FLAMENGO SEM NOME

Dia desses, circulou crônicas de 1983 tratando os jogadores do Flamengo como indolentes. Venceriam o Brasileirão logo depois. O argumento era comum, mas sentimento minoritário na torcida. Na Era Zico, os jogadores mudavam,mas a identidade do Flamengo permanecia.

Adilio Flamengo

Entre o time campeão de 80 e o de 83, saiu Julio César, entrou Lico, saiu Nunes, entrou Baltazar, zagueiros e treinadores mudaram, mas o Flamengo mantinha a sua identidade. Indo mais longe, da chegada de Claudio Coutinho a Carlinhos em 1987, o Flamengo manteve sua identidade.

O Flamengo forjado a partir de Coutinho pressionava o adversário assim que perdia a posse, jogava a partir das diagonais ofensivas e defensivas, unia os craques em torno da bola, avançava em campo pelos movimentos de desmarque em direção a bola ou de ruptura. Com Andrade, Adílio, Tita, Zico e Lico ou com Andrade, Aílton, Zinho, Zico, Bebeto e Renato, o Flamengo era sinônimo de toque de bola, jogo curto e associativo, passes velozes, jogadores que tocavam a bola e buscavam receber adiante.

Bebeto e Renato Gaúcho Flamengo 1987

Ninguém ficava fixo na ponta ou noutro lugar. Mais importante do que a localização espacial eram os movimentos. 2 jogadores se desmarcavam para receber a bola no pé e outros 2 para receber a bola no “ponto futuro”. E o time se entendia, criava química, e a arte ocorria.

O Flamengo de 2019 reatualizou essa identidade. Todavia, o que ocorreu após 2019 é muito diferente do caminho percorrido entre 80 e 87, na maior parte da Era Zico. Não mudaram apenas os treinadores e os jogadores. A identidade de 2019 foi massacrada.

Fusão Gabigol e Bruno Henrique

O Flamengo de JJ, Renato e Dorival possui as suas diferenças (inclusive, de jogadores), mas o que une esses três é a manutenção da identidade de 2019. Um Flamengo com nome, que pode ser compreendido em campo, e até amado por quem gosta de futebol.

Em 2023, a maior derrota do Flamengo não foram os sucessivos vexames e perdas de título, mas a aparente destruição da identidade de 2019. Não falo da troca de jogadores (Andreas entrou no Gerson em 2021, Pedro no BH em 22, etc), mas da morte de um nome, um símbolo, uma afeição.

Everton Ribeiro 2022

Vitor Pereira assume o clube no início do ano e tenta fazer uma transição suave, que naufraga rapidamente. O seu estilo era simplesmente inverso ao símbolo 2019. Vitor queria um futebol mais vertical, alongado, pelas pontas, com boa capacidade física. Todo o inverso de Dorival.

Sampaoli assume falando em jogo ofensivo e prometendo fazer os melhores jogadores finalmente jogarem bem em sistema posicional. Tentou um 325 ou 316 durante toda sua passagem, e deixou uma série de jogos ruins apesar de alguns bons resultados.

Quando Tite assume, o discurso de ‘jogadores indolentes’ já não é mais um artigo irrelevante num jornal de 1983, mas sentimento disseminado nas redes sociais e entre dirigentes. Os jogadores que sustentavam o símbolo 2019 já estavam surrados. Para muitos flamenguistas, 2019 deixou de ser alegria e virou um pesadelo pelo eterno retorno. Cada derrota de um treinador tentando mudar o estilo virava uma dolorosa lembrança do que foi abandonado

Sem cerimônia, Tite jogou a pá de cal que faltava. Foi além de Sampaoli e Vitor que tentaram uma transição suave. Não só o núcleo de 2019 foi relegado ao banco como Tite apostou em jogadores menos talentosos, mas que poderiam exercer melhor o sistema posicional.

Tite no Flamengo

O Flamengo dos craques no banco para Luiz e Cebolinha jogaram como pontas fixos é uma reivindicação de uma visão de mundo. Eles são ótimos exercendo esse papel, mas não craques. No fim, Tite encarou uma conclusão inevitável: para esse sistema funcionar, é preciso matar 2019. Com a bola, o Flamengo de Tite está sendo posicionalmente mais rígido do que os anteriores. Não há mais espaço para insistências com o quarteto ou com a dupla Pedro e Gabi com 2 meias. O sistema pede pontas, que joguem os pontas. Até Bruno Henrique já jogou fixo na ponta-direita.

O Flamengo de Tite continuou oscilando e com um aproveitamento semelhante aos dos técnicos posicionais anteriores (Ceni, Dome, PS, Vitor, Sampaoli), mas, dessa vez, a pulsão pela morte do símbolo de 2019 (não falo apenas dos jogadores) parece ânimo geral entre os torcedores.

O Flamengo segue a sua vida, como seguiu após a Era Zico, mas sem nome. Vaga em busca de novos jogadores, de um novo time, um novo sistema, um novo modelo, um novo nome. É provável que Tite reformule o time e traga jogadores que joguem no sistema que deseja, díspare ao de 2019.

Comprando a ideia de “indolência”, sem perceber o choque de paradigmas, muitos torcedores estão ansiosos para se livrarem dos antigos ídolos como se a culpa fossem deles por ser o que são. Quando a expectativa não for cumprida, perceberão que desperdiçaram momento raro na história. O dinheiro compra grandes jogadores, mas não forma um grande time e nem cria química (ou afeto). Ter um grande time, com grandes jogadores e com química entre eles é mágico e raro.

Como amante do bom futebol brasileiro, lembro dos dribles, tabelas, desfile de técnica, dos grandes jogos, das grandes jogadas, dos encontros inesquecíveis e só posso dizer: o meu muito obrigado. A culpa nunca foi de vocês.

Quarteto mágico Flamengo

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