“A tocha do caos e da dúvida, isso é pelo que o sábio se guia.”
– Chuang Tzu
Na vida, quem não corre risco, mais risco está correndo.
– Fernando Diniz
A nomeação de Fernando Diniz como treinador interino da seleção brasileira tem agitado o mundo do futebol. E graças a Deus! Porque a discussão que Diniz provoca sempre foi a mais cativante.
Em um ambiente saturado pelo conteúdo superficial de boatos de transferências e fios táticos no twitter de superestratégias no xadrez do futebol, a chegada de Diniz ao cenário global nos obriga mais uma vez a lidar com a verdadeira essência do Jogo Bonito.
Provavelmente, não há termo mais mal compreendido no futebol do que ‘estética’. E não se engane — falar sobre Fernando Diniz é falar sobre a estética do futebol.
Mas por que as discussões sobre Diniz são tão frequentemente enquadradas por debates em torno da estética? E por que a estética importa, afinal? O futebol não é tudo sobre vencer?
Ao longo da história do futebol, um antagonismo tem definido essa conversa. De um lado, temos a estética — a ideia de que jogar bem é jogar de tal forma que as ações no campo evoquem sentimentos de admiração e reverência em quem está assistindo. Fazer jogadas que tiram o fôlego. Do outro lado, há o resultado. Jogue do jeito que quiser, o que importa é o placar.
No Brasil, esse contraste é capturado na tensão entre futebol arte e futebol de resultados.
Mas há um nível mais profundo aqui, uma linha de investigação mais controversa. Para entender a importância de Diniz, devemos nos esforçar para apreciar ainda mais a complexidade da estética. Futebol de resultados é fácil de definir, enquanto futebol arte permanece misterioso.
No domínio estético, estamos preocupados com a maneira como interagimos com aspectos do nosso ambiente. Como o mundo faz você se sentir? O que acontece com sua química biológica quando você ouve uma determinada música? Ou quando entra em uma sala específica?
Dizemos que sentimos essas reações ‘na barriga’. Como você sabe quando está apaixonado? Quando você a viu pela primeira vez sonhando acordada na fila do correio, não foram algoritmos ou equações rapidamente aplicados que fizeram seu coração dar um salto.
No futebol, essas sensações estéticas são geralmente vistas como preferências um tanto arbitrárias. A crítica e a análise estéticas são consideradas parentes pobres de suas contrapartes quantitativas e numéricas. Afinal, é um jogo de números.
Mas esta é uma perspectiva empobrecida. Ver o futebol como principalmente uma questão de dígitos é absurdo quando observamos o comportamento do mundo real daqueles conectados ao jogo.
Como bem coloca Juanma Lillo:
“…o que enriquece você é o jogo, não o resultado. O resultado é apenas um dado. A taxa de natalidade aumenta. Isso é enriquecedor? Não, mas o processo que levou a isso? Agora, isso é enriquecedor… você compra um jornal numa segunda-feira de manhã e a única coisa nele são listas intermináveis de resultados? Você entra em um estádio de futebol nos últimos minutos do jogo, dá uma olhada no placar e vai embora?… Você não pode validar o processo pelos resultados. Os seres humanos tendem a venerar o que terminou bem, não o que foi feito bem. Atacamos o que deu errado, não o que foi mal feito.”
“Jogamos, treinamos e assistimos futebol para sentir algo, para nos sentirmos parte de algo, para experimentar a montanha-russa de emoções que apenas um grande jogo pode proporcionar.
Mas o futebol difere de outros meios de experiência estética de uma maneira crucial: ao contrário da grande maioria da música, cinema, teatro, literatura, etc., a direção de uma partida de futebol não está escrita antecipadamente. Pelo contrário, a ação se desenrola diante de nós em tempo real. Não é incomum ouvir comentaristas proclamando ‘você simplesmente não poderia escrever esse roteiro!’.
E assim nos deparamos com o que parece ser uma qualidade vital de qualquer experiência estética intensificada: imprevisibilidade. O primeiro gole de vinho, uma mudança de acorde incomum, o encontro do olhar de um estranho.
Mas nos últimos anos, o futebol tomou um caminho diretamente oposto a esse amor pelo destino. A imprevisibilidade, o acaso e o ‘caos’ foram considerados problemáticos pelos líderes do movimento posicional na tática.
Na esteira da derrota por 1 a 3 do FC Bayern para o RB Leipzig, o treinador-chefe Thomas Tuchel enfrentou a mídia na entrevista coletiva pós-jogo. O correspondente da ESPN, Archie Rhind-Tutt, relatou que Tuchel, visivelmente frustrado, afirmou que seus jogadores estavam jogando um wurfelspiel — literalmente, ‘um jogo de dados’.
Não é coincidência que Tuchel tenha usado “jogar dados” como uma analogia para os erros de seus jogadores. O posicionalismo é sobre aderir às estruturas pré-planejadas do treinador. Movimento e tomada de decisão são sempre necessários, mas em sistemas como o de Tuchel, essas qualidades são rigorosamente controladas e restringidas.
Pep Guardiola também expressou sua aversão ao caos. O jogo de posição de Guardiola é uma obra elaborada de genialidade, mas é uma genialidade que busca ordem e controle sobre desordem e caos.
‘Eu não acredito que tática seja fazer o que quiser, porque depois disso é um pouco de caos e no caos você não sabe exatamente o que vai acontecer.’
‘Em algumas partes do campo, você precisa ser criativo e arriscar… [mas] eu não gosto quando as pessoas dizem: Eu gosto de liberdade; eu quero jogar por mim mesmo. Porque o jogador precisa entender que ele faz parte de uma equipe com outros 10 jogadores. Se cada jogador jogar como um músico de jazz, será caos. Eles não serão uma equipe.’
O Posicionalismo alcançou supremacia ao impor sistemas que reduzem a incerteza e o caos. E essa supremacia levou à implementação dos princípios Posicionalistas em todos os níveis do jogo — distribuição na posse, ocupação racional do espaço, manutenção da estrutura posicional.
A única razão pela qual os jogadores permanecem em um esquema 3-2-5 é porque foram instruídos a isso. Não é uma formação orgânica ou natural. As restrições que formam essas estruturas vêm principalmente do manual do treinador.
A repetição imposta desses padrões posicionais agora levou a uma homogeneização dos estilos de jogo. É o que Lillo descreve como a ‘metodologia globalizada’.
Isso nos leva de volta à questão da estética. Se o Posicionalismo serve para minimizar o acaso e a surpresa, não acaba também por amortecer a experiência estética do futebol? Eu responderia sim. Outros responderiam não.
Algumas pessoas preferem recitais fiéis das arranjos musicais clássicos, enquanto outras buscam a espontaneidade pulsante do free-jazz. Algumas pessoas se identificam com a codificação linear de Piet Mondrian, enquanto outras ressoam com as montagens caóticas de Francis Bacon
Mas lembre-se, esses debates estéticos são vistos como secundários no futebol. Quem realmente se importa com qual estilo de futebol você gosta de assistir? Tudo se resume ao resultado.
Mas e se a estratégia do Posicionalismo de minimizar o acaso não apenas fosse infiel à natureza de uma experiência estética específica, mas também subótima do ponto de vista teórico? E se um certo estilo estético também fosse gerador de vantagem competitiva no futebol?
Essa é a proposta do Relacionismo e do Jogo Funcional que Fernando Diniz trará para a Seleção: que as vantagens competitivas inerentes são propriedades emergentes da imprevisibilidade, do caos e do acaso.
E isso não é apenas especulação selvagem. Do ponto de vista teórico e científico, é uma alegação bem fundamentada. Sabemos que grande parte do desenvolvimento no futebol ocorre em momentos de instabilidade, com um número crescente de treinadores profissionais agora defendendo o treinamento em ‘ambientes caóticos’.
Esses métodos buscam representar o mais fielmente possível o fluxo contínuo de fontes de informação presentes no jogo. Os jogadores são preparados para reagir em tempo real em relação ao desdobramento caótico da realidade ao seu redor.
O Relacionismo não busca minimizar o caos e a desordem. Mas também não advoga por uma submissão total à histeria do acaso. Ao contrário, o Relacionismo deseja um ‘acaso manipulado’. Isso significa que Diniz procura maneiras de criar condições dentro das quais o acaso pode gerar vantagens competitivas.
Vale ressaltar que, nesse aspecto, Diniz está longe de ser passivo à beira do campo. Se os jogadores não estão conseguindo criar essas condições, ele os informará imediatamente sobre isso.
Esta é a razão para o jogo de aproximação, a “paraela cheia”. Enquanto houver jogadores suficientes movendo-se juntos na zona da bola, abrindo e deslocando linhas de passe, aproximando-se e afastando-se, o treinador renuncia ao controle. As referências dos jogadores para a ação emergem e dissipam em tempo real. Eles não jogam com imagens pré-desenhadas em suas mentes.
Nesses momentos, os jogadores simplesmente jogam. Suas decisões são intuições incorporadas, não medidas calculadas. Eles jogam da mesma forma que faziam quando eram crianças. O camisa 10 do Fluminense, Ganso, descreve isso como sendo como um ‘futebol de rua’
“Tomamos decisões no momento… não é tão posicional, o jogo não é tão estático, os pontas não são tão estáticos. Pode ser como um futebol de rua.”
– Ganso
Nesse sentido, Diniz é um jardineiro constante. Sempre ajustando e cuidando das restrições do sistema para proporcionar e aproveitar os aspectos positivos do acaso.
Quem sabe quais organismos estranhos se formarão se raízes e sementes forem dadas as condições para se misturarem, cruzarem e se combinarem? E quem quer saber? Afinal, é o surgimento em tempo real desses padrões e estruturas que torna este futebol tão alegre de se contemplar.
“A vida não é matemática. Nunca vou querer tirar a incerteza do jogo, é o que traz as emoções ao futebol.”
-Fernando Diniz
O Relacionismo inverte a ideia de que a estética no futebol é secundária em relação ao seu equivalente quantitativo — o Relacionismo é descaradamente o futebol arte.
Francis Bacon costumava começar suas pinturas atirando violentamente tinta pela tela e depois esperava que imagens surgissem do caos de seus rabiscos maníacos. O Relacionismo espelha esse processo, permitindo que cada interação espontânea seja o local de nascimento da próxima.
Assim como em toda a realidade, a base do futebol é não numérica. Sabemos que a racionalidade se dissolve no nível quântico.
E, como Bacon, o Relacionismo procura utilizar essa base instável — uma base que Gilles Deleuze chamou de ‘o plano da inconsistência’ — como fonte de combustível para interações criativas. Em vez de se esconder desse reino de caos informe, Diniz o vê como o próprio local de onde surgem estrutura e organização. Sua imprevisibilidade inerente é sua maior vantagem; o acaso é uma característica, não um defeito.
Pela primeira vez em sua carreira, Diniz guiará um elenco repleto de jogadores com habilidades de improvisação selvagem. A perspectiva de Neymar, Vinicius Jr. e Rodrygo associando-se livremente é deliciosa. E quais papéis os prodígios atacantes Vitor Roque e Endrick terão que desempenhar? Poderíamos até mesmo estar prestes a testemunhar o retorno do talentoso Ganso ao palco internacional?
Enquanto treinadores Posicionais como Tuchel condenam publicamente os jogadores por jogarem dados, Diniz invoca o caos do jogo livre como fonte de progresso criativo.
O futebol será sempre um jogo de números — o resultado é composto por dígitos. Mas os dados colocam esses números em seus lugares.
Os dados limitam os números; e a aleatoriedade do lance dos dados obriga os números a aceitarem que sempre estarão em uma ordem inferior à misteriosa magia do acaso.