Amor Fati
Não sabe o que é a vida de fato; mas a ama em cada palmo
O que o Paraná Clube e o Real Madrid têm em comum? Bem, ambos jogam o mesmo jogo, que é o futebol (embora custe-se a acreditar que seja realmente o mesmo), mas há mais: são como nós dois, tanto eu como você, que navegamos incessantemente neste complexo ondulatório indirecionável que se chama vida, o qual nos bate para um lado e para o outro até permitir que aportemos na ressaca do dia seguinte. Em linhas gerais, nossa dirigibilidade é muito limitada, e, embora tenhamos a certeza de que sempre encontraremos terra, nunca conseguimos saber exatamente onde será. Isso é o que se chama destino.
Disse o poeta local que não se deve discutir com o destino; mas é porque, ainda no período clássico, autores latinos foram mais radicais, dizendo que devemos amá-lo. Amar o destino como se fosse parte indissociável de nós mesmos, como se pudéssemos um dia domá-lo por meio do controle das emoções – ideia que seguiria para Marcus Aurelius e seu estoicismo, a capacidade de nunca sofrer, porque a vida é a vida a todo momento: reclamar das coisas ruins equivale a reclamar das boas, o que, de um jeito ou de outro, é inútil. Repito: todo o útil é o amor fati (amor pelo destino).
Acordo cedo ainda, muito mais que o normal, porque o bom amigo (que de habitual trato sob o pseudônimo Moyperon) esteve animado: este é nosso ano! Ele ficou assim, crente na recuperação milagrosa do Paraná, este combalido paciente o qual eu mesmo dava por vencido, depois que ressurgimos da “tumba” para entupir de vermelho, branco e azul os estádios dos nossos dois rivais citadinos, a arena cinza multieventos (conceito FIFA!) e o coliseu pintado de verde. Este é o ano. E éramos a torcida da kombi, não é? Pois. Então, Zé das Marchas, solta a chave que vamos Moyperon, eu e companhia limitada meter sola na kombi, ou então na besta (e nas bestas), numa caravana pra onde quer que seja.
O destino? Neste caso a bonitinha cidade de União da Vitória, ao sul do Paraná, que junto a Porto União, sua gêmea siamesa que já fica em Santa Catarina, montam um singelo pitoresco contra a resistência predeterminada pelo frio, como se uma das pequenas cidades venezianas de Calvino pousasse sobre o interstício centro-europeu. Mas o motivo não era descrevê-la ao conquistador Kublai Khan, era mais modesto: futebol! Que nem dava conta de existir na cidade, aliás, até saber que possui uma única representação: a AA Iguaçu. Seguimos! – para a conquista, Kublai? Só mesmo conquistar a liberdade do inferno, em mais uma eminentemente sofrível rodada do miserável e mal estruturado Campeonato Paranaense da Segunda Divisão, que pelo segundo ano seguido a porcaria da vida nos traz como realidade.
Enfrentando o vento cortante do dia ainda mal amanhecido em plenas dez e meia, seguimos para o palco da peleja, o simpaticíssimo Antiocho Pereira. O nome não me era estranho – e busco na memória das várias madrugadas jogando Age of Empires que Antíoco era líder macedônio, dinasta pós-alexandrino que agonizou até a quase morte pelo amor incorrespondível por Estratonice, esposa de Seleuco, seu próprio pai. Tal fato será cenário para a pintura neoclássica La Maladie d’Antiochus, “O Mal de Antíoco”, de Jean-Auguste Ingres. Entre helenismos e venetas, já de frente para o campo, duas caras relativamente conhecidas, o goleiro Sidão e o meiocampista Bruno Silva, embarcam junto a uma pilha de anônimos vagantes na perpetuidade escura daquele umbral, à espera de que algo que não se sabe o quê venha a ter fim, ou tanto faz. Primeira pancada na pelota e vamos ao meu mal de Antíoco, em que pese que a mim ninguém salvará às margens da morte inevitável.
Moyperon comenta algo frívolo, de que um jogador do adversário lembraria o inglês Jude Bellingham, e puxou o gancho – Real Madrid? Vi sim, foi campeão europeu há algumas semanas, brincando de marionetes com os alemães afobados do Dortmund. Mas a conversa se dissipa em meio a algum lance mais importante no campo. Amor fati – como já mencionei, e o próprio nome denuncia, a origem é latina, mas, pelo óbvio problema medieval com a recuperação das produções, o primeiro registro literário da expressão viria muitos séculos depois, com… Nietzsche! Isso mesmo, o eterno queridinho dos adolescentes encaraminholados teria submergido silenciosamente na escola do velho império ocidental para resgatar o ouro e, após uma pérfida alquimia com o aroma do existencialismo pirracento, nos convencer a algo como “aceitar quieto o sofrimento” por ser a “única realidade nessa vida”. Mas será mesmo?
Passados uns trinta e cinco do segundo tempo, o jogo era péssimo (quem poderia imaginar?) e também chegava ao fim o passeio, o improviso louco de domingo, para logo estarmos de volta à mesmice, disparando com os olhos flechas aos arranha-céus da cidade grande. Mas era isso? E era isso 10 anos atrás? Pense: o que você esperava? União? Justiça social? Emprego, salário? Uma nação de verdade, que desse certo? Foi para isso que um rapaz de 17 anos meteu-se nas ruas naquele lamentável e idiotizante 2014, quando arrancavam-lhe os direitos de existir?
Não, não foi pelos vinte centavos, nunca foi; foi pelos vários anos caóticos de instabilidade político-econômica, pela falta de projeto, pelo desalento daqueles que deveriam poder sonhar, os jovens; foi pelos jacarés, pelas cloroquinas, pelas armas, pelo padrão FIFA, pelas dancinhas, pelos pedrinhos dormentes, pelas gemedeiras insuportáveis das paradas de sucesso, pelo embrutecimento social, pela difusão entorpecida na direita e na esquerda, pela automatização da vida humana, pela interrupção do amor, do gozo, da emoção, das sensações, pela frustração, pelo fracasso civilizacional completo.
Você ainda ri, Moyperon? Do que ri, seu miserável? Nossa sociedade falhou, nossa geração erra sem parar – depois que erraram conosco – e estamos agora acabados, dissolvidos como pó enquanto o futebol come solto aqui na frente, com esses penados ridículos fingindo ter um escopo relevante, alguma luta, encenando alguma função neste mundo virtual. Que coisa, hein? E pensar que tudo o que queríamos era sonhar, colocar nossas mochilas coloridas nas costas e imaginar que aquilo pudesse levar a algo – e agora resta sorrir e agradecer pela dor. Muito que bem.
Ceifada final na gorduchinha, e o assopro agudo que encerra com a tortura: o pior jogo de futebol que já correu diante das retinas dos paranistas que se faziam presentes. Com placar zerado e um cartão vermelho para cada lado (segundo minhas contas), vamos para casa. Do lado de lá, cantos, batucadas e festejo dos, chuto, 2 mil torcedores caseiros pelo empate. Para mim e as dezenas tricolores, consternação: o Paraná cruzava a linha do amadorismo; e não é por ter jogado no Antiocho Pereira de novo, mas pela nítida impressão de que esta é a vida agora, como se vozes do outro lado dissessem “até ano que vem”, e a experiência, então, se repetirá até deitarmos eternamente, como um legítimo Antíoco, sonhando com Estratonice ou com o Campeonato Brasileiro.
Aliás, o que decreta o êxito daqueles que, ao longo de duas décadas surrupiando o clube, tanto fizeram para que isto acontecesse. Onde estariam agora? Será que algum deles assistiu à partida pela televisão? Eram eles, então, os deuses que desenharam nosso destino, que nos mandaram para União da Vitória, Apucarana, Arapongas, em busca das respostas? Nunca perceberam que dirigir um clube de futebol é mexer com o destino de uma sociedade? A saída existe?
Mas, calma. Respira. Alguém ainda te dá bom dia no elevador? Sim, poderia ser mais trágico, as árvores poderiam ter acabado de vez, as pessoas poderiam estar fazendo ioga sobre a grama sintética, quem sabe? Aurelius apud Nietzsche, olhe pelo lado bom, jovem – você ainda tem tempo, o dia seguinte não virá com tanta violência assim, o sol ainda existe e sorrirá para você quando chegar. Por falar em sol, ele dá as caras ao meio-dia, marcando um início de tarde de grande amplitude térmica no sul paranaense. Do frio no início, agora estamos assando como a carne que pega brasa nos arredores do estádio, ampliando nossa fome, enquanto embarcamos de volta, sem nenhum gol em 90 minutos, mas voluptuosos por viver o que a vida nunca escondeu.
Pé na tábua Zé das Marchas, a Besta volta para o bestiário, pois! Passa esse tubão pra cá. Quente pra cacete porque ficou no carro. Assim vamos ficar ruim fácil! E recomeçaremos na capital, onde todo dia é segunda-feira, para logo reencontrar tudo: os buzinaços da Marechal com Marechal, as conversas que se perdem no rugido dos dinossauros vermelhos de oito rodas, os anunciantes de toda sorte de serviços clandestinos sobre o calçamento principal, os extraterrestres do Terminal Guadalupe, a placa homenageando a honorária Gilda, os anciãos que bebem seus cafés diante dos jornais que se vitrinam na parede das bancas, e uma horda de Silvas e Santos e Rochas e Piekarskis e Dombrowskis e Zattares e Manfrons e Assads se espremendo com os pés, seus esqueletos de guidão e suas cápsulas quadrúpedes contra as vielas, avenidas, calçadas, batendo suco uns com os outros e pedindo abrigo nos agasalhos de concreto.
E tudo aquilo não passou de um delírio, decerto – um coletivo, claro, pois difícil é delirar sozinho; mas o novo dia dissipa toda a tempestade. Nos resta o dia mais importante para tentar sonhar. É fato: tire-me daqui, antes que pense demais. Terra à vista, e vou-me embora viajar ao léu. Próxima parada, indeterminada! Todos os passageiros devem desembarcar – e saio com os fantasmas, eles darão uma festa no fim de semana que vem, e essa eu não perco por nada.
E o homem segue em frente com sua paixão, onde quer que ela vá dar. Esta gralha-azul ainda vai piar alto. E se não piar, tudo certo. Saudações tricolores.