Um drama flamenguista

O 2024 foi louco para o flamenguista. Filipe assume no olho do furacão, e no que tange à tática, me parece que foi mais um filho das circunstâncias do que qualquer outra coisa. Abraçou o momento, fez o que dava, tentou recuperar a confiança do time e reconsolidou uma pressão alta bem feita. Mesmo que respaldado, era um treinador de primeiro trabalho em um ano eleitoral que poderia mudar tudo. Tinha muito a provar. O 2025, no entanto, é outro. Ano de um Filipe respaldado para manejar as circunstâncias e para “colocar sua cara no time”. Um Filipe que talvez seja o maior representante do tão aguardado “novo futebol brasileiro” da crônica esportiva. Ao treinador, o novo panorama cria novas possibilidades, da forma de gerir o dia-a-dia à tática.

Isso posto, distante do que acontece internamente, me parece que a grande questão deste Filipe Luís com mais espaço para agir no primeiro semestre do ano foi, acima de tudo, consolidar uma forma de se ocupar o espaço. Não só no que se refere a ocupar espaços essenciais dentro de uma lógica posicional, mas sobretudo sobre dominar o campo adversário. Com bola, inegociável que dois ocupem a base da jogada, dois a amplitude e dois os meio-espaços. Sem ela, inegociável a linha alta e pressão constante na bola. A ideia é ter controle. Desde circulação da bola e as dinâmicas até quem joga e quem não, tudo serve ao propósito de dominar o adversário e o jogo. Até onde ele permitir.

Os espaços inegociáveis de Filipe Luís

Passado o primeiro semestre, este objetivo parece estar muito mais do que cumprido. De tudo que se entende como domínio e controle no futebol de hoje, esse Flamengo, à parte da sequência recente abaixo da média, deve ser uma das equipes mais dominantes dos últimos anos no Brasil — se não a mais. Isso não quer dizer a que mais ganha, a melhor ou a mais encantadora; creio que dificilmente será, mas deixo isso ao tempo. No entanto, se a ideia de domínio na construção discursiva do futebol moderno está intimamente ligada a, primeiro, ocupar com volume o espaço (pense aqui a partir das métricas do Field Tilt, que é o quanto a equipe ocupa o último terço adversário, e do PPDA, que mede pressão alta a partir de passes por ação defensiva) para depois ocupar setorialmente (pense aqui a partir dos pressupostos do Jogo de Posição), poucos dominaram como este Flamengo. Mais do que a melhor execução, é provavelmente o Jogo de Posição mais consolidado que vimos no Brasil. Os jogadores entendem e a equipe já parece jogar ao natural dentro dos pressupostos da filosofia, algo raro nas experiências brasileiras e flamenguistas.

Disposto destes princípios, o Flamengo é muito confortável quando as condições do jogo permitem que sua dominância signifique fluidez. Contra a predominância de blocos defensivos em 4-4-2 e 4-1-4-1 zonais, o Flamengo ativa com muita facilidade a superioridade numérica e espacial que tendem a ter por dentro. Basta apenas ter Jorginho, Saúl, Plata e Arrascaeta nos lugares certos, com a possível colaboração de Pedro, que o Flamengo vai progredir. Os quatro do meio constantemente ficam em superioridade numérica em relação aos dois ou três do adversário; os da base, mais livres, servem tanto como mobilizadores para um passe direto dos zagueiros para o entrelinhas, quanto como portadores da bola para interagir. Arrascaeta e Plata, por estarem posicionados nos quadrados, costumam ter vantagem posicional e visual em cima dos volantes adversários: estão nas costas deles, os enxergando sem serem enxergados. No fim, é claro, tudo funciona pela qualidade dos citados e pela sinergia. Mas, simplesmente a partir das suas localizações, conseguem ter vantagens táticas valiosas para que os talentos emanem. É nesse tipo de jogo que estão os amassos no Maracanã contra Vitória, Juventude, Corinthians e outros — dificilmente não vencem bem quando nessas condições.

Ainda que não seja apenas a partir disso que o Flamengo constrói, o importante é compreender que, com a qualidade da equipe e a dominância, as localizações (aqui não se entende apenas a posição que estão ocupando, mas também altura, perfilamento… uma questão principalmente corporal, mas discussão pra outra hora) costumam bastar contra blocos em zona. O drama do Flamengo tem sido outro: contra equipes que marcam individual, promovem duelos pelo campo todo e tiram os flamenguistas da zona de conforto, as localizações não têm bastado. As partes do jogo não estão isoladas; a tática está ligada ao anímico, ao técnico, ao estratégico e tudo que acontece dentro do campo. Duelos podem muito bem tirar uma equipe de sua zona de conforto e de sua capacidade de executar bem a tática e a técnica. Corinthians, Estudiantes, Vasco e Bayern, mesmo que este último não seja citado no texto, dão pistas de um antídoto doloroso aos rubro-negros.

Marcações individuais: o caso Corinthians

Começo pelo caso Corinthians porque compreendo que, dentre as equipes escolhidas que se propuseram a marcar individualmente o Flamengo, é quem adotou a abordagem mais agressiva e dueladora, pressionando alto sem sobra a partir de seu 5-3-2. Percebam na imagem: abordagem sem receio de saltar com os dois volantes nos dois volantes flamenguistas e pareando individualmente na última linha com alguns encaixes curiosos e até arriscados. Com Tchoca perseguindo Arrascaeta pelo campo todo, Raniele com Carrascal e Gustavo Henrique com BH, a proposta de criar duelos era clara. O ponto era impedir que o Flamengo acionasse com bolas limpas Carrascal e Arrascaeta, forçando recepções pressionadas e mais alongadas. Semelhante ao que fez o Bayern no mundial, que talvez tenha sido o primeiro a expor a dificuldade do Flamengo contra HxH e duelos (e ali ainda estavam Gerson e Wesley, talvez os dois melhores dueladores da equipe titular junto com Léo Pereira).

Foi um primeiro tempo abaixo do Flamengo inclusive tecnicamente, mas percebam no vídeo a seguir como o Corinthians propôs duelos por todo o campo e o Flamengo pouco fez nos tiros de meta além de tentar alongar para a profundidade. Pelas características dos jogadores, o Flamengo tem dificuldade para alongar em direção de algum apoio como fazia com Gerson; poucos sustentam, e jogadores como Arrascaeta, BH, Lino e até Pedro, que não jogou, tem especial dificuldade nestes cenários com mais pressão nas costas. A solução que mantém a estrutura de ataque acaba sendo buscar a profundidade, apostando em um perfil como o de Bruno Henrique. O problema é que com a pressão que o Corinthians exerceu logo nos primeiros passes as bolas dificilmente saíam limpas, mesmo que do pé de Rossi. Gui Negão e Yuri Alberto “saiam rodados” de seus encaixes para pressionar o goleiro flamenguista quando era acionado nas construções. No fim, as bolas longas saíram curtas, cenário favorável para um Corinthians interessado em duelar na última linha contra atletas de pouca capacidade de retenção de costas. As bolas que saíram limpas para a profundidade foram bem cobertas em um primeiro momento, por mais que o encaixe de Gustavo Henrique em BH tenha parecido um tanto temerário conforme o Corinthians afrouxou.

Em cenários de construção média — poucos no primeiro tempo de dominância corinthiana –, o Flamengo teve alguma dificuldade de manipular os mesmos encaixes da pressão nos tiros de meta. Por mais que os volantes corinthianos se mantivessem ambos altos e encaixados nos volantes flamenguistas, me parece ter faltado algo de movimento dos meias rubro-negros, até para gerar algum espaço na profundidade, uma vez que eram perseguidos pela última linha. O efeito eram posses curtas. Sem conseguir reter, o Corinthians se sentiu cada vez mais confortável para subir o bloco.

Fosse um dia mais inspirado de Yuri Alberto, o Corinthians iria para a segunda etapa com vantagem tranquila; não foi e perdeu capacidade de duelo, talvez por cansaço. A partir disso, os flamenguistas, agora mais ligados no jogo, aproveitaram que o rival mantinha suas referências individuais sem a mesma intensidade para explorar as costas de Maycon e Martínez, que continuavam saltando alto. A última linha não era mais capaz de compensar duelando; a pressão alta flamenguista mais ajustada fez com que o time também tivesse mais situações de construção média, nas quais o Corinthians não conseguia subir seu bloco com seus encaixes de forma coordenada.

Marcações individuais: o caso Vasco

O jogo contra o Vasco também demonstra a dificuldade do Flamengo contra equipes que pareiam individualmente, por mais que o Vasco tenha sido ligeiramente menos duelador que o Corinthians, até por perseguirem menos. Contudo, o 4-4-2 costumeiro de Fernando Diniz em defesa com saltos sempre pares na primeira linha (sempre mantém atacantes saltando com zagueiros e pontas com laterais, independente da estrutura rival) espelhava o 3-2-5 flamenguista, virando 5-2-3 com Nuno encaixado com Royal até a última linha.

Em alguma medida, foi uma partida em que o Flamengo foi menos 4+2 em primeira fase (vejam no vídeo contra o Corinthians) e mais 3+2: a intenção aqui, talvez, era ter Royal mais alto do que lhe é costume desde cedo, para trazer Nuno consigo e gerar possíveis espaços por dentro. Nesse sentido, os encaixes de Pumita em Plata e Cuesta em Carrascal eram particularmente favoráveis aos flamenguistas, já que com os dois volantes vascaínos saltando nos dois volantes rubro-negros e Nuno baixo com Rayan alto, a linha média ficava em dois. Isso gerava espaços para Plata e Carrascal receberem nos quadrados laterais se fizessem movimentos mais amplos para lateralizar, com quem estivesse na amplitude afundando e fixando seu encaixe baixo. Principalmente Cuesta ficava um tanto em dúvida para saltar com Carrascal, já que o salto podia desencadear em espaços na profundidade.

O Flamengo até gerou situações com Plata e Carrascal se movimentando nos quadrados laterais, mas, do alto da minha completa distância e ignorância em relação aos processos internos do clube, poderia haver maior intencionalidade nestes movimentos, com compensações e uma circulação que buscasse mais isso. Tirar Cuesta e Pumita de posição constantemente era interessante ao Flamengo. Esvaziar para depois ocupar. Vejam nessa vídeo-análise em câmera aberta, na qual indico os encaixes de pressão, a estrutura do Flamengo e possíveis situações para manipular estes encaixes. No fim, o Flamengo perdeu algo de paciência e novamente alongou o jogo — o que não é a priori ruim, mas outras opções poderiam aparecer, até para alongar.

https://drive.google.com/file/d/1bYW8th_2zGlMHGlQ9DReJQxt4gRzpK1o/view?usp=sharing – link do Drive para visualização do vídeo, muito longo para ficar no site.

Marcações individuais: o caso Estudiantes

O caso do Estudiantes é um tanto diferente de Corinthians e Vasco. O cenário é o mesmo: adverso ao Flamengo. Duelos, meio-campo encaixado e pouca vantagem desde as localizações. No entanto, diferentemente dos brasileiros, o Estudiantes não pareou 10×10 no campo inteiro, mas marcou com sobra e encaixes mais pontuais. No 4-2-3-1 organizado por Eduardo Domínguez, os volantes encaixavam em Plata e Arrasca, Medina encaixava em Jorginho, Ascacíbar em Saúl, Palacios em Alex Sandro e Guido Carrillo inicialmente se dividia entre os zagueiros. Os ajustes aconteciam à medida em que o Flamengo ganhava campo e Medina, que marcava Jorginho pela frente em alguns momentos, saia de seu encaixe e saltava com Ortiz; Ascacíbar compensava saindo de Saúl para Jorginho, enquanto Guido tirava a volta e Palacios equilibrava por dentro. Neste cenário, o Flamengo encontrou algumas vantagens no fim da primeira etapa no 2×1 que se criava com Saúl e Jorginho em cima de Ascacíbar nessa situação com o salto atrasado de Medina. Domínguez respondeu com Medina deixando Ortiz livre/segurando para saltar marcando Jorginho pela frente, saltando apenas quando a cobertura já estava mais sólida. Com isso, o jogo por dentro do Flamengo foi dificultado e o Estudiantes roubava com facilidade. Outra situação que vale menção é quando Jorginho baixava entre os zagueiros formando 4+1, o que facilitava os encaixes do Estudiantes pelo 4-2-3-1 promover muitos encaixes naturais contra 4-3-3, que era o resultado prático do movimento do 21.

Novamente entendendo minha posição distante dos processos do dia-a-dia e sobretudo o contexto do jogo (Flamengo posto nas cordas, dificuldade em arriscar), uma postura mais ativa de Plata e Arrascaeta em movimentos poderia ser uma solução. Considerando que a bola passava muito tempo no pé de Ortiz, dentro das relações entre próximos-intermediários-distantes características do Jogo de Posição, Plata poderia vir em um apoio mais intermediário, aproveitando a superioridade numérica no corredor e a vantagem posicional de Jorginho sobre Medina quando este o marcava pela frente, sendo segundo homem e botando o volante de frente para o jogo como terceiro homem. Por vezes, quem ocupa os quadrados no Flamengo acaba se viabilizando pouco como um apoio mais próximo ao portador, mesmo quando está encaixado e dificilmente receberá tão somente por estar bem localizado (o encaixe retira a vantagem posicional numa perspectiva macro). O simples movimento de apoio pode desencadear muita coisa dentro dos encaixes, mesmo na lógica dos espaços do Jogo de Posição, tanto promovendo essas dinâmicas de terceiro homem e refazendo as relações próximo-intermediário-distante, quanto simplesmente desocupando espaços para outro ocupar.

Plata e Arrascaeta podem participar mais como segundos-homens

Vejam na vídeo-análise como isso se desenhou na partida. Estudiantes duelador e que negou progressões a um Flamengo que, por N motivos, que vão da tática ao contexto de jogo, não conseguiu criar movimentos para manipular os encaixes argentinos. Percebam também como o apoio de quem está entrelinhas pode ser uma arma para mudar o corredor (como exemplo, Plata baixando e conectando Alex Sandro uma vez que Palacios, encaixe do lateral esquerdo, está equilibrando por dentro).

Vídeo – https://drive.google.com/file/d/1gFcfvb79zTaeh4BD6vV_rQtWoAb-nUag/view?usp=sharing

É difícil para todo mundo. Qual o segredo das marcações individuais?

No meu modo de ver, a grande questão da marcação individual, para além de ser uma forma eficiente de lidar com equipes que buscam 1) sair curto e 2) ocupar o espaço mais fixamente, é como é capaz de promover duelos por todo o campo. Explico a razão. Voltando ao que disse sobre tudo estar interligado dentro do jogo — da gestão do treinador, passando pelo ambiente até a tática –, é um tanto lógico que há uma ligação profunda entre o anímico e o quanto uma equipe consegue ter sucesso dentro de sua proposta tática e suas ações técnicas. Tudo é sobre sorte e circunstâncias, mas um plano de jogo pode, sim, influenciar no anímico de uma partida de futebol. Creio que, pensando nisso, poucas coisas são tão eficientes para jogar com o aspecto anímico ao seu lado como ganhar duelos. Isso, claro, não se dá apenas na dimensão do embate físico: um drible, por exemplo, é um duelo ganho. O ponto é que marcar individualmente talvez seja a melhor maneira, no futebol de hoje, de promover duelos e ganhá-los.

O Flamengo, hoje, não é mais tão duelador como uma vez foi (e não estou falando apenas da vulgaridade da dimensão física aqui — Everton Ribeiro, por exemplo, era franzino mas bom duelando). Continua excelente enquanto equipe, sim, claro, mas não é mais uma equipe marcada por jogadores com aquela capacidade esplendorosa de solucionar individualmente os problemas do jogo. Até no físico, dueladores como Fabrício Bruno e Gerson não estão mais no elenco. Verdade posta na mesa, o Flamengo precisa arranjar outras soluções, porque realmente creio que lhes falta algo de capacidade de duelar. Num caminho lógico até a taça da Libertadores, os cariocas enfrentarão Racing e Palmeiras, marcadamente equipes dueladoras e que se defendem através de encaixes individuais. Pior cenário possível para os rubro-negros.

É esse o grande desafio de Filipe para o resto da temporada. A equipe já é dominante e tem consolidada a forma de se relacionar com o espaço idealizada pela comissão. Não tem, todavia, a mesma capacidade de duelar, e tem dificuldades para lidar com marcações individuais. Veremos o que será daqui pra frente.

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