Roma está em chamas. Dessa vez, não por culpa de Nero, mas de Lina Souloukou, ex-CEO do clube homônimo à capital italiana, que demitiu o ídolo Daniele De Rossi do comando técnico da equipe. O fraco início de Serie A (cinco pontos somados em 6 jogos) não impediu massivos protestos da torcida contra a decisão – tão obstinados que Souloukou se viu obrigada a renunciar. Não é a primeira vez que os Giallorossi se deparam com esse cenário: a saída de José Mourinho também ensejou insatisfação nas arquibancadas do Stadio Olimpico, ainda que em menor medida.
Por sua vez, na Inglaterra, a gentrificada plateia do Teatro dos Sonhos se queda cada vez mais indignada perante a exacerbada paciência de Sir Jim Ratcliffe para com Erik ten Hag. Mesmo após amargar a última posição na fase de grupos da UEFA Champions League, atrás de Copenhagen e Galatasaray, e o pior desempenho da história na era Premier League, o novo mandachuva do Manchester United resolveu manter o treinador neerlandês. Nem os numerosos desfalques por lesões e nem a FA Cup conquistada em cima do rival Manchester City justificam a permanência de um líder arrogante, malquisto no vestiário, que já na atual temporada tomou dois chocolates de 3×0 para rivais do Big Six – Liverpool e Tottenham – em pleno Old Trafford.
A nós, brasileiros, ambas as situações parecem muito inusitadas. A primeira, porque nossas torcidas pouco se comprazem à difícil vida itinerante e pouco estável dos técnicos de futebol; a segunda, porque nossos dirigentes raramente se dispõem a persistir com qualquer profissional que sofra três ou quatro tropeços consecutivos – às vezes até menos. O Flamengo, aliás, nem precisou de tropeço, demitiu Tite no dia seguinte a um triunfo contra o Athletico, sob o peso das vaias de um Maracanã esvaziado e insatisfeito, apesar dos 3 pontos conquistados. Há exceções, é claro. O caso do Fortaleza talvez seja o único recente em que uma má fase prolongada não foi o bastante para derrubar o treinador. Juan Pablo Vojvoda permaneceu no cargo depois de passar praticamente um turno inteiro na lanterna do Campeonato Brasileiro de 2022, o que não o impediu de terminar aquela disputa em oitavo lugar e de, na presente edição, sustentar a equipe em terceiro, a apenas 2 pontos do líder Botafogo.
Em compensação, o número de aficionados infelizes com a saída precoce de treinadores parece ser um pouco maior. Costuma atingir em especial os rubro-negros, ainda que sem a irascível efusividade dos romanos. No Rio, Rodolfo Landim e Marcos Braz continuam a lidar com as severas consequências de não estender o contrato de Dorival Jr; em Salvador, a torcida do Vitória não gostou nem um pouco da demissão de Léo Condé, logo no começo deste Brasileirão, embora tampouco reclame do esforço hercúleo que Thiago Carpini tem empreendido para manter o Leão da Barra fora da ZR; no Recife, por fim, o desligamento de Mariano Soso, argentino fã de Paulo Freire, foi visto como precipitado por quem acompanha o Sport – principalmente durante a curta passagem de seu sucessor, Guto Ferreira.
Vale outrossim citar o tórrido caso de amor vivido entre Grêmio e Renato Gaúcho: o Imortal não resistiu à separação de seu maior ícone em 2021 e teve de, logo no ano seguinte, chamá-lo de volta para sair de uma Série B na qual se enfiara sem ele. Nesta temporada, o Vasco Da Gama quase repetiu a dose ao ensaiar a recontratação de Ramón Díaz, algo que só não se concretizou porque o jovem e estudioso Rafael Paiva conseguiu se firmar no comando do clube. De perfil similar, Fernando Seabra igualmente fazia um bom trabalho, mas acabou sendo trocado no Cruzeiro por Fernando Diniz, de quem o Fluminense custou a abrir mão – por motivos óbvios – enquanto agonizava no fundo da degola.
Nesse contexto, a pergunta que batiza essa coluna, formulada pelo imenso José Trajano, torna-se mais e mais pertinente a cada fim de domingo ou quarta-feira no Brasil. No entanto, não há – arrisco dizer – resposta simples, pronta ou correta. Em postagem recente no Instagram, o Footure (@footurefc) divulgou uma estatística interessante que pode nos ajudar na solução desse enigma. Trata-se da tabela de Pontos Esperados (Xpts) versus Pontos Conquistados até a 27ª rodada do Brasileirão 2024, conforme reproduzo abaixo:
A própria legenda do post explica que se trata de “uma métrica do WyScout que calcula os pontos que uma equipe deveria ter conquistado com base em suas chances de gol criadas (xG) e concedidas (xG contra)”. Quem mais chama a atenção nesse sentido é o Atlético-GO, que, pelas oportunidades de gol que cria para si e que cede aos adversários, deveria ter 15,5 pontos a mais no campeonato. Tal discrepância entre o esperado e o real pode ser um indicativo de que os treinadores que passaram pelo Dragão esse ano – Jair Ventura, Vagner Mancini e Umberto Louzer – não exatamente foram ruins. Não à toa, os dados apontam que o time cumpre adequadamente o seu papel de buscar o gol e de se defender numa proporção em tese suficiente para ocupar o meio tabela. Contudo, a notória falta de qualidade do elenco e as limitações orçamentárias para melhorá-lo redundam no segundo pior ataque (atrás apenas do Fluminense), na pior defesa e no pior desempenho em pontos da Série A. Em circunstâncias como essas, os técnicos não devem ser os principais responsabilizados, visto que não há notícias de qualquer um capaz de interceder diretamente nas decisões individuais dos atletas lance a lance.
Apesar de ser uma boa explicação no caso de quem ocupa a vigésima colocação do campeonato, essa tabela de expectativas me deixa com a pulga atrás da orelha se utilizada para o outro extremo, onde o primeiro colocado Botafogo lidera também no saldo positivo de 13,4 pontos somados acima do previsto, tal qual o Fortaleza. O que isso nos diz a respeito de Artur Jorge e Vojvoda? Que eles não são tão bons e que a qualidade dos elencos que comandam os superestima? Ou que eles, além de realizarem um trabalho tático invejável, ainda são ótimos em exercitar os fundamentos de seus jogadores, aprimorando-lhes a capacidade de desarmar, passar e finalizar durante as sessões de treinamento? Nem um, nem outro. A maior eficiência desses clubes se explica por uma conjugação de diversos fatores – que incluem, sim, altas de doses de mérito aos seus comandantes, mas não só.
Em verdade, existe um padrão nessa tabela: fora o Internacional, os times da parte de cima conquistaram mais pontos do que o esperado e, à exceção do Red Bull Bragantino, os times da parte de baixo conquistaram menos. De fato, as enchentes que acometeram o Rio Grande do Sul podem ter influenciado nos resultados aquém das expectivas e na demissão de Eduardo Coudet, cuja segunda passagem pelo Beira-Rio se tornou excessivamente turbulenta sob a falsa impressão de que o Colorado estava mal das pernas na ausência dos pontos não disputados. Quanto ao escrete do energético, não há muito para onde fugir: os números apenas reforçam que o trabalho de Pedro Caixinha está muito abaixo daquilo que se viu em sua temporada de estreia no futebol brasileiro. Feitas essas ressalvas, tais dados não nos conduzem, por si só, a conclusões devidamente sólidas.
Aquilo que se observa dentro das quatro linhas não se adstringe às qualidades ou aos defeitos de um homem que, de fora, grita, gesticula e aponta para outros onze. Ora, isso é chover no molhado. Difícil é saber quando essa tal figura histérica deve ser defenestrada dali e trocada por outra similar. Muitos utilizam o critério das substituições. Mas será mesmo que podemos julgar o trabalho de dias, semanas, meses, anos por uma decisão supostamente equivocada no calor da disputa? Telê Santana dizia que, se possível, gostaria de assistir aos jogos de suas equipes da arquibancada, como um chefe de cozinha que flana pelos salões de seu restaurante para saber a opinião da clientela acerca da comida preparada. Ele não acreditava, portanto, que quaisquer decisões que tomasse à beira do campo pudessem modificar barbaramente o que fora pactuado durante a preparação para as partidas. Por seu turno, o lendário Elba de Pádua Lima, mais conhecido como Tim, era conhecido como um especialista em mudar por completo o rumo de pelejas inteiras somente com as orientações que proferia nos intervalos e com as trocas de peças que executava ao longo dos 90 minutos.
O futebol, raro leitor, rara leitora, não é uma ciência exata. Se não podemos medir o desempenho de um treinador exclusivamente pelo scout de gols inesperados que seu clube marca ou sofre, igualmente reservamo-nos ao direito de contestar as escalações de jogos fundamentais elaboradas com base nos dados do Departamento de Fisiologia, como diuturnamente fez a Magnética a respeito dos discutíveis rodízios no time titular de Tite. Outra métrica por vezes utilizada na avaliação de um trabalho, o aproveitamento nunca foi problema para Adenor: sua Seleção alcançou os 80,25% e seu Flamengo, os 64,8%, valores de dar inveja a qualquer um que milita na área técnica. Sem embargo, a claudicância da Canarinho em momentos decisivos contra Bélgica e Croácia e o paupérrimo desempenho do Rubro-Negro carioca tornaram o povo a clamar pela cabeça do professor gaúcho numa baixela.
No fim das contas, pensar sobre a demissão de um treinador há de ser sempre um exercício do justo meio aristotélico. Devemos, de um lado, ponderar as escolhas desse profissional sob a ótica das estatísticas, da escolha do esquema tático, da análise de desempenho e das funções atribuídas ao externos desequilibrantes; de outro, tão importante quanto é levar em conta como ele maneja a mandinga, a malandragem, o jeitinho, o chutão, o facão, o chuveirinho, a retranca e, mais essencialmente, a sorte. Levir Culpi que o diga: em 1989, ao substituir um centroavante por um meia, foi imediatamente xingado pela torcida do Criciúma. Tão logo o atleta oriundo do banco logrou assinalar o tento da vitória, o já aposentado técnico virou-se para a arquibancada e bradou: “burro, mas com sorte!”. Afinal, como diria Nelson Rodrigues, sem ela não se chupa nem um chicabon – quanto mais se supera a expectativa de gols previstos para uma equipe marcar.