13 de dezembro de 1992, no Estado Nacional de Tóquio, entrava em campo São Paulo e Barcelona para duelarem pelo título de melhor equipe do mundo. No banco dos times, duas figuras icônicas. Telê Santana, o grande técnico da inesquecível seleção brasileira derrotada em 1982; Johan Cruyff, o lendário jogador da inesquecível seleção holandesa derrotada em 1974. Ambos caíram pelo resultado, mas se ergueram no tempo pela dádiva que ofertaram. Eles gostavam de sentir aquela alegria que invade o corpo ao contemplar um futebol artístico, de encontros generosos, de técnica quase divina. No entanto, eram homens que entendiam as coisas da vida e do jogo de maneira quase antagônica.
Um mundo que quer esquecer o passado já não se reconhece para o futuro. Compreender o que se passava entre Telê e Cruyff, entre o futebol do São Paulo e o futebol do Barcelona, é entender a variedade com o que uma mesma coisa se manifesta. O amor pela “pelota” pode ser feito, sentido, praticado, se manifestar de maneiras diferentes de acordo com cada cultura futebolística, cada homem que está ali em campo, cada maneira de perceber como é a vida neste mesmo rio que corre com as águas sem se separarem. Rever este duelo é pensar a respeito disso em tempos de “uniformização” do jogo, o mau uso da ciência para destruir a sua hermenêutica e as culturas locais que se manifestaram a partir do futebol.
O Barcelona jogava num 3–4–3. Ferrer, Koeman e Witschge formavam a linha defensiva. Guardiola era o mediocentro que se aproximavam desses três para fazer uma saída em 3–1. Os dois armadores eram Amor e Laudrup, eles variavam da base da jogada para o entrelinhas de acordo com o jogo de posição que a equipe ia fazendo. Bakero era o meia-atacante (mediapunta), mas recuava bastante para ser o “segundo homem” para a saída de bola curta com Guardiola (o primeiro homem), deixando Amor ou Laudrup avançarem, tornando-se o terceiro homem por trás da linha defensiva adversária. Begiristáin era o “9”, e Eusébio e Stoichkov jogavam como ponteiros grudados na linha lateral, dando amplitude ao time. Durante o jogo, Stoichkov e Begiristáin trocaram de posição.
O São Paulo jogava num híbrido de 4–4–2 e 4–3–3. Cafú era o terceiro homem de meio-campo, que encostava em Pintado e Cerezo. Müller jogava aberto pela esquerda, mas não retornava sem a bola. Quem fechava o meio-campo era o quarto homem de meio — Palhinha. Raí era o ponta-de-lança, e Müller buscava sempre as diagonais entre Ferrer e Koeman.
As duas equipes gostavam de ter a bola e tocá-la com qualidade, nem sempre num jogo mais direto. No entanto, faziam isto de maneira antagônica, pois Telê e Cruyff sentiam a vida cada qual a sua maneira.
O Barcelona praticava o jogo de posição de Amsterdã. O historiador inglês das raízes culturais do futebol holandês, David Winner, afirma que o jogo proposto por Rinus Michels estava de acordo com a reatualização da pintura e da arquitetura clássica holandesa, que valorizava a manipulação dos espaços. Cada polegada do espaço seria minunciosamente trabalhada, de maneira obcecada e precisa, tal como um Saenredam no século XVII.
No começo do século XX, a cidade de Amsterdã foi reformada pela arquitetura expressionista. Cada espaço público da cidade deveria ser modelado de acordo com um conceito único e integrado, sendo a cidade a expressão do sentimento dos seus cidadãos. Era preciso primeiro manipular os espaços para depois eclodir a expressão de sentimentos dos indivíduos. Era a “Cidade Total”. Durante os anos 1960, as ideias da “Cidade Total” voltaram à tona em Amsterdã, com a percepção de que cada espaço deveria ser manipulado corretamente num conceito integrado para obter do indivíduo a resposta mais adequada. Por ser manipulado, estes espaços não deveriam ser lineares como no modernismo do início do século, mas plásticos, móveis, interativos, etc.
O “Futebol Total” (totaalvoetbal em holandês) de Michels era uma reprodução da “Cidade Total”. Michels, apelidado de “O General”, pensava que o futebol era como a guerra e como bom holandês de Amsterdã era um obcecado por espaços e pelo seu domínio. A sua ideia era fazer um futebol de posse, passes curtos e imposição partindo primeiro do domínio de espaços. O “Futebol Total” de Michels deseja o seguinte: a) dominar cada espaço do campo de maneira racional; b) tornar o espaço colaborativo, com jogadores mudando de posição embora dominando o espaço em que esteja; c) manter a posse com toques curtos buscando sempre desequilibrar o adversário e achar o homem livre por trás da linha defensiva do adversário.
Enquanto isto, o São Paulo de Telê Santana é fruto da tradição brasileira, com influência formativa do “jogo do Danúbio”. O jogo é flexível, plástico, exige liberdade individual e posicional dentro de um sistema colaborativo. Os jogadores devem se aproximar, ter criatividade, usar sua intuição. Os pontas desgrudam do lado, são inventivos nos seus movimentos. Mandar nos espaços não é aluga-lo territorialmente, mas fazer as coisas certas e no tempo certo com a bola. Ou seja, se organizando a partir da bola e não do espaço.
Então, enquanto o Barcelona praticava o jogo de posição como ataque posicional, o São Paulo praticava um ataque funcional.
Cruyff acreditava que o bom futebol era praticado quando o time dominava os espaços, mantinha a posse, tocava a bola rápido, e mantinha os mecanismos corretos. Ele usava como conceitos: a) simetria de sistema (ou seja, não havia mais jogadores de um lado do que de outro), mas com assimetrias verticais e horizontais para criar linhas de passe; b) amplitude, pois o campo precisava ser aberto pelos pontas para criar espaços e definir por dentro; c) profundidade para buscar a ruptura decisiva por trás da última linha defensiva; d) desmarques de apoios para ir garantindo que a equipe ia avançando no campo com toques curtos e com jogadores recebendo por trás de cada linha defensiva e) a posse de bola para desequilibrar o adversário para um lado e definir pelo outro; f) pressão assim que se perde a posse da bola.
Para Cruyff, todo o jogo se passa na distância entre os jogadores. Por isto, os jogadores não devem ir atrás da bola, mas cada qual deve manter sua posição adequada e esperar a bola chegar em suas posições. No jogo de posição, não se deve correr muito, mas estar bem posicionado dentro da sua posição. Cruyff dizia: “Eu quero jogadores que possam fazer movimentos decisivos em pequenos espaços, quero que eles trabalhem o mínimo possível para economizar energia para aquela ação decisiva”.
Jogando no 3–4–3, cada jogador possui uma função ligado ao espaço que deve dominar. Os pontas devem ficar grudados na linha lateral e esperar os mecanismos ocorrerem para receber a bola em boas condições. Eles nunca atravessam o campo. Este jogo exige de cada jogador muita autoconsciência e disciplina dos seus gestos e dos seus movimentos.
Essa disciplina era essencial para encontrar o terceiro homem por trás da linha defensiva adversária. Neste sentido, a função do primeiro homem é conservar ou atrair. Ele seria um intérprete da jogada. O segundo homem é um trabalhador, pois participa como figura passiva entre o primeiro e o terceiro. E o terceiro homem é o agressor, aquele que deve se desmarcar por trás da linha defensiva para receber a bola em vantagem.
Nesta jogada, Witschge foi o primeiro homem, tocou para Begiristáin, o segundo homem, e este devolveu a bola para Witschge. Quando a bola volta para o holandês, ele chama a atenção dos defensores são-paulinos e possui duas opções de terceiro homem: Stoichkov e Laudrup:
O sistema de Cruyff exigia disciplina e autoconsciência dos jogadores, menos movimentação e picardia, mais toques de primeira. Já Telê Santana sentia o futebol de maneira antagônica como bom amante da escola brasileira. Se, para Cruyff, a bola vai às posições, para Telê, os jogadores devem ir até a bola, para terem inciativa e protagonismo, buscarem tabelas curtas e desequilibrantes. Um ponta-armador como Cafú, pode até mesmo atravessar o campo. E o time joga em espaços curtos com muitos jogadores. Um futsal em pequenos pedaços.
Para Cruyff, a ordem constrói e facilita a espontaneidade do indivíduo, o seu talento. Para Telê, é a espontaneidade, o protagonismo, a intuição dos jogadores entre exercerem o seu talento e o encontrarem com o resto do time, que constrói a ordem do jogo. Cruyff pede que os seus jogadores saibam esperar para receber a bola. Telê pede que o jogador tenha protagonismo, vá em busca dela, ouse, transgrida.
Quando a bola está na esquerda, você nunca verá Amor, Ferrer ou Eusébio por lá. No entanto, quando a bola está na esquerda do ataque são-paulino, você verá o lateral subindo, Müller, Palhinha, Raí, e Cerezo infiltrando, todos próximos. Enquanto Cafú ataca a área ao invés de esperar em amplitude. O São Paulo ataca sempre com 6, organizando-se pela bola e não pelo espaço. Ataca com seis (lateral do lado da bola, Raí, Palhinha, Cerezo, Müller, Cafú), e se defende com 4 sempre por trás da linha da bola (lateral do lado oposto da bola, dois zagueiros, Pintado).
Esse sistema permite que cinco jogadores estejam sempre próximos no setor da bola, com o sexto infiltrando mais perto do lado oposto. O jogador deve ser independente, ter iniciativa, atuar numa área maior de campo, e saber interpretar corretamente. Por isto, os treinos de Telê trabalhavam muito o indivíduo, a sua técnica, o seu entendimento de jogo, como se desmarcar, como entender o companheiro. Mais do que as noções espaciais.
Para Cruyff, um time deveria ter uma menor área de atuação para dominar os espaços. Dominar a distância. Para Telê, era imprescindível ao talento movimentar-se muito, ampliar a área de atuação para dar mais liberdade de interpretação aos seus jogadores. Eles só criariam o caos se usassem sua intuição para interpretar o melhor para cada jogada. Um técnico busca a autoconsciência e a correção, o outro técnico busca a independência e a ousadia. Cruyff gosta de simetrias posicionais, quando Telê usa em seus ataques sempre assimetrias a partir do lado da bola, juntando jogadores em espaços curtos para criar espaços vazios a serem atacados.
Sem a bola, o Barcelona buscava encaixes individuais a partir da linha do meio-campo, com os pontas marcando os laterais do São Paulo, Ferrer em Müller, Witschge em Cafú, Guardiola em Raí, Amor em Palhinha, Laudrup em Cerezo, e Koeman na sobra.
O São Paula defendia de maneira funcional, um tradicional no futebol brasileiro, que mistura a marcação por zona com a marcação individual. Defende-se por setor, mas se organiza para pressionar o portador da bola sempre. Se o cara cai no seu setor, você tem que pressioná-lo. Esse sistema misto consegue fornecer assimetrias também sem a bola. A primeira linha de quatro era mais fixa, mas a segunda variava. Cafú encostava mais em Cerezo e Pintado. Pintado tinha que correr mais para fechar um pouquinho mais o setor esquerdo, pressionando quem caísse ali. Müller não voltava, então quem fechava a segunda linha de quatro era Palhinha, mas fechava muito mais por dentro, um tanto acima de Cafú, Cerezo e Pintado. Para não acarretar grandes deslocamentos, Müller fechava a linha de passe de Ferrer, e Raí ficava entre Guardiola e Koeman, obrigando o Barça a sair pelo lado esquerdo com Witschge, onde Cafú e Vitor fechavam bem o setor.
O Barcelona mandou nos primeiros quinze minutos com o São Paulo mais retraído. O primeiro gol dos catalães surgiu de uma inversão de posição de Begiristián e Stoichkov. Depois disso, o São Paulo amassou o Barcelona, com toques mais rápidos, dinâmica, flexibilidade, e muita velocidade de Müller em cima de Ferrer. Raí e Palhinha se aproximavam para tabelar no setor da bola, Cafú e Müller ofereciam muitas rupturas, e Cerezo fazia de tudo, controlando o ritmo do time. Uma partida impecável de Raí e Müller, mas também de Zetti, Ronaldão e Cerezo. Zetti era um goleiro de uma estabilidade emocional enorme, sempre bem posicionado. Um dos melhores de nossa história. Ronaldão era um rei defendendo, e colocava o pé como ninguém. Teve simplesmente uma atuação absurda em Tóquio.
O futebol é feito de muitas maneiras, com muitos capítulos. Cruyff e Telê propiciaram uma grande tarde de futebol, pensando e agindo de maneira quase antagônica, sentindo, mediando e educando os seus comandados quase de maneira antagônica, mas ambos tinham um mesmo intuito generoso. Quem assistiu, sentiu toda emoção da beleza divina se encarnar naqueles movimentos e alegrou-se por contemplação.