de todo modo se criaria o microacontecimento (um conteúdo provocado por um personagem), e ele invariavelmente estaria no programa esportivo de domingo à noite, puxando o fio daquela eternidade. O microacontecimento pode ganhar corpo, tornando-se um acontecimento autônomo e forte. Ou pode continuar um microcosmo na pauta pública, sobre o qual é interessante pincelar, uma vez ou outra, durante sua breve vida. Não importa – você pode dizer sim ou não para os protocolos televisivos, mas nunca escapa de alimentá-los. A internet segue cúmplice da televisão; e a revolução midiática que prometem somente se dará quando este panorama específico tiver alguma alteração. Vamos em frente:

Os ecos do Umberto…

Luxemburgo estava tranquilo em não analisar o jogo. Sabe que, com a explosão de analistas e jornalistas-ou-não que criam o próprio espaço (e, parcialmente, o próprio meio), isso não é mais seu dever. Se cada um trará uma análise pronta, fazê-la se torna redundante – e aí considerando que os novos portais são cada vez menos de “informação”, a clássica matéria-prima do jornalismo, e mais de “análise”.

É importante lembrar, entretanto, que essa análise não é a do evento que “aconteceu” e cujas ações giram em torno para registro, mas o evento que as mídias ajudam a criar. Umberto Eco (Viagem na Irrealidade Cotidiana, 1981) chamou, didaticamente, de transição da “paleotevê” para a “neotevê”: a televisão, que antes mostrava a realidade, passou a construí-la; deixou de ser a janela para o universo para ser sujeito metalinguístico dele. Na década de 1990, a televisão estadunidense já era perfeitamente adaptada ao padrão “todos contribuem com a TV, a TV contribui com todas as coisas”, ou seja, colocando a televisão como agente central, “a prevalência do médium, media-realidade”.

A psicanálise da tevê…

Entre as características pelas quais este modelo de tevê se consolidou, uma se sobressai: a sustentabilidade. Os canais de tevê dominam a imagem ao ponto de aliciá-la, e assim o conteúdo é produzido – não com base na exterioridade, mas na história que a interioridade produz. Como extensão, uma mensagem de autossuficiência; o conceito se encontra nos discursos, nas narrativas e nos personagens, de todo tipo de produção, artística, jornalística ou publicitária. Uma autossuficiência narcísica, diria Paul Valéry, valendo-se de termos freudianos.

Personagens esportivos e suas reputações dentro da telinha… uma tevê que se autoconstrói e procura encorajar os espectadores para que sintam-se completos com o que ela tem a mostrar. O que Muniz Sodré chamava de panotismo, conceito entrecruzado com a ideia de “estar em todos os lugares”, que virou uma coqueluche acadêmica ao se falar da nova fase da internet, especialmente a “internet of things”, neste caso chamaremos de império retroalimentativo.

Isto é: a tevê tem mais autoestima do que a gente pensa. Enquanto estamos aqui achando que ela está em todos os lugares, ela está é manipulando a nossa noção de lugares que existem e não existem. É o espetáculo do simulacro, é a projeção do nosso ser para dentro daquele retângulo de tela de cristal líquido; e lá viveriam os nossos dilemas, como o dualismo nosso de cada dia: sim ou não?

Em momentos da década passada, diziam-se em frente às câmeras que Vanderlei Luxemburgo deveria se aposentar do futebol. A intenção, claro, era provocar justamente o contrário. E a chantagem foi bem feita. Constantemente lembrado mesmo em sua ausência, o treinador deixou de lado a cachaçaria e o projeto de carreira política e voltou para a beira do campo, treinando Vasco e Palmeiras, e, depois de novo hiato, Corinthians. Reforço de peso para a telerrealidade!

Mudanças na imprensa esportiva?

Uma fala de Luxemburgo no programa de domingo, em meio ao julgamento tragicômico, chamou a atenção, aliás, muito positivamente. Ele sugeriu que se realizasse as coletivas de imprensa no dia seguinte às partidas, justamente para evitar atritos e problemas. Os jornalistas da bancada até concordaram, o que prova que a interdiscursividade de jogadores/treinadores dentro da imprensa esportiva é, de todo, benéfica – a posição de sujeito que mais vale é a de quem vive o campo, afinal.

No entanto, é sempre difícil crer em qualquer possibilidade que pressione contra a força contrária: aquela pelos acontecimentos. Os arranjos da estrutura foram maquinizados ao sentido de uma grande fábrica de microocorrências. Há uma certa beligerância, gente – criar condições para o personagem errar. De que serve um falante que está sempre com a cabeça fresca e escolhe cautelosamente o discurso? Qual é, galera, o poste terá que mijar no cachorro?

Fogo no protocolo!

Luxa sabe que seu nome ficará mal falado por aí por um bom tempo? Claro. Como também soube, instantaneamente, que o episódio repercutiria mal. Mas sabe que os programas esportivos também o agradecem por isso. E se tivessem que passar um dia todo apenas ruminando sobre um jogo, como fazia-se décadas atrás – época em que as atrações esportivas se resumiam a um sufocante espaço de meia-hora dentro da grade de tevê aberta? Ninguém gostaria.

Diga não ao protocolo na terça e ganhe uma oportunidade de explicar-se em rede nacional no domingo… e assim a vida vai. Você pode ter gostado ou não da atitude, especialmente do ponto de vista ético. Mas não pense que, na perspectiva midiática, o episódio foi propriamente arredio. Aceite ou recuse, a telinha está ali, sabendo das coisas, sabendo bem como usá-las – para bem ou para o mal? E isso sequer existe? Me digam vocês, enquanto a tevê continua se alimentando, de um e de outro.

1 comentário em “Luxa: como a tevê gosta”

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