Eram quase onze da noite, eu havia acabado de encerrar uma live para o Ponto Futuro e recebi uma mensagem dizendo que ainda restavam ingressos para Brasil e Argentina no Maracanã. O jogo era no dia seguinte. Semanas antes, quando abriram as vendas, titubeei por um bom tempo se ia ou não aproveitar minha única e última chance de ver Lionel Messi in loco. Questionei meu pai, e a resposta não foi das mais agradáveis. Larguei a ideia, acreditando também ser uma invenção de moda, como disse o velho. Mas logo ela voltou a me atormentar. “Minha função como pai é te castrar, e a tua como filho é me ignorar e comprar a porra do ingresso”, disse dias depois num churrasco, quando contava pros amigos dele sobre a proibição. Então dessa vez não exitei. Aproveitei a segunda chance e arrumei as malas enquanto ele dormia.
Só se falava em Messi. O valor daquela partida estava nele. Vinícius e Neymar lesionados, sequência de maus resultados. A verdade era que pouco importava o jogo em si, mas só estar no mesmo ambiente do campeão do mundo. Poder vê-lo caminhar de perto, a mera contemplação. E depois de uma longa estrada de expectativa repentina, visto que horas antes eu sequer cogitava essa possibilidade, acompanhado de um amigo que saíra de Brasília e me oferecera carona, passando por Belo Horizonte, o enredo preparado veio recheado de ironias.
Eu estava no setor da briga entre as torcidas e a polícia, distante o suficiente para assistir com clareza e não ser afetado. Voavam cadeiras, a névoa de pimenta já se fazia visível no ar, e aquele pequeno corredor no Maracanã se tornava uma verdadeira trincheira. Após longos minutos de confusão, Lionel Messi aparece pela primeira vez, num ato de demonstração de força que só imaginava ver dele com a bola nos pés. A pequena figura, com a imponência de um gigante, se aproximou, farto com o tempo perdido e com a injustiça vista tão de perto contra seu povo. Lautaro Martinez já havia subido na arquibancada, Dibu Martinez tomado o cacetete de um guarda, o time estava todo ali tentando impedir à força que a brutalidade continuasse. Mas bastou a presença do capitão para que todos parassem o que estavam fazendo. Se o jogo já não importava tanto, quem dirá a briga. Brasileiros, argentinos, policiais, todos redirecionaram a atenção para o campo, imobilizados pelo olhar de reprovação da imagem divina. E assim o caos acabou.
Na minha situação, a verdadeira aflição veio em seguida. Não se sabia se haveria jogo ou não. Entre os boatos e cochichos que ecoavam na tribuna, ouvia-se falar em cancelamento, adiamento, volta imediata. Até que a seleção argentina saisse do túnel, o medo da viagem em vão tomava conta, com toques de humor e incredulidade. Sonhei com gols, dribles, reviravoltas, e agora teria de me contentar com a porradaria. Não que tenha sido entediante, jamais me esquecerei do semblante do super herói de azul celeste e tiras brancas, ali na minha frente, salvando o dia como se fosse algo corriqueiro. Mas queria vê-lo fazer o que me levou a cruzar tantos quilômetros: jogar futebol.
Os ânimos se acalmaram, estava tudo contido, e nossos hermanos enfim voltaram ao gramado. Puxando a fila, o camisa 10. Logo atrás, aquele que assumiu como ninguém o papel de fiel escudeiro e que é a razão pela qual escrevo. Rodrigo de Paul, o volante enérgico, carniceiro, falador. A junção de tudo aquilo que nos faz odiá-los quando dividimos a cancha. E o jogo que antes mesmo de iniciar já era incondizente com o esperado, seguiu o mesmo caminho quando a bola rolou. Ao contrário da vontade geral, a aceitável dominância rival não veio através da técnica do gênio (que para não acusar de omisso, foi discreto), porém da malandragem de seu cão de guarda.
Hoje em dia, a boa atuação de um volante é condicionada à porcentagem de acerto em passes longos. Se erra pouco, se quebra pescoço. Esses pequenos fatores que, sim, influenciam, mas são falhos na tentativa de resumir o jogador. Posso dizer que De Paul não olha antes de receber, arrisca sem parar e precisa de pelo menos uns dois toques na bola pra conseguir fazer um passe decente. Ou seja, vai contra toda a cartilha do manual. E ainda assim pega a maior partida de futebol do planeta e coloca dentro do bolso. Espetacular jogando o jogo, nem tanto praticando o esporte.
E não quer dizer que De Paul seja ruim de bola, pelo contrário. Tem mais técnica que o necessário para estar na elite do futebol mundial, como está. O que o torna um grande jogador, porém, não são essas qualidades. Disputar uma partida de futebol é mergulhar numa complexa narrativa com várias pequenas histórias entre os 22 personagens (mais o árbitro, mais os técnicos, mais as dezenas de milhares de torcedores), e que portanto exige uma compreensão e um tato ímpares com o subjetivo. E isso sobra no argentino.
O que há de mais notável é sua sensibilidade para o ritmo. Não o pauta com fluidez, como costumeiramente se caracteriza os chamados maestros. Vai picotando, quebrando em pedaços. Entende a hora de, por meio do atrito, travar a continuidade rival. Traz o tempo para si.
A Argentina recupera a bola, que vai aos pés de De Paul. Domina com calma, ergue a cabeça, estufa o peito e olha bem ao seu redor. Respira fundo, a bola ainda está entre a sola de sua chuteira e o gramado, e faz questão de lembrar a todos a importância de respirar. Da uma pequena rolada pra frente e começa a chamar o adversário que, assim como nós, não aguenta mais olhar pra cara daquele picareta. O brasileiro incorpora um touro em direção à bandeira vermelha trêmula. Rodrigo, então, vai em direção ao embate. Deixa o corpo, sofre a pancada e cai já botando a bola debaixo dos braços. Os argentinos respiram outra vez, enquanto os brasileiros bufam de ódio.
E por aí o jogo caminha. A cada falta, corre em direção ao juiz o camisa 7. Se enfia no meio de todos e começa a falar, com um sorriso de canto e testa franzida, rindo da própria figuração no limiar para não explicitar a catimba. Precisa demonstrar indignação, qualquer que seja.
Como o jogador movido pela emoção que é, também se deixa afetar. O futebol para De Paul nasce enquanto acontece no campo, mas vive em suas sensações. Após levar uma linda caneta de Martinelli na ponta esquerda, ficou aéreo. Sem causar qualquer impacto direto, aquele lance tirou a Argentina do jogo por bons minutos. O sentimento de exposição, humilhação, sentido por De Paul, que até então se comportava como o dono da pelada, feriu as relações de hierarquia e congelou o coração argentino. Enquanto absorvia o ocorrido e tentava se encontrar, o time perdeu sua alma. Era a brecha que o Brasil precisava para se erguer.
Porém não aproveitou. Virou o intervalo, De Paul voltou a vibrar, reanimado pelo desfribilador, e os hermanos ressucitaram. Por volta dos 60′, Messi posicionou a bola no quarto de circulo e cobrou o escanteio com perfeição na cabeça de Otamendi. Aquilo me indignou. Eu não só aceitaria um golaço ou um grande passe do gênio como gostaria que acontecessem. Agora, uma assistência de bola parada? Era a pior forma de nos roubar a vitória. Saiu das sombras para resolver a questão da forma mais discreta possível e, de fininho, voltou a elas. Enfim, não é a primeira vez que Lionel brinca de vagalume. Voltemos a Rodrigo De Paul.
Quando contratado, imaginei De Paul como o encaixe perfeito para a nova fase do Atleti, prestigiada logo de saída com o título de La Liga. No 352 de Diego Simeone, a lacuna era justamente na meia direita. João Felix e Marcos Llorente rendiam melhor ao lado de Luisito Suárez, e como o português vivia lesionado, não havia problema em compartilharem função. Restava a vaga ao lado de Koke e Lemar, e, por característica, o argentino cairia como uma luva. Mas suas primeiras temporadas colchoneras não caminharam bem assim.
Em meio à alta oscilação do time, demorando a se encontrar e variando muitas escalações, tanto por lesões quanto pela busca por respostas, De Paul ficou perdido. Tampouco era regular, e por ser novo na casa, não tinha o status de outros para conseguir longas sequências. Após um ano e meio de dúvidas e desconfortos, a Argentina vence o Copa do Qatar e as coisas no Atleti começam a andar. Talvez por um banho na alma de Simeone, que parecia confuso no processo de “modernização” que foi pressionado a realizar, se arriscando no 325 e no futebol de posse, ou pela reviravolta no desempenho dos argentinos do clube (além da melhora do camisa 5, Nahuel Molina foi da água pro vinho, e Angelito Correa se tornou um jogador cada vez mais confiável). O fato é que Antoine Griezmann teve enfim seu desempenho acompanhado pelos companheiros, num sistema que o dá o devido protagonismo e é coeso com as demais individualidades.
Na segunda metade da temporada 22/23, Rodrigo De Paul ainda não era um titular absoluto, alternando com Llorente e pouco demonstrando aquele lado protagonista marcante em suas aparições com a albiceleste. Já na atual, é figura destaque nos grandes jogos, e parece bem mais confortável para se expressar com a camisa rojiblanca.
Como dito lá em cima, De Paul arrisca, e cada vez mais no Atleti. Suas visão e leitura para “achar” são fora da curva. Sempre vem com o passe de maior ganho (consequentemente de maior risco) e erra pra caramba. Nem por isso deixa de tentar. É evidente como seu instinto é procurar Griezmann por dentro, no passe vertical rasteiro. Esse entrosamento cresce a cada partida, juntamente com as responsabilidades que assume o argentino. A equipe funciona na dupla tocando a bola por dentro, costurando o adversário, para então acionar Molina chegando no corredor.
Entre esses pequenos detalhes difíceis de perceber, o argentino parece sempre fazer o certo de forma imprecisa. Inventivo e corajoso, na maioria das vezes o passe sai, mas vem duro, mascado, longe, muito em cima, qualquer imperfeição que não chega a comprometer a jogada, mas pessoaliza a coisa. Mesmo com um gesto técnico bonito, requintado, sempre há um pequeno defeito. Rodrigo De Paul é esse cara torto, controverso, e joga futebol dessa maneira.
Na partida contra o Sevilla, pelas quartas da Copa do Rey, em especial, o protagonismo esperado deu as caras como nunca. Foi uma eliminatória dura, vencida por um 1×0 com gol marcado aos 80′. Uma batalha daquelas que demandam soldados preparados para despejar sangue no chão e aguentar, acima de tudo. Daquelas em que aparece Rodrigo De Paul.
Após Memphis Depay furar a meta sevillana, a pressão adversária veio em avalanche. Sergio Ramos dando as caras no jogo aéreo, Rakitic falando alto. A experiência do lado de lá emergia. Então vem De Paul, no auge da sua maracutaia, e cai por cima da bola depois de uma disputa normal. Assim, acabou com a sequência de ataques do Sevilla. A expressão dos de branco é de impotência e ódio. O boludo domina o ritmo do jogo e a mente dos rivais.
Apelidado de “Motorcito”, finalmente caiu nas graças da hinchada colchonera. Se pensarmos naquele primeiro Atleti finalista da Champions League e campeão de La Liga, aguerrido, desgostável, impuro, é um casamento perfeito, que curiosamente tardou em acontecer. Mas aconteceu, e é o lugar ideal para que De Paul seja ele mesmo, como na seleção. Há um craque para defender, compatriotas com quem venceu o mundo, espírito de luta e um líder que foi tão louco quanto ele nos gramados.
Como disse no programa Universo Valdano, “Os clubes tem jogadores de futebol, não pessoas. E somos pessoas jogando futebol”. Rodrigo De Paul é uma pessoa, expressando o que sente e jogando futebol a partir disso. Compreende as emoções de uma partida como ninguém, e provoca os mais variados sentimentos em quem compartilha campo e em quem o assiste de longe. Rodrigo De Paul joga com o coração. Fico feliz em tê-lo visto naquela caótica noite de Maracanã.
Pois sou uma pessoa
“Conheço o Meu Lugar”, Belchior
Esta é minha canoa: Eu nela embarco
Eu sou pessoa!
A palavra pessoa hoje não soa bem
Pouco me importa!
Pingback: En cuartos! Mas há um meio de campo para se resolver - Ponto Futuro
Que belo texto. Consegue a proeza à qual se propõe: relatar como, através das características de seu jogo, o jogador expressa a sua personalidade. O texto tem riqueza de detalhes técnicos, começa com um relato doméstico, cotidiano. Enfim, autor aparece, aqui, também, como uma pessoa suas agruras para chegar ao estádio. Parabéns pelo olhar.