Um bom campeonato de futebol é aquele que conserva em si, intacta e inexorável, a capacidade de se transformar. Mesmo que em algo que ele mesmo, campeonato, jamais imaginaria ser.
A Copa do Mundo de Clubes da FIFA veio até nós com intenções bastante simples: espalhar o bem, celebrar a pluralidade do futebol, etcetera. Desde que, dentro de campo, ninguém ousasse tocar no olimpo, formado, claro, pelos gigantes europeus.
Acontece que faltou combinar com, não os russos, mas os americanos, do norte ao sul, que vêm transformando a festa num tremendo “mal-estar”.
Se a promessa de dominância do velho continente já estava comprometida desde a primeira rodada da fase de grupos, com os árabes do Al-Hilal segurando o poderoso Real Madrid, o Monterrey parando a vice-campeã europeia Internazionale e os empates que muito poderiam ser vitórias de Palmeiras e Fluminense contra Porto e Borussia Dortmund, nesta quinta-feira (19), ao iniciar a segunda rodada, definhou de vez.
Primeiro, Lionel Messi mostrou que sucessão é bobagem e, pelo Inter Miami, dono da festa toda, castigou o Porto com uma batida de falta perfeita, marcando o gol que praticamente derruba o primeiro europeu da competição.
Mais tarde, o Botafogo enfrentaria o avassalador campeão da Champions, o Paris Saint-Germain, e a discussão era de quanto iria perder.
Via de regra, os debates seriam utilizados para tentar recuperar a ideia de “abismo técnico” entre Europa e América do Sul, que a ala europeizada da crônica esportiva nacional tenta, com todas as forças, manter de pé, como um espantalho tenta se manter firme em meio à tempestade.
Curiosamente, neste caso, se o PSG construiu o abismo, o fez inteiramente contra outros europeus. Mas quem ousaria dizer que o campeonato francês é subdesenvolvido, ou que Arsenal, Internazionale e Atletico de Madrid estão fora do alto nível?
Antes do jogo, o discurso em General Severiano ia ganhando confiança. Do “quanto perde”, passava para “quem sabe até dá pra fazer alguma coisa”. Depois, já com o clima da partida batendo à porta, evoluiu para “bem, são onze contra onze”.
E, de fato, onze de cada lado subiram ao Rose Bowl, em Pasadena – um de cada vez, sob anúncio especial do locutor de rodeios, como manda o protocolo cerimonial do país que funde o futebol à sua cultura de gincanas colegiais.
A diferença estava nas feições: os onze semblantes botafoguenses mais fechados que repartição pública em feriado.
Os franceses, em maioria, eram focados, mas menos pelo jogo em si, e mais para sacramentar a classificação e poder descansar o burro contra o já eliminado Seattle, na última rodada.
Rolava a bola na Califórnia e os comentários que pairavam pela praça mostravam otimismo ao Botafogo, mas alertavam que a equipe carioca deveria fazer uma partida perfeita para segurar a poderosa equipe francesa – o que ainda é um argumento que superestima o outro.
Em poucos minutos, já se via que perfeitos os brasileiros não eram, mas estavam com a atitude certa.
O craque Kvaratskhelia chamou o jogo para si na ponta-esquerda, mas, depois de um chute inicial para esquentar as luvas do seguro goleiro John, não pisou mais na área. Se a marcação individual do lateral-direito Vitinho era flácida, a marcação em zona compensava, com Gregore e até mesmo o atacante/ala Artur dando saltos precisos contra o espaço do georgiano. Chuveirar também já era opção falha, pois o centroavante português Gonçalo Ramos estava mumificado pela dupla de zaga Jair Cunha e Alexander Barboza.
O tempo corria e a atuação brasileira era espantosamente segura, notadamente no meio de campo, com Marlon Freitas e Allan entregando uma estabilidade digna dos grandes escretes. Espantosamente porque, de fato, o leitor, como eu, já deve ter se cansado de ver equipes brasileiras, clubes e seleção, sendo inocentemente engolidas no setor-chave do campo.
Atitude certa é o que também dizia-se do lateral-esquerdo Alex Telles e, principalmente, do centroavante Igor Jesus, a quem devemos uma atenção quase tributal. Vantagens físicas, pivôs limpos, casquinhas eficientes, e, é claro, o instinto das redes. Só poderia ser ele o responsável por transformar a transição perfeita do Botafogo no grito de gol mais eufórico do Brasil em 2025.
Recebeu ainda na intermediária, avançou em velocidade contra Pacho e abriu ângulo para bater cruzado no canto de Donarumma, que paralisou. A bola ainda desvia caprichosamente no zagueiro equatoriano, chegando a dar ilusão de ótica no telespectador mais cético, que, pelo ângulo da tevê, duvidou até o fim que o destino era realmente o gol.

Não era miragem, era um oásis. Maracanã 1965 em Pasadena 2025. 1 a 0 Botafogo!
Vendo seu time sequer trocar passes próximo da área adversária, Luis Enrique coçou a cabeça. Não imaginaria que a equipe que vinha de duas goleadas impostas sobre adversários do panteão fosse ter justamente em seu primeiro adversário não-europeu o enfrentamento mais difícil.
Chegava o segundo tempo, e o técnico espanhol, com razão, abriu a caixa: Nuno Mendes, João Neves e Fabián Ruiz nos lugares de Lucas Hernandez, Zaire-Emery e Mayulu.
Com praticamente o time titular ideal em campo, era de se esperar que os franceses crescessem de produção. Mas a tal atitude já estava instalada, e isto para os dois lados: a confiança inquebrantável do lado brasileiro, que não se abalou nem com alguns erros – naturais – de encaixes e transições; e o bloqueio criativo do lado francês, que via suas jogadas de piloto automático serem negadas.
Pelo lado da equipe de Renato Paiva, quem já havia jogado bem na primeira etapa ou manteve o nível, caso dos meio campistas, ou ainda o melhorou na segunda, caso da já mencionada dupla de zaga, que deu um espetáculo à parte. Mesmo com as substituições, ora táticas, ora circunstanciais, o Bota não saiu dos trilhos em momento algum.
Quando o relógio corria para os minutos finais, tudo que restou ao Paris foi a pressão protocolar. Sabe aquela pressão de um time que, no fundo, sabia que não iria dar em nada? Nem parecia o time que brincou de jogar bola em uma final continental há menos de um mês.
Fim de jogo: PSG, campeão da Champions, 0. Botafogo, campeão da Libertadores, 1. Se não valeu título intercontinental, pelo menos o “grand-cânion” virava uma bela highway californiana. Abismo é o cacete!
Vou até repetir: perfeição não ganha jogo, e sim atitude.
Perfeição nós nunca quisemos, mesmo. Agora, atitude é exatamente aquilo que poderíamos esperar do clube que mais cedeu jogadores à Seleção Brasileira em Copas do Mundo – e, a julgar pela exibição de ontem, tem mais é que ampliar essa vantagem.
O colossal Rose Bowl, após ser palco do tetracampeonato brasileiro, em 1994, foi brasileiro mais uma vez. Desta vez, foi Maracanã. Foi Didi, Nilton Santos, Amarildo, Zagallo, Jairzinho e, claro, Mané Garrincha.
Não sabemos o que será dos brasileiros neste mundial, que vai até o dia 13 de julho. Mas já vimos que alguma coisa pode acontecer para o longo prazo. Quem sabe algumas revelações sobre o que verdadeiramente existe – o que, planilhas de excel à parte, nunca deixou de ser: o campo.
Agora, chega aqui, francês, ou brasileiro de sotaque francês. Pra cima de muá? Jamé, Mané!