Rápido e rasteiro

Diniz comemorando vitória no Cruzeiro
Finalista da Sul-Americana, o Cruzeiro de Fernando Diniz vai, pouco a pouco, (re)encontrando sua identidade.

O Cruzeiro é, sem sombra de dúvidas, uma das histórias mais interessantes do futebol brasileiro na temporada atual. Quem acompanhou o turbulento começo de ano do time, que vinha de uma luta contra o rebaixamento em 2023 e iniciou 2024 com um treinador novo, decepção na final do Campeonato Mineiro, troca no comando do time e venda da SAF para outro investidor, dificilmente imaginaria que o Cruzeiro fecharia o primeiro turno do Brasileirão brigando pelo G4, com uma assustadora sequência invicta no Mineirão e jogando um nível de futebol para rivalizar com Botafogo, Flamengo, Palmeiras, Fortaleza e Atlético Mineiro. Ao mesmo tempo, quem viu o Cruzeiro vencer o Botafogo, líder do campeonato, por 3 a 0 fora de casa em um dos melhores jogos do ano tampouco esperava uma queda tão vertiginosa no nível de futebol do time que resultaria na segunda troca de comando do time em 2024, a apenas 3 meses do fim da temporada.

A verdade é que, embora algumas expectativas infladas por uma fase excepcionalmente boa do time tenham tornado o Cruzeiro um pouco vítima do próprio sucesso, há, sim, alguma materialidade nas cobranças. Em uma profunda crise de identidade do futebol brasileiro, que assola desde as categorias de base até a Seleção masculina, o movimento do Cruzeiro com Seabra e Diniz é de resgate às raízes culturais do futebol do Brasil. A boa fase do time, que encontrou seu apogeu no 3 a 0 sobre o Botafogo no Rio de Janeiro, era mais que bons resultados e um modelo de jogo bem executado: era o reencontro de uma tradição antiga do futebol mineiro e brasileiro.

Escrevi, no texto “Futebol brasileiro, Fernando Diniz e as falácias que os circulam”, sobre a tradição futebolística hegemônica do Brasil. Reconhecer a existência dela não é apagar as outras existentes, como o futebol mais físico e defensivo da escola gaúcha ou de treinadores como Muricy e Abel Braga, mas apontar que há uma linha dominante, de raízes que remontam ao futebol carioca, que guiou os grandes times de clubes e da Seleção Brasileira a partir dos anos 50. O futebol de Flávio Costa, Zagallo, Telê e Luxemburgo (provavelmente os 4 grandes treinadores da história do Brasil) é profundamente brasileiro e dialoga com grande parte da cultura do país; não é o único futebol brasileiro, mas é um futebol essencialmente brasileiro. O Brasil de 58, 62, 70, 82 e 94, sim, mas também de 74, 78, 86 e 98; o Santos de Pelé, o Botafogo de Didi e Garrincha (e, depois, de Gérson e Jairzinho), o Flamengo de Zico, o São Paulo de Telê, o Palmeiras de Luxemburgo… Posso ficar o dia todo listando times e mais times, dos clubes e da Seleção, que dialogavam em estilo, princípios e características com um mesmo cerne conceitual: ataque funcional, assimétrico, recheado de diagonais, progressão por movimentos (tabelas, escadinhas), desmarques (de apoio e ruptura), pausado (não lento) e baseado no jogo curto, associativo. Dentro desses times que citei (e os que deixei de citar), há modelos mais ou menos verticais (os times de Parreira, por exemplo, trabalham a bola com mais paciência que os de Zagallo, para citar dois treinadores que sempre andaram juntos), mas a diferença no ritmo da posse de bola sempre respeitou esse cerne conceitual. Os times brasileiros que jogavam de forma mais lenta, como os de Parreira, sempre o fizeram a partir do ataque funcional, de movimentos, assimetrias e rupturas, e não pela fixação do jogador no espaço como os times espanhois e holandeses do Jogo de Posição. Ao mesmo tempo, os times brasileiros mais rápidos, como os de Zagallo, aceleravam as jogadas a partir das tabelas verticais e jogadas mais velozes de pé em pé, não por um jogo mais alongado e físico como as equipes alemãs, ou como parte da escola gaúcha e bielsista. De qualquer maneira, no futebol brasileiro, sempre houve profundo respeito à pausa: jogar de forma pausada não é, necessariamente, jogar com lentidão, mas sim jogar de acordo com o tempo dos jogadores. O Jogo de Posição, para tomar de exemplo um modelo amplamente (nem sempre de forma justa) considerado como lento, é pouquíssimo pausado, pois, como os jogadores se movem pouco e em espaços curtos, a bola precisa rodar com muita velocidade entre as posições. É o chamado “doistoquismo”: o jogador no Jogo de Posição precisa dar pouquíssimos toques na bola para girá-la com rapidez e compensar sua falta de movimentação. A pausa é a capacidade individual do jogador de manejar os ritmos do jogo, sentir, interpretar e intuir antes de jogar. Mesmo os times mais velozes da escola brasileira de futebol dependiam da autonomia dos jogadores para pausar as jogadas e interpretá-las antes de acelerar pelas tabelas.

Vídeo 1: a Seleção de 70 era reconhecidamente mais vertical, mas repare que os jogadores no começo do lance sempre priorizam mais toques na bola antes de acelerar. Pausa.

O Brasil foi assolado por duas crises de identidade distintas nos últimos 20 anos. A primeira, fruto do sucesso de Felipão em 2002 e da ascensão de treinadores como Muricy, Abel Braga, Celso Roth, Mano Menezes e Dunga na segunda metade dos anos 2000, imprimiu no futebol brasileiro um discurso de disciplina, de pretensa organização tática (que, para todos os efeitos, significava organização defensiva) e de jogo mais físico e alongado. A segunda, e mais grave, veio fantasiada de solução para a primeira: para voltarmos ao futebol arte que impressionou o mundo, não deveríamos resgatar a cultura brasileira, mas importar a europeia. Começou, então, uma pasteurização do futebol brasileiro desde a base até os times e Seleções profissionais a partir de um modelo deturpado do Jogo de Posição, processo protagonizado por Tite, Ramon Menezes e nomes estrangeiros como Sampaoli, Abel Ferreira e Vítor Pereira. O resultado: na virada da década 2010 para 2020, a Série A do Brasileirão e a Seleção Brasileira jogava, majoritariamente, a partir de um modelo posicional, alongado, de jogadores fixos no espaço e de um modelo tático de repetição e mecanização sobreposto ao talento individual do jogador.

Em meio à hegemonia do futebol posicional no Brasil, tivemos alguns nomes que resgataram a tradição do país a partir de diferentes movimentos. Jorge Jesus e Artur Jorge trouxeram uma parte da cultura europeia mais distante do jogo posicional e mecanizado e mais próxima da escola mediterrânea, que prioriza um ataque funcional de jogo interno através dos meias e aceleração pelas ultrapassagens dos laterais; Renato Gaúcho, filho do futebol brasileiro dos anos 90, imprimiu no Grêmio e no Flamengo um ataque funcional sedimentado na verticalização pelas tabelas, atacando sempre de pé em pé; Dorival e Filipe Luís tiveram a sensibilidade de construir um modelo de jogo que privilegiava as características do elenco do Flamengo; e nomes como Coudet e Pezzolano apresentaram um estilo sul-americano diferente do jogo Bielsista de Sampaoli e Milito, que era menos lúdico que o futebol brasileiro tradicional mas que ainda apostava na movimentação e nas tabelas ao invés da fixação dos jogadores no espaço.

Há, no entanto, uma onda diferente dentro desse movimento de resgate, que não se baseou na continuidade direta do futebol dos anos 90 de Renato Gaúcho ou da importação de um modelo estrangeiro que dialoga com o estilo brasileiro via Jorge Jesus e Artur Jorge. Enquanto a maioria da nova geração de treinadores do Brasil segue o modelo posicional estrangeiro, nomes como Fernando Diniz e Fernando Seabra buscaram, de forma autônoma, independente e espontânea, um retorno às raízes do futebol brasileiro e à expressão cultural do nosso povo no futebol a partir da própria formação. Os movimentos do Cruzeiro que, mesmo em crise, preferiu apostar na continuidade de um modelo autoral e reconhecível ao contratar Fernando Diniz, mostram um time que preza, acima de tudo, pela autenticidade e pela identidade do futebol brasileiro. 

1. Cruzeiro Esporte Clube: ataque funcional, futebol brasileiro e ponta-de-lança

“Um modelo vencedor, bonito, que agrada. O torcedor ia pra arquibancada […] porque sabia que ia ter espetáculo” – Raul Plassmann, ex-goleiro do Cruzeiro.

Reconhecer uma dialética de estilos em um cenário específico é tão injusto quanto é necessário. Apontar um embate de duas culturas distintas pode, sim, acabar apagando as nuances de cada uma, mas dar nome a elas é imprescindível para conferi-las uma identidade e, através disso, abrir o caminho para reconhecer suas nuances, desvios, aproximações e divergências.

Partindo desse ponto, é amplamente difundida em Minas Gerais a dialética cultural dos estilos de jogo dos dois principais times de Belo Horizonte, reforçada inclusive por seus respectivos hinos. Se o Atlético Mineiro valoriza a raça, a entrega em campo, a paixão quase irracional do torcedor encarnada no jogador, que se materializa em um jogo mais aguerrido e físico, o Cruzeiro celebra um estilo de toque de bola, mais lúdico, comprometido com o talento individual dos jogadores e com um resultado final mais vistoso. Não quero, aqui, cair no velho (e improdutivo) debate de futebol raça x futebol arte. É evidente que nenhum atleticano fica satisfeito com um futebol horroroso contanto que os jogadores saiam de campo sangrando, e ao mesmo tempo é claro que nenhum cruzeirense se contenta com um jogo bonito praticado por jogadores descompromissados. O que proponho aqui é um olhar diacrônico aos times que consolidaram Cruzeiro e Atlético como os grandes times de Minas Gerais, aos estilos consolidados e reproduzidos por eles ao longo das décadas, e ao ponto de partida do que cada torcida considera como imprescindível para a identidade do clube. Essa dialética foi reforçada de maneira curiosa por Alexandre Kalil, ex-presidente do Atlético, em entrevista ao Charla Podcast: “O Atlético, por característica, e não me pergunte por que porque eu não sei, não é time de camisa 10. O Cruzeiro sempre foi. O Atlético é time de camisa 9, que o Cruzeiro nunca foi. O que não tira o Ronaldinho de camisa 10 do Atlético e nem o Ronaldinho Fenômeno de camisa 9 do Cruzeiro, são exceções. Mas os grandes centroavantes sempre estiveram no Atlético – Dario, Reinaldo, Hulk, Tardelli, Jô – e os 10 eram do Cruzeiro, o próprio Tostão era 10, Dirceu, Alex… É uma característica do futebol mineiro, eu nunca ouvi, isso eu deduzi”.

A fala de Kalil é curiosa porque respalda, de certa forma, o ponto que argumento aqui e que é debatido em Minas Gerais. O Cruzeiro, historicamente, constrói seus times ao redor de um camisa 10 clássico, o “ponta-de-lança”, e o Atlético em função do camisa 9. Kalil reforça que a dialética existir não impede as exceções, os desvios, ao reforçar que a cultura de cada clube não impediu que Ronaldo explodisse no Cruzeiro e Ronaldinho tivesse sucesso no Atlético (afinal, não há dialética sem contradição), mas, ao reconhecer a diferença de cultura entre os clubes de Minas, confere identidade a cada um. O Atlético, por ser o “time do camisa 9”, buscou historicamente priorizar um jogo que fizesse a bola atravessar o campo rapidamente, que prezava pela objetividade da posse e pelo aspecto lúdico da raça e da entrega. Não é por acaso que, mesmo com Telê Santana no comando, o símbolo do Atlético era Dadá Maravilha, mesmo sem ser o melhor jogador do time. Posteriormente, Reinaldo era muito mais que um artilheiro, era um craque, mas não era um 9 particularmente associativo como Dinamite, Romário e Ronaldo, e preferia encarar o jogo de frente, conduzindo a bola, driblando, e não com tabelas e associações muito complexas. Em 2013, mesmo com Ronaldinho, o Atlético também tinha um estilo mais direto e objetivo, com sua verticalidade associada a um jogo mais físico, e em 2021 o clube voltaria a ter em seu centroavante (Hulk) a grande referência do elenco. Mais uma vez: não argumento, aqui, que essa diferença de cultura dos times está gravada na pedra, mas é interessante observar discursos e identidades distintas dentro de Minas Gerais, em uma dinâmica parecida com os embates escola brasileira x escola gaúcha, la nuestra x bilardismo, futebol carioca x futebol paulista etc.

O Cruzeiro, por sua vez, é o time do camisa 10. A partir da segunda metade dos anos 60, jogava com três atacantes, mas se estruturava a partir da dupla Dirceu Lopes – Tostão no meio-campo, com Piazza na zaga e Zé Carlos de volante. Nessa dinâmica (que teve o trio Natal – Evaldo – Hilton Oliveira no ataque em 66 e Roberto Batata – Palhinha – Lima em 71, por exemplo), Zé Carlos era o primeiro volante, Dirceu Lopes (usando a camisa 10) se deslocava da esquerda para dentro como um meia-atacante e Tostão (usando a camisa 8) era o ponta-de-lança, o meia mais avançado. Em 72, Tostão vai para o Vasco e logo mais se aposenta por problemas de visão, e o Cruzeiro se reestrutura: em 73, já começa a reproduzir as tendências do Brasil de 70. Jogava com uma dupla de volantes (Piazza e Zé Carlos), Eduardo era um falso-ponta pela direita que se tornava terceiro-homem do meio-campo (a mesma dinâmica de Rivellino pela esquerda no Brasil de 70) e Dirceu Lopes assumiu a ponta-de-lança, jogando mais avançado, por trás de Palhinha (o camisa 9) e Lima (ponta-esquerda). Em 76, já sem Dirceu Lopes, Palhinha se torna o 10, Eduardo segue sendo o terceiro-homem saindo da ponta, Piazza e Zé Carlos continuavam como dupla de volantes e a dupla de ataque tinha Jairzinho como 9 e Joãozinho na ponta-esquerda.

Essa época, como disse Raul Plassmann, criou um paradigma na cultura do Cruzeiro. Um estilo de jogo que buscava a imposição a partir da técnica, do toque de bola, que assimilou a cultura do ataque funcional brasileiro de aglutinar jogadores ao redor da bola para tecer associações, tabelas e combinações. A fluidez de movimentos do ataque funcional, que exigia que os jogadores se deslocassem em espaços largos para se aproximar da bola, se movendo constantemente para apoiar o portador da bola ou romper para receber no ponto futuro, se materializa em um perfil de jogador rápido, leve e inventivo, que fosse ágil o suficiente para se movimentar a todo momento e autossuficiente para ter a iniciativa de pegar a bola, dar vários toques, avançar, driblar, ultrapassar etc. Era um futebol jogado de pé em pé, no toque de bola, mas com rapidez nos movimentos e verticalidade nas tabelas. No centro de tudo, estava o gênio, o ponta-de-lança: por vezes Tostão, por vezes Dirceu Lopes, e o time inteiro acompanhava o ritmo fluido e frenético de movimentos e trocas de ritmo. Futebol funcional, ofensivo, à brasileira.

Essa identidade se aprofunda até as categorias de base, e jogar no Cruzeiro vira sinônimo de ser um jogador criativo, leve, rápido e inventivo. A próxima era de ouro do clube viria a partir da segunda metade dos anos 90, onde o time vence a Copa do Brasil (1996), o tricampeonato mineiro (1996-1998), a Libertadores (1997) e a Recopa Sul-Americana (1998). O time, sofrendo alguns desmontes que eram típicos do futebol brasileiro dos anos 90, sempre priorizou o quarteto no meio-campo, como Fabinho-Donizete-Ricardinho-Palhinha em 97. Em 2003, com Luxemburgo, Alex é a grande estrela de outro quarteto no meio-campo. Nos anos 2010, Cruzeiro tem, em diferentes momentos, Montillo, Éverton Ribeiro, Thiago Neves e Arrascaeta. E, em 2024, Matheus Pereira. Historicamente, o Cruzeiro sempre foi um time muito associado ao futebol brasileiro tradicional: construía seu time em função do meio-campo, jogava a partir do toque de bola rápido, ágil e flexível, e buscava no camisa 10 a referência técnica, tática e de estilo. O time jogava no ritmo do ponta-de-lança.

Por isso, escrevo que as cobranças sobre o Cruzeiro de 2024 foram infladas, mas tinham materialidade. O Cruzeiro em alto nível representou, esse ano, um resgate da tradição celeste, que também é, por consequência, um resgate do futebol brasileiro em sua essência. Um jogo fluido, funcional, leve, ágil e ofensivo, que empodera seu craque e faz de seus jogadores os protagonistas é um suspiro em meio a uma destruição sistemática do estilo brasileiro, que deve ser mantido, preservado e incentivado. A autoralidade do Cruzeiro de 2024, nos bons e maus momentos, é o verdadeiro futebol brasileiro voltando à superfície.

2. O ataque funcional de Fernando Seabra: pausa, rapidez e movimento

A melhor versão do Cruzeiro de Fernando Seabra tinha uma dupla de volantes (Romero e Lucas Silva, que depois foi substituído por Matheus Henrique), Barreal atuando como falso-ponta pela esquerda, se tornando um volante/terceiro-homem de meio-campo, Matheus Pereira de camisa 10 e uma dupla de ataque.

O movimento do Cruzeiro pelo resgate de sua identidade começou com a contratação de Fernando Seabra ainda na gestão Ronaldo. Após um período frustrante com Larcamón, um bielsista convicto, o Cruzeiro encontrou em Seabra sua maneira particular de reproduzir o ataque funcional à brasileira. À época, escrevi no Twitter comparando as características do time com os representantes do ataque funcional no ano anterior: o Grêmio de Renato Gaúcho, vice-campeão do Brasileirão de 2023, reproduzia diretamente as tendências brasileiras dos anos 90. Era um time muito vertical através de tabelas alucinantes, que cruzava o campo com agilidade sem esticar as jogadas, mas trabalhando a bola de pé em pé, sempre com passes para frente e ultrapassagens a todo momento. O Fluminense de Fernando Diniz, campeão da Libertadores, era mais autoral e construía um paradigma diferente, com diagonais e paralelas muito longas, muitos jogadores na zona da bola e uma posse mais costurada e trabalhada, tabelando por dentro do bloco defensivo do adversário, envolvendo seus volantes, meias e atacantes em todas as jogadas. O Cruzeiro de Seabra fazia um pouco dos dois, e um pouco de nenhum. Era um time menos vertical que o Grêmio de Renato e aproximava menos os jogadores que o Fluminense de Diniz, mas, talvez, seja o que mais trabalha os movimentos.

Vídeo 2: Sequência de posse de bola do Cruzeiro contra o Grêmio

Como demonstrado no vídeo acima, o ataque funcional do Cruzeiro se orientava pelos movimentos de desmarque e apoio dos jogadores – um estilo mais próximo do Real Madrid de Ancelotti e da Argentina de Scaloni, por exemplo. Os jogadores, evidentemente, se aproximam e tabelam, mas o princípio do time está nos desmarques de apoio e ruptura. No início do lance, Matheus Pereira recua para receber como um lateral-direito, mas assim que recebe a bola, toca e passa adiante. William, o lateral-direito de ofício, recebe a bola mais recuado, e depois ultrapassa no espaço vazio. Matheus Pereira recebe a bola mais uma vez, dessa vez por dentro, e imediatamente Barreal faz uma diagonal da esquerda ao centro, enquanto Arthur Gomes, ponta-esquerda, recua para receber. Com Arthur e Barreal por dentro, o flanco esquerdo está livre para a ultrapassagem de Kaiki, o lateral-esquerdo. O lance segue se desenrolando pela esquerda, com desmarques de apoio de Romero e Ramiro, os dois volantes.

Vídeo 3: Sequência de posse de bola do primeiro gol do Cruzeiro no 3 a 0 sobre o Botafogo

O Cruzeiro, aqui, chega ao gol adversário desde a saída de bola. A linha de 4 defensores trabalha a bola com Romero e Matheus Henrique, os dois volantes. No início do lance, Matheus Henrique recebe a bola de William pela lateral-direita, e os dois invertem de papel: Matheus Henrique recua como lateral, e William ultrapassa. Em seguida, Matheus Henrique recua a bola para o zagueiro e parte em diagonal para o meio; Romero, o outro volante, é quem recua para a posição de lateral-direito. O zagueiro faz a ultrapassagem e Matheus Henrique faz a cobertura, e o Cruzeiro sai do campo defensivo através da combinação de dois volantes e um zagueiro. Matheus Pereira recebe a bola, e o flanco esquerdo está livre, porque Marlon estava participando da saída de bola, Barreal estava no meio-campo e Lautaro Díaz, por dentro no ataque. A jogada termina do lado oposto, com William ultrapassando na ponta direita, atacando o espaço vazio.

Com Fernando Seabra, o Cruzeiro jogava um ataque funcional de movimentos muito longos. O time se aproxima da bola porque se move em espaços largos, rasgando diagonais e desmarques de apoio e ruptura ao longo do campo. Os atacantes jogavam por dentro e os laterais começavam as jogadas na base, o que esvaziava os flancos. Havia constantemente uma dinâmica de esvaziar espaços para atacá-los nas ultrapassagens; chegar no espaço, e não fixar um jogador nele. Era um estilo que dependia de jogadores ágeis, de toque rápido e iniciativa para atrair, driblar, soltar a bola e ultrapassar, e leves para se mover com fluidez e constância. O time alternava os ritmos, e sabia trabalhar a bola com mais calma e pausar as jogadas para atrair os adversários e depois acelerar ao atacar os espaços vazios.

3. O ataque funcional de Fernando Diniz: futsal, diagonais e paralelas

“Aqui no Brasil a gente tinha, no passado, espaços públicos abundantes, muitos jogadores jogando futebol. O futebol, que tem sua origem na nobreza, aqui no Brasil se popularizou muito, então virou um esporte do povo e um traço muito forte da cultura do país. […] A gente tem que criar, como foi no passado de uma maneira empírica, agora tem que ser uma coisa mais pensada, como é que a gente vai aproveitar melhor as características dos nossos jogadores e, de maneira mais profunda, do nosso povo” – Fernando Diniz.

A troca de Seabra por Diniz demonstrou uma reação da diretoria às cobranças sobre a má fase do time, mas um desejo de manter a autenticidade do Cruzeiro. Os dois treinadores tem muito mais semelhanças que diferenças e, apesar de terem dois modelos distintos de ataque funcional, ambos prezam pelo futebol de movimentos, pela imposição técnica, pelo jogo curto e associativo e pelo protagonismo dos jogadores. 

O estilo de Fernando Diniz, talvez até mais que o de Seabra, depende profundamente do desenvolvimento das funções, movimentos e relações de mobilidade estabelecidas pelos jogadores. O debate sobre Diniz na mídia brasileira muitas vezes cai em clichês e discussões vazias que falam da “saidinha” e da posse de bola como as principais características de seu modelo, o que acaba deixando de lado o que realmente há de diferente e excepcional nele: Diniz trabalha um ataque funcional de distâncias muito reduzidas entre os jogadores. Seus times gostam muito da posse de bola, sim, mas se organizam a partir dos movimentos dos jogadores e não de suas posições (ataque funcional) e estabelecem as relações de mobilidade entre eles em espaços muito curtos para reduzir as linhas de passe e privilegiar a capacidade técnica, e não física (distâncias reduzidas). Na prática: como os times de Diniz se importam menos com uma ocupação racional e simétrica dos espaços do campo e mais com os movimentos de cada um e com linhas de passe muito curtas, os jogadores se aglutinam ao redor da bola. Jogadores mais próximos uns dos outros significa duas coisas; 1, as linhas de passe são mais curtas, o que faz a bola viajar com mais rapidez entre um jogador e outro, privilegiando toques curtos e em progressão; e 2, há um leque muito maior de possibilidades de interações e relações de mobilidade que os jogadores podem estabelecer entre eles. As diagonais, portanto, são essenciais para o estilo de jogo de Diniz: os jogadores que estão do lado oposto da jogada precisam cruzar o campo para reduzir ao máximo a distância até a bola. O lateral do lado oposto fica na base da jogada, em diagonal defensiva, e o ponta do lado oposto se junta aos atacantes ao redor da bola para interagir, efetivamente esvaziando o lado oposto ao da jogada. A partir disso, com os jogadores ao redor da zona da bola, Diniz começa seu ataque funcional, manejando a posse através dos movimentos dos jogadores. É um estilo mais lento do que o futebol brasileiro tradicional, que tem menos receio de recuar a bola e recomeçar as jogadas, e que usa diagonais mais longas e distâncias mais curtas entre os jogadores, mas que resgata e reinventa uma série de conceitos do futebol brasileiro. 

Vídeo 4: Sequência de posse do Cruzeiro de Diniz contra o Bahia

Nessa sequência, o Cruzeiro começa aglutinando seus jogadores do lado direito. Marlon, o lateral-esquerdo, começa a jogada em diagonal defensiva, próximo da jogada pela base. Barreal, o falso-ponta pela esquerda, cruza o campo para se aproximar da zona da bola. A partir dessa estrutura, se desenvolve o ataque funcional de Diniz: Barreal faz a diagonal, recebe a bola, recomeça a jogada e se apresenta para fazer o “1, 2” com William, o lateral-direito, praticamente colado à linha lateral. Romero, volante, rompe para receber, mas depois recua para fazer um desmarque de apoio. Matheus Pereira, que tinha feito um desmarque de ruptura no começo da jogada, também recua e se apresenta para receber o passe de Romero, escorado por William. Matheus Pereira, então, verticaliza a jogada, que termina num corta-luz de Verón e na finalização de Kaio Jorge. Marlon, que começou a jogada recuado, invadiu a área ao atacar o lado oposto esvaziado em uma ultrapassagem.  

Aglutinando muito seus jogadores, o Cruzeiro abre espaços no campo, tanto do lado oposto da jogada, que fica esvaziado, quanto às costas da defesa, que avança para pressionar o Cruzeiro. Com muitos jogadores ao redor da bola, o time atrai a marcação alta do adversário, que avança suas linhas para pressionar; é aí que a fluidez de movimentos e da troca de passes é essencial para criar desencaixes e abrir espaços vazios no bloco de marcação. Diniz usa os movimentos para reduzir as distâncias entre os jogadores e a bola e para trabalhar a posse a partir de desmarques de apoio e ruptura e ultrapassagens constantes: o time trabalha a bola através das tabelas por dentro do bloco de marcação do adversário, se movimentando o tempo todo, para, quando encontra o espaço vazio, seja às costas da linha de defesa ou do lado oposto da jogada, acelerar. O Cruzeiro, portanto, precisa pausar o jogo, trabalhar a bola com calma, manejar os ritmos e se mover constantemente para, em um segundo momento, acelerar com a bola a partir de tabelas e ultrapassagens verticais. Os jogadores fazem movimentos longos, mas trabalham em espaços reduzidos e linhas de passe muito curta; precisam se mover e rodar a bola em uma faixa pequena do campo, para privilegiar a imposição técnica dos jogadores e o aumento de possibilidades de interações. Para isso, Diniz também usa a paralela.

Vídeo 5: Cruzeiro de Diniz avançando em campo a partir do passe na paralela

No vídeo, o Cruzeiro começa sua saída de bola sustentada. Os zagueiros iniciam a jogada e logo acionam Marlon, o lateral-esquerdo. Assim que ele recebe a bola, Kaio Jorge, o centroavante, recua para participar da saída e fica praticamente colado à linha lateral da esquerda, logo à frente de Marlon. Marlon toca a bola para Kaio Jorge, na linha paralela, e imediatamente se desloca para receber a devolução de primeira do camisa 9. Assim, o Cruzeiro bate a marcação do Lanús e pode acelerar no campo aberto. A ideia da paralela é reproduzir uma dinâmica do futsal; como o Cruzeiro tece suas jogadas em espaços muito reduzidos, precisa rodar muito as posições para bater a marcação adversária. Para isso, o time usa a linha lateral de apoio para a tabela: é o uso da paralela, isto é, o movimento em paralelo à linha lateral. Nesse lance, Kaio Jorge se move para o flanco esquerdo (a tal paralela cheia, o movimento que o jogador faz para se perfilar em paralelo à linha lateral) e Marlon faz o passe na paralela, rente à linha. Para essa dinâmica progredir, Marlon precisa ultrapassar imediatamente para receber a devolução de primeira de Kaio Jorge: é uma dinâmica herdada do futsal, que usa a troca de posição constante como resposta aos espaços reduzidos do jogo. Diniz, ao reduzir e não alargar o campo, traz para o futebol de campo dinâmicas do futsal para rodar as posições de seus jogadores. A partir da paralela, o Cruzeiro abre possibilidades para mais diagonais, desmarques de apoio, ruptura para receber no ponto futuro, ultrapassagens, mais paralelas etc.  Com mecanismos diferentes, Diniz promove uma continuidade dos princípios do melhor Cruzeiro do ano: jogo rasteiro, de pé em pé, de movimentação constante, aproximações, trocas de posição, toques curtos e aceleração ao encontrar o espaço vazio.

Contra o Bahia, o Cruzeiro de Diniz se organizou em uma espécie de 4-4-2 em losango. Walace (20) era o primeiro volante, Romero (180) era o segundo, Barreal (21) saía da ponta para atuar como terceiro-homem de meio e Matheus Pereira (10) era o ponta-de-lança por trás de Verón (30) e Kaio Jorge (9), os atacantes.

4. Rápido e rasteiro, como o ataque do Cruzeiro

O ataque funcional de excelência técnica e de jogadores ágeis e inventivos é a cara do futebol brasileiro e é a cara do Cruzeiro Esporte Clube. O movimento de retorno às raízes e resgate da tradição por treinadores jovens, que vão além de apenas reproduzir conceitos e buscam entendê-los, manejá-los, adaptá-los e reinventá-los, é o que nosso futebol mais precisa. O Cruzeiro passou por várias crises e turbulências, mas, desde a saída de Larcamón, sempre foi o time mais autoral do futebol brasileiro em 2024; e agora, com Diniz, é mais do que nunca. Vai além de bater o olho no Cruzeiro e reconhecer o modelo, é bater o olho no Cruzeiro e lembrar do verdadeiro futebol brasileiro. É ver o jogador mais uma vez sendo protagonista do jogo, que não se limita a reproduzir uma estrutura, mas que tem iniciativa, autossuficiência, que pode receber a bola, sentir o tempo do jogo, pausar, dar vários toques, conduzir, atrair, driblar, soltar, ultrapassar, do goleiro ao ponta-esquerda. É ver um ataque funcional de imposição técnica, de toques curtos, de diagonais longas, movimentos constantes. É, finalmente, ver o ponta-de-lança com o protagonismo que merece; ver Matheus Pereira com o mesmo protagonismo de Ganso no Fluminense de 2023, regendo o ritmo do time, armando desde trás e finalizando na frente, distribuindo o jogo. É ver os volantes indo do goleiro ao 9, conduzindo, ultrapassando. É ver os laterais alternando entre diagonais e ultrapassagens, atacando por dentro e por fora. O jogador do Cruzeiro de Diniz é mais que sua posição, é seu movimento: é ser um jogador de bola, não um reprodutor de engrenagem.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima