Um personagem, isso define Cesar Luis Menotti. O mesmo que conversava com Borges, Bioy e Sabato é um verbo “tragado” (pouco agradável, ácido e sonhador) pela mais sincera atitude do povo argentino. Nem parece que estamos conversando de futebol.
De quem falamos
El Flaco Menotti, um perfil esguio e grisalho, fechado e resignado, dos seus 1,90m lembrando um professor de classe. Poderia muito bem mesmo não se tratar de futebol. E para ele, mesmo à beirada do campo, não se tratava. Via e vivia o futebol com tanta intensidade e comoção que só poderia se comportar como um sério professor cuja designação estava em remendar as veias abertas da América latina. Não o sabia. Mas a cultura sabia. Para ele, na linha que demarca a área dos técnicos, aquilo se tratava de uma forma de pertencer, de uma forma de trabalhar no mundo – no caso, como parte a se formar a cultura. Assim, não podia ver o futebol como mero jogo, falava dele e colocava ele em igualdade com outros conhecimentos por reconhecer que ali, entre a chuteira e a bola, algo tão grande quanto o mundo acontecia. Era um professor, pronto para articular as coisas do campo com as coisas da vida – e isso ficava bem claro em suas equipes. Em sua origem no Huracán, essa conjuntura aparecia. Um clube de aptidão para o futebol ofensivo, atraiu o técnico que mais unia as características do futebol jogado nas calles. Impetuoso, exagerado e pra frente, seu time jogava um futebol que simbolicamente se baseava em artífices desenvolvidos na tradição popular. Isso, de certa maneira, provocava o renascimento da própria cultura, em uma espécie de digestão que, no fim, condensava e evocava ela mesma.
Daí é que se fortalecia algumas máximas da forma eloquente com que via o jogo. Já o separou em esquerda e direita; dizia – aproximando o conhecimento popular do conhecimento erudito elitizado – que um time era uma orquestra, e que se tinha um violino, devia fazer com que ele se concordasse com o instrumento de sopro. Menotti representava o futebol como maior saber coletivo. E assim, posicionou essa expressão direta do latino, na ordem das grandes artes, fazendo de uma prática marginal a única e importante prática da sociedade. Confiava que isso não fazia parte de uma batalha e devia ser como o jogo. Ao invés de guerra, apreço.
Perguntar quem foi esse maestro argentino é perguntar sobre o “que é o futebol na América do Sul?”, “o que é o futebol argentino?” ou “perguntar como estás?”, Menotti navega no coração da questão de ser sudaca, não porque foi um tedioso estudante, mas por quê nasceu e se desenvolveu, por quê sentia pulsar, e também por quê quando se sentava com o seu jeito extremamente invariavel, não deixava que a imagem dos picaros sumisse da sua cabeça. E o que sentia, sentia os seus jogadores. Barro, rua, “fulbo criolo”; com Menotti era possível o futebol estar além dos pés, podia estar na boca e na cabeça. Por isso sua anedotas influíam as ações dos seus jogadores, “é preciso pensar como se joga”.
Como falamos
Seu legado talvez seja uma das grandes obras produzidas abaixo da linha do Equador. Ouso dizer que nem sabemos muito sobre seu impacto, mas é evidente que vem ditando o modo como se trata o futebol por aqui. De cultura dominada, Menotti fez afirmação cultural. E esse cenário se remonta ao contexto contemporâneo. Se podemos dizer que El Flaco é um dos fundadores do jogo argentino de ‘toco y me voy’, certamente, dizemos que sua influência soa como uma corrente. Mas não é verdade. Se relembramos algumas de suas falas, veremos um pouco do seu desgosto com o processo de desfiguração do futebol latinoamericano. Em um passado recente, o maestro criticou a forma como incorporamos a moda do futebol, e como era horrível e anti-futbol seguir tendências. Estendendo a todo plano do futebol, entendia que isso poderia ser a grande ruína do jogo. Entretanto, se a Argentina durante boa parte de sua existência no século XXI havia perdido o caminho de casa (por conta das tendências), foi novamente em Menotti que o trilho se alinhou. A nova leva de treinadores olhando para sua história e buscando sentido para o seu fracasso, achou na figura de César a âncora da retomada. Luis Menotti, que passou a integrar o corpo da AFA nesses anos, serviu como referência para Pablo Aimar, Scaloni… e de certa forma foi o culpado pela recuperação do futebol argentino.
Voltando alguns bons anos atrás, é importante pensar que Menotti sabia onde o jogo começava – e terminava: na juventude. Em 79 quando dirigiu as inferiores da seleção, essa percepção foi muito bem ornada. O futebol dos pibes refletia o povo que, como uma onda, também produzia força na seleção. Agora em 2022, esse mesmo exame aconteceu e foi tendo Aimar como seu pupilo. Então, pensar o futebol Argentino é inevitavelmente pensar em César Luis Menotti. E se o “conhecimento” que produziu durante toda sua vida foi alicerce para os jovens técnicos argentinos, ele segue irredutivelmente presente na vida do futbol impensado.
Como será após
Sua herança para o pensamento latino segue sendo um dos trabalhos que melhor descreveram uma cultura. E mesmo que isso esteja apenas na grafia do jogo, é com essa debilidade da ferramenta que a obra fica ainda maior, por quê comunica com o instinto.
Óbvio que a consideração não importa de nada, mas estamos falando de um homem que foi extremamente moderno em suas colocações, e como disse, soava até como heterônimo de escritor. Porém eu descobri, e mais ainda, descobri porque não importa como sua construção terá importância: Menotti foi um heterônimo do povo, e graças ao povo. Tudo estava lá. O jeito culto e de pouca conversa comporta um fodido espírito rebelde. Povo. É em certa ocasião era como o povo “seria se fosse técnico”. A forma como ele conjugou os desvios sociais a um organismo nervoso como o futebol e deu sentido de teoria a isso, é por fim, uma grande obra histórica-coletiva. Menotti era o espírito – no seu jeito fantasmagórico.
E se o futebol não incorporar, que se dane, para ele isso foi o menos interessante. Importa se aquele incêndio do jogo bonito que carinhosamente induzia Maradona, Houseman, Valência… seguirá vivo em outros pibes rebeldes cheios de novidades. Menotti está na coisa futebol. A sua posteridade não pode se apagar.
Tendo definido esse fenômeno de liberação do coma profundo, em diante, Menotti é um dos mentores da necessidade de uma sociedade encarar a vida – como era necessário ter a bola.
Menotti não passará, nem sua memória, pois é fácil falar desse velho, é fácil fazer com que ele se invoque: basta um toque, um joguinho sujo, uma parede. E ele pulsa.
A César Luis Menotti