Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro

Em todos os confrontos entre Real Madrid e Manchester City, e estamos vendo muitos nos últimos anos, as narrativas são sempre as mesmas. Se o Real Madrid passa, a classificação não foi merecida e só aconteceu porque Ancelotti é um sujeito de sorte, é porque a camisa pesou, o time soube sofrer, contou com uma atuação histórica de seu goleiro e o Manchester City, que realmente se propôs a jogar futebol, sofreu com a injustiça e com o imponderável e foi eliminado. Se o Manchester City passa, é porque a justiça foi feita, o melhor time passou, quem quis jogar futebol finalmente foi premiado etc.

Entendo que muito dessa narrativa se construiu pelo confronto nas semifinais da Champions League de 2021/2022, o primeiro de uma sequência de três encontros em três anos. O Manchester City conseguiu, de fato, uma superioridade assustadora na bola jogada pela maior parte do confronto. Abriu 2 a 0 nos primeiros 20 minutos de jogo e poderia ter feito 4 se os atacantes do time fossem mais precisos. O Real Madrid conseguiu se manter vivo muito por medir o tempo do jogo e resistir ao tiroteio do Manchester City e acabou saindo derrotado por 4 a 3, mas que tinha um gosto muito mais de vitória pros espanhóis do que pros ingleses. Claro, se o City abrisse 4 a 0 nos primeiros 20 minutos, algo que não seria nada surpreendente tamanha a superioridade construída naquela janela, tudo iria por água abaixo. E tudo isso se reforçou no jogo de volta, no Santiago Bernabéu, onde o Real Madrid perdia por 1 a 0 (e, consequentemente, por 5 a 3 no placar agregado) até os 44 minutos do segundo tempo, quando Rodrygo fez 2 gols em 3 minutos e levou o jogo para a prorrogação. Gol de Benzema de pênalti, Real Madrid passa por 6 a 5 no placar agregado. De fato, um roteiro maluco, algo que foge totalmente da lógica mas, claro, algo que o futebol permite.

O confronto do ano posterior, para mim, foi o que mais teve a narrativa simplificada. Claro, o 4 a 0 aplicado pelo Manchester City no jogo de volta das semifinais da Champions League 2022/2023 deixou pouquíssimas dúvidas sobre qual time jogou melhor ao longo dos dois jogos e quem merecia passar. Mas acho que as pessoas (convenientemente) esquecem que, comparando os dois confrontos, a superioridade do Manchester City foi razoavelmente menor em 2022/2023, quando passou aplicando uma goleada acachapante, do que em 2021/2022, quando foi eliminado. Isso porque, no jogo de ida de 2022/2023, o placar final de 1 a 1 foi milagroso para os ingleses. O Real Madrid não só criou várias chances claríssimas paradas por Ederson que, por si só, já poderiam ter colocado os espanhóis em uma vantagem de 2 ou 3 gols, mas desperdiçou vários ataques e contragolpes que, estivesse Benzema em sua forma iluminada de 2022 e não no meio de tantas lesões como naquele momento, seriam muito melhor continuados e fatalmente acabariam em chances imperdíveis de gol.

Agora, na temporada 2024/2025, os dois times se encontraram pelo terceiro ano seguido, dessa vez nas quartas de final. 3 a 3 no jogo de ida no Santiago Bernabéu, 1 a 1 no jogo de volta no Etihad e passou o Real Madrid na disputa de pênaltis. Ao final do confronto, a narrativa sobre o que aconteceu não foi apenas simplificada, mas completamente distorcida. Pegam números frios de posse de bola, finalizações e gols esperados, tiram prints isolados e tirados de contexto e constroem um discurso sobre um Real Madrid covarde, que se apequenou, que jogou retrancado, só se defendeu e, pelo imponderável, acabou passando na sorte e no peso da camisa. E o Manchester City, pobre Manchester City, pobre Guardiola, tentou jogar um futebol ofensivo, propositivo, bonito, mereceu a classificação e mais uma vez foi punido pelos poderes místicos e pelo pacto do Real Madrid. Tentarei, nesse texto, fugir do discurso hegemônico que celebra números de posse de bola e finalizações como o paladino da verdade e apresentar uma outra perspectiva sobre o que de fato aconteceu entre Real Madrid e Manchester City.

Passou quem jogou mais futebol

“Em qualquer outro esporte, teríamos vencido” – Pep Guardiola.

“O melhor de Ancelotti é que ele encontra um jeito de todos jogarem com liberdade. Muitos outros times são estruturados na maneira que passam a bola e em seus padrões de jogo. Carlo nos dá calma e confiança” – Jude Bellingham sobre Ancelotti.

Quem começa a distorção da narrativa sobre Real Madrid e Manchester City, mais uma vez, convenientemente esquece do que aconteceu no jogo de ida. No Bernabéu, Ancelotti trocou Rodrygo e Bellingham de setor para armar um 4-4-2 onde Rodrygo era o meia pela esquerda e Vinícius era o atacante pela esquerda. Bellingham assumiu um papel mais livre pelo centro, Kroos e Camavinga faziam a dupla de volantes e Valverde era o meia pela direita.

Posicionamento médio do time do Real Madrid no jogo de ida contra o Manchester City. Kroos (8) e Camavinga (12) faziam a dupla de volantes e Valverde (15) era o meia-direita. Rodrygo (11) e Vinícius (7) próximos pela esquerda e Bellingham (5) solto por dentro.

Assim, Ancelotti juntou Rodrygo e Vinícius para partirem juntos da esquerda para o meio, sempre comandados por Kroos, volante pela esquerda, que ordenava os ataques e contragolpes por trás dos brasileiros. O núcleo do jogo do Real Madrid ficou todo pelo setor esquerda, onde os bons se aproximavam e costuravam jogadas. Não havia amarras espaciais ou mecanismo pré-definido sobre como e quando tocar na bola a todo momento; os jogadores atravessavam o campo, se aproximavam da jogada, prendiam a bola, aceleravam e desaceleravam o jogo, trocavam de ritmo, criavam combinações.

Recorte de Antonio Gagliardi de uma sequência de posse de bola do Real Madrid. O time se aproxima, os jogadores se movem constantemente e a jogada é costurada a partir disso.

O Real Madrid foi amplamente superior ao Manchester City, que encontrou 3 gols para sair do jogo com um empate em uma cobrança de falta (onde Lunin, goleiro do Madrid, falhou) e dois chutes de fora da área, um de raríssima felicidade do zagueiro Gvardiol e outro fruto da habilidade e do talento puro de Phil Foden. Para além disso, criou pouquíssimo. Não conseguiu entrar na área adversária, não conseguiu impor seu ritmo, e cada contragolpe do Real Madrid era um Deus nos acuda. O Manchester City teve mais posse de bola, mas não criou uma chance clara de gol sequer. Os espanhóis, por outro lado, foram soberanos. É ir além de “fazer o que se propôs”, como se tivessem se trancado num bloco baixo e contragolpeado quando conseguiram: o Real Madrid jogou mais futebol, simples assim, e merecia ter saído com uma vitória de, no mínimo, dois gols de diferença. O Manchester City teve mais a bola, mas jogava em seu ritmo alucinado, sempre a um ou dois toques, visto que, como os jogadores se movem muito pouco no ataque posicional de Guardiola, a bola precisa se mover muito mais rápido para compensar essa falta de movimentação. O Real Madrid teve menos a bola, contragolpeou mais, chegou ao gol adversário com mais rapidez, mas foi mais cadenciado quando trabalhava a posse. Teve mais pausa. Ancelotti construiu esse Real Madrid em um futebol orgânico, onde os jogadores são livres para compor seus ritmos, pausar mais o jogo, alternar a velocidade das jogadas. Kroos e Modric podem frear o ritmo, pausar, ordenar. Valverde e Camavinga podem conduzir a bola com afinco e voracidade. Rodrygo e Vinícius podem dar vários toques na bola, driblar, conduzir, recuar, tabelar. A base do jogo do Real Madrid é a interpretação. O dono do jogo são os jogadores.

No jogo de volta, Ancelotti repetiu a escalação à exceção de Nacho, que substituiu um Tchouaméni suspenso na zaga ao lado de Rüdiger. E, talvez sem a mesma contundência do jogo da ida, tornou a ser superior no primeiro tempo. Os espanhóis abriram o placar e tiveram algumas chances de ampliar para 2 a 0. Mais uma vez, o eixo do ataque ao redor das combinações da pausa de Kroos com a verticalidade imprevisível de Vinícius e Rodrygo foi terra fértil para combinações únicas, sem seguir um roteiro pré-definido ou um mecanismo imposto. Um futebol orgânico, interpretativo, construído pela percepção individual dos jogadores.

Sequência de posse de bola do Real Madrid no primeiro tempo do jogo de volta. Fluidez de movimentos, de toques na bola, de combinações. O jogo do Real Madrid é mais interpretativo do que mecanizado.

E o Manchester City? Bem, acho claro que a partir do segundo tempo do jogo de volta, os ingleses foram bem superiores, mas a chave para todo esse texto é analisar de onde veio essa superioridade. Cheguei a escrever algumas vezes, seja no Twitter, no Médium ou aqui no Ponto Futuro, sobre como a carreira de treinador de Guardiola foi orientada por sua busca pelo controle. Desde que começou no Barcelona, ao longo dos anos, Pep foi sucessivamente reduzindo as possibilidades de interação e interpretação para o que sua estrutura permitia. Cada vez mais, o sistema foi ganhando em relevância em relação ao indivíduo, e esse processo era claro já no Barcelona. Em Guardiola Confidencial, o autor Martí Perarnau relata como Pep encarava seu trabalho no Barcelona como “deixar Messi na melhor condição possível”. Guardiola chega a relatar para Perarnau ao longo do livro que, para ele, o ápice tático do seu Barcelona foi na temporada 2011/2012, aquela temporada onde os catalães vencem o Santos no Mundial mas acabam perdendo LaLiga para o Real Madrid de Mourinho. Quando se repara naquele time, fica claro que já era uma equipe diferente daquela que venceu a tríplice coroa em 2009 e a Champions League e o Campeonato Espanhol em 2011. Havia muito menos espaço para interpretação, os movimentos eram mais mecanizados, as jogadas eram mais reproduzíveis, o respeito às posições era maior etc. O time virara uma máquina de levar a bola ao Messi perto da área. Até o camisa 10 foi afetado: fez 73 gols nessa temporada, mas jogava muito mais próximo do gol, pegava menos na bola, participava menos do jogo: seu papel era esperar a bola chegar e, então, desequilibrar perto da área.

Esse processo teve alguns contratempos, inclusive incentivados pelo próprio Guardiola. Quando Pep insistiu que o Bayern contratasse Thiago, um jogador antagônico a esse tipo de mecanizações e até de amarras posicionais muito estritas de certa maneira, ou quando seu Manchester City venceu a Premier League fazendo 100 pontos com um time que tinha Kevin De Bruyne como todocampista, por exemplo, ficava claro que suas equipes ainda sabiam trabalhar com o imponderável, embora o rejeitasse enquanto princípio. Eu diria que, até os primeiros anos de Guardiola no City, a “chatice” de suas equipes tinha muito mais a ver com manter a posse excessivamente do que qualquer outra coisa. Eram times mecanizados, sim, e cada vez mais, mas o refino técnico e a habilidade que desequilibra ainda era um princípio, mesmo que reduzidos à estrutura. Porém, ao longo dos últimos anos, a obsessão de Guardiola por controle tomou proporções diferentes. Pep tem plenos poderes no Manchester City e, tendo uma diretoria de confiança, pode se preocupar apenas com o campo e bola, o que lhe permite passar por menos desgastes e ficar muito mais tempo em Manchester do que em Munique ou em Barcelona. Lá, o time é dele, o clube é dele, e sua visão de futebol pode tomar uma forma mais pura, sem ter que prestar contas a uma cultura ou uma hierarquia previamente estabelecida (como disse Perarnau em Pep Guardiola: A Evolução). E qual forma seria essa?

Guardiola abandonou os laterais habilidosos e criativos que sempre prezara em sua carreira e começou a montar uma linha defensiva composta apenas por zagueiros, fenômeno extensiva e brilhantemente analisado por Felipe Lemos em um texto do Ponto Futuro. Indo além da nomenclatura “zagueiro”, Guardiola começou a posicionar jogadores de razoável refino técnico, mas impressionante potência física em faixas cada vez mais avançadas do campo, como quando Stones jogou como um camisa 8 na final da Champions contra a Inter em 2023 ou quando Gvardiol jogou na ponta-esquerda e Akanji na meia-direita num jogo que valia a liderança da Premier League 2023/2024 contra o Arsenal. O falso 9, figura tão amada por Guardiola nos tempos de Barcelona, Bayern e até no City em alguns momentos, foi substituído por Erling Haaland, um trator físico e uma máquina de produzir números, mas que claramente não contribui futebolisticamente para o resto da equipe.

O Manchester City no jogo contra o Arsenal: Gvardiol era um ponta-esquerda e Akani era um meia-atacante pela direita. Kovacic, volante brilhante, foi afastado das zonas mais criativas do campo e jogou como um terceiro zagueiro.

O recado desse processo é claro. Pouco importa quem preenche a posição x ou y, porque Guardiola não precisa de jogadores transcendentais. Tudo bem se Stones ou Akanji forem o camisa 8, se Gvardiol for o ponta, se Haaland for o 9: os jogadores dessa faixa de campo não precisam ser brilhantes, craques que levem a bola até o ataque a partir do brilhantismo. Quem leva a bola até o ataque é o sistema, é a macroestrutura do time. Os jogadores só precisam acertar gestos técnicos que Guardiola desenhou previamente. Quem joga é o sistema, os jogadores apenas o reproduzem. Jogadores brilhantes, como Rodri, Foden, Bernardo Silva e De Bruyne, perdem cada vez mais relevência, pois cabem a eles fazer os mesmos gestos, passes e ações que um zagueiro na mesma posição. Aliás, vem compensando mais para Guardiola ter um jogador que se imponha fisicamente nas posições mais avançadas do campo, pois, assim, o trabalho de pressão e contrapressão fica mais fácil. Já que a capacidade do indivíduo de desequilibrar com a bola no pé é cada vez mais suprimida pelas possibilidades permitidas pelo sistema, é melhor ter um jogador tecnicamente razoável, que acerte os passes e gestos, mas que consiga realizar esse pressing e vencer as disputas pelas segundas-bolas do que ter um jogador transcendental, cuja transcendência será pouco ou nada útil ao time (já que a estrutura não permite), mas que comprometa o pressing físico.

Os jogos contra o Real Madrid foram a síntese do que Guardiola se tornou. O City teve a bola, mas usou-a apenas para manter o controle do jogo. Não arriscou passes, não transcendeu a estrutura, não pensou fora do roteiro, mas repetiu exaustivamente o sistema. Os jogadores do Manchester City pareciam pasteurizados: repetiam os mesmos movimentos, os mesmos gestos. Recebem, dominam, orientam e passam exatamente do mesmo jeito. A bola ia para as mesmas zonas, do mesmo jeito, com os mesmos jogadores a todo momento. E, quando o Real Madrid se mostrou capaz de se defender desses mecanismos mesmo já morto fisicamente, restou ao Manchester City se defender com a bola. Os ingleses não mantinham a posse para ferir o Real Madrid, inventar jogadas, achar caminhos, mas para repetir infinitamente a estrutura. E, como a estrutura é voltada para ter o controle, para o erro zero, para a perfeição, os jogadores do City eram instruídos a apenas não errar, a eliminar todos os riscos antes de agir. Assim, o Manchester City não tinha passes criativos, não tinha dribles imprevisíveis, pois seus jogadores preferiam manter a bola e seguir a estrutura a criar uma jogada realmente perigosa mas que apresentasse algum tipo de risco. Quando perdiam a bola, recuperavam-na pela contrapressão física e tornavam a rodá-la sem vontade de atacar. Um time que reduz seu jogo ao que o mecanismo permite, que só realiza jogadas roteirizadas e reproduzíveis e prioriza, acima de tudo, eliminar o risco e os erros é um time pragmático por princípio. Tem a bola, mas com ela só sabe se defender. É uma retranca com a bola no pé.

É importante ressaltar aqui que essa dualidade Real Madrid x Manchester City que relato aqui pouco ou nada tem a ver com o debate funcional x posicional. Não é uma questão entre o jogo de movimentos e o jogo de posições, pois os próprios jogadores podem ter preferências por um ou por outro. Kroos, provavelmente o melhor jogador do Real Madrid ao longo dos dois jogos, é um volante muito mais ligado ao futebol posicional. Se move pouco, em espaços pequenos e prefere rodar a bola, rodar o jogo, por exemplo. A questão não é essa. Jogar posicionalmente é um jeito tão válido como todos os outros; já cansei de falar isso por aqui. É um estilo culturalmente muito rico, ligado à história da Holanda e da Catalunha, e que tomou diversas formas ao longo da história. Minha crítica aqui não é sobre Jack Grealish ter jogado preso à ponta nos dois jogos, porque eu sei que a amplitude fixa é um conceito válido dentro de um estilo válido. Minha crítica é que Grealish é terminantemente proibido de pisar para fora do quadrado entre linha lateral e grande área em qualquer situação do jogo. Minha crítica é que todos os jogadores do Manchester City jogam do mesmo jeito, recebem do mesmo jeito, dominam do mesmo jeito. Minha crítica é que o Manchester City sobrepõe o sistema ao indivíduo e tira dele qualquer possibilidade de interpretação. Minha crítica é que, no Manchester City, só se joga a 1 toque ou 2 toques, sem interpretação, variação. O jogo do Manchester City não é chato porque o time tem muito a bola; o Barcelona de Guardiola tinha muito a bola e era um deleite de ver jogar. O Barcelona de Cruyff também. A Holanda de 74 também. O Manchester City é chato de assistir porque todas as decisões dentro de campo seguem um roteiro, um mecanismo pré-estabelecido. Isso significa ser mecanizado e não orgânico. Pouco importa se quem está jogando de 10 é o Maradona ou é o Akanji, Guardiola quer que eles façam a mesma coisa. Melhor ter Akanji que ele faz o pressing melhor e arrisca menos passes perigosos.

Grealish não parte para cima de seu marcador porque não estava em uma situação clara de 1 x 1, que seria quando seu adversário está sem cobertura. Portanto, tentar o drible aqui seria arriscar a perda da posse de bola, e isso é inadmissível no esquema de Guardiola. Logo, Grealish apenas toca para trás, porque manter a bola é mais importante do que ferir seu adversário.

Guardiola disse, após a eliminação, que em qualquer outro esporte eles teriam passado. E provavelmente é verdade. Nos esportes americanos, no handebol, até mesmo nas lutas, dá-se muito mais valor a quem tem volume e constância ao longo do jogo. Conceitos muito usados no rugby ou no handebol estão muito presentes nos times de Pep, inclusive: alargar o campo, impor a fisicalidade na última linha, atacar com mais quantidade do que critério etc. Assim, seu Manchester City reproduz a estrutura exaustiva e incessantemente ao longo de 90 minutos, fica com 60% de posse de bola, troca quase mil passes e finaliza 30 vezes, mas nenhuma com perigo real. Mas Guardiola olha os números, vê que seu time fez o que ele mandou e fica desconcertado quando vê que não funcionou. Claro, pode ser que funcione, eventualmente. Como funcionou no 4 a 0 contra o próprio Real Madrid. O Manchester City é um time dificílimo de enfrentar justamente porque realiza seus mecanismos com uma perfeição absoluta. Eventualmente, a superioridade será tão acachapante que a vitória virá. Mas, quanto mais se afunda em sua obsessão por controle e perfeição, mais Guardiola se afasta do verdadeiro futebol.

O Húngaro, escrevendo maravilhosamente sobre Maradona, fez uma belíssima síntese do porque amamos futebol: “Todos os jogadores de futebol são colocados diante de um dilema quando a bola chega aos seus pés: o que fazer? Passar, dominar e passar, dominar e tentar uma jogada individual? Segurança ou risco? Sempre que a bola chegava em Maradona, ele optava pelo risco. Maradona assumia a bola como um íntimo, um amante, e um novo ardil era inventado. A solução não se repetia. Elas eram únicas para cada lance porque refletiam o sentimento, a antevisão, a intuição, a precisão daquele instante. Faz-se evidente que todos os jogadores tentam fazer o melhor possível e que ninguém deseja errar. Contudo, a vida ensina que assumir riscos implica maiores chances de erro como também de resultados mais impactantes. Maradona assumia o risco sem medo”.

O jogo do Real Madrid é humano, orgânico, interpretativo. Se Vinícius Júnior acerta um drible memorável, que fica em nossos corações, é porque Ancelotti lhe deu a segurança de tentar e poder errar. Guardiola acha que vencerá estando mais próximo da perfeição, mas seu Manchester City jamais esteve tão próximo do gol quanto o Real Madrid, que tentava, errava, tentava e acertava; assim, os espanhóis tiveram 5 chances claras no confronto e os ingleses, 3. E, dando alma a seus jogadores, construindo um sistema que empodera o indivíduo e não o suprime, Ancelotti se transformou no primeiro treinador a eliminar Guardiola da Champions League em 3 ocasiões diferentes. Guardiola e seus fãs se amarrarão ao discurso frio dos números, mas quem quis atacar, quem arriscou, quem feriu seu adversário e quem chegou mais vezes ao gol foi o Real Madrid. Passou, portanto, quem jogou mais futebol.

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