Busquemos explicações para as vaias que Morata recebeu no Santiago Bernabéu com a Seleção Espanhola, enquanto um jogador do Barça, Yamal, saía ovacionado.
(Texto retirado de El Confidencial)
Há alguns dias no Bernabéu, a seleção espanhola jogava contra o Brasil. O centroavante titular da Espanha, Álvaro Morata, revelado pelo Real Madrid e que hoje empresta seus gols ao Atlético, foi vaiado durante o jogo. Sua atuação havia sido medíocre, e quando Morata está medíocre, a impressão que dá é de autoparódia. Ele é como um ator com os pés trançados que ao entrar em cena tropeça nos móveis, provocando risos da plateia. Essas vaias não são algo incomum. A Seleção Espanhola não é exatamente um objeto sagrado e muitos jogadores foram vaiados pelo público. Morata mesmo foi vaiado no campo do Sevilla e também no Metropolitano, quando já estava no Atlético, porém emprestado à Juventus.
Morata não é qualquer um. Ele é o centroavante e os centroavantes são observados de qualquer lugar da praça. Um cara alto e com complexo de perseguição, que não é tão ruim quanto às vezes parece, nem tão letal como ele pensa ser. Ele é um artilheiro em rajadas, que faz muitas coisas em campo de forma nada sutil e está desprovido do dom da graça. E também é o melhor centroavante espanhol dos últimos 10 anos.
Enquanto Morata era o artilheiro espanhol, a Inglaterra tinha Harry Kane – que dobra os gols de Morata -, a França tinha Mbappé – o mesmo -, a Argentina tinha Messi, Portugal tinha Cristiano Ronaldo e o Brasil tinha Neymar, que, embora não seja um artilheiro puro, teve temporadas com mais de 40 gols.
Já foi discutido aqui como a forma de educar os jogadores espanhóis que surgiu do credo de La Masía torna praticamente impossível o surgimento de artilheiros e zagueiros expeditivos. O artilheiro é sempre egoísta, assim como o amante é sempre desesperado. E o zagueiro é aquele que nega o jogo, como se tivesse nascido apenas do sangue de Caim. Essas são duas verdades que podem ser matizadas conforme a conveniência, mas continuarão ali, no fundo do jogo.
Se um jogador de futebol é educado para sempre passar a bola para o colega desmarcado, está sendo educado para um tipo muito concreto de futebol, no qual se chega ao gol apenas através de uma sequência – quase infinita – de passes. Esta é uma pedagogia moral que, levada ao extremo, produz figuras de um presépio, desprovidas da capacidade heróica, que talvez seja o atributo mais especial e fascinante do atleta.
Assim, Morata – um verdadeiro (embora) atacante – é quase um erro genético dentro do ecossistema espanhol. O atacante que essa forma de jogar exige é mais parecido com um Rodrigo Moreno ou um Oyarzabal, muito mais preocupados em se associar do que em finalizar. São meio-campistas camuflados com certa habilidade na área.
São os rapazes humildes e simples de quem a imprensa fala. Sempre essas duas qualidades repetidas pelos treinadores até a exaustão e que têm amargado o paladar do esporte espanhol por muito tempo. Talvez desde aquele “niño, no destaques” com o qual a escola franquista decidiu nivelar a genialidade de um país presumivelmente ingovernável para construir uma classe média sobre um cemitério.
A Espanha teve gênios em quase todas as disciplinas. Nas esportivas e nas artísticas. Mas não no futebol. No futebol, teve geniozinhos. Nunca heróis. Talvez a prorrogação de Iniesta contra a África do Sul seja a única concessão da Espanha à história épica da humanidade. E, é claro, os anos em que Sergio Ramos ganhou a Champions com cabeçadas, mas isso é uma parte da história que apenas os madridistas podem saborear.
Aquele jogador que é como uma porta aberta para o infinito. Como se em uma casa houvesse um quarto secreto de onde se pudesse dominar o mundo. Como se pudéssemos desviar o curso de um rio com nossas mãos e subjugar a selva com nossos passos. Esse jogador nunca surgiu na Espanha.
“Tivemos Velázquez, mas Maradona sempre será argentino. Isso é um fardo.”
Os mais próximos foram Gento e Sergio Ramos no Real Madrid, e meia dúzia de momentos de Iniesta. Talvez também os primeiros dias de Butragueño, um ano de Fernando Torres e aquele Raúl que movia objetos com a mente. Mas nenhum alcançou a totalidade ou chegou aos níveis de genialidade dos mitos. Apenas o roçaram às vezes. Foi suficiente, mas não nos satisfaz. Tivemos Velázquez, mas Maradona sempre será argentino. Isso é um fardo.
No jogo entre Espanha e Brasil, Endrick saiu como um minotauro que teria perdido tempo no labirinto. Endrick tem tudo isso do que falamos. Quando desliza, o gramado se abre em seu caminho. Seu corpo é algo inédito, não parece feito para o futebol, mas sim para lutar contra hipopótamos. Mas seus pés são pequenos e alados, movendo-se em várias direções ao mesmo tempo. Ele marcou um gol de primeira como Gerd Müller e em algumas corridas parecia ecoar Ronaldo.
Claro, as pessoas veem Morata e duvidam que pertençam à mesma raça. Como não vai ser vaiado?
O que o Brasil tem foi explicado muitas vezes. Essa cultura de extremos que nunca se tocaram e onde o jogo – como na Argentina – constrói identidade. A dança, o desejo sem amarras, o prazer que se deposita em cada coisa feita na vida, desde a bola até a maneira de andar; traços do animismo antigo onde tudo – e não apenas o ser humano – estava impregnado de espírito e não havia separação entre o interior e o exterior, entre a alma e o corpo, e assim o ritmo é tão importante quanto a forma de pensar. A vida está nisso. Mesmo que não saibamos o que é isso.
O processo de domesticação, típico da escola ocidental, não ocorre no Brasil. Pelo menos não no Brasil de onde surgem os jogadores de futebol. Marcelo nos gritava da lateral que havia uma liberdade diferente da nossa. Para a criança, não há diferença entre o real e o imaginado. Tudo pode acontecer. Para torná-la adulta, é torturada até dizer sua primeira verdade. Desse processo, surge um Rummenigge, mas não um Vinícius, nem um Neymar, nem um Ronaldo ou um Ronaldinho. Neles não há diferença entre o real e o imaginado.
Eles passam de um mundo para outro naturalmente, sem perder o senso do real. Eles competem no limite, seus gols não ficam apenas no terreno da fantasia. Roberto Carlos acreditava que podia marcar gols de falta de 50 metros. E fez. Ronaldinho caía no buraco de Alice e saía do outro lado da área. E fez. Ronaldo driblava duas vezes uma equipe inteira. E fez. Vinícius sai dos imbróglios driblando a polícia como Chaplin. Vamos lá.
Uma educação que não é uma educação, felizmente. Ali estão a audácia, a despreocupação, o prazer do jogo, que é o prazer do engano, às vezes do proibido e também do orgulho narcisista. Veja o que sou capaz de fazer. Eu zombo de você e ainda saio vitorioso, indo até a linha lateral para que a garota mais bonita me encha de flores. Sou vaidoso e caio no espelho, mas saio do outro lado com meia dúzia de Champions. Esse Cristiano, meio brasileiro, meio sociopata, um gênio de cima a baixo, que ainda não foi compreendido pelos sábios do esporte.
O jogador de futebol espanhol atual seria – no entanto – o homem-sistema por excelência. Ideais para inflar qualquer estatística. Por isso, quando surge um Lamine Yamal, alguém que quebra as regras e quer encantar o público com a bola colada ao pé, todos gritam entusiasmados. Talvez Lamine tenha um problema, e é que, sendo uma criança, joga muito bem. E é conveniente que as crianças joguem mal.
É conveniente que elas joguem para serem heróis lutando contra o sistema, quebrando as normas de convivência, pegando a bola no meio-campo e marcando um gol de 50 metros como aquele lance em que Arda Güler bateu na trave. Se você joga corretamente quando criança, nunca será um herói quando adulto.
Embora haja exceções como Iniesta, naqueles momentos na prorrogação da Copa do Mundo onde ele purgou todos os nossos pecados. Foi como uma Descida da Cruz. Algo que não se ensina e nem mesmo a educação pôde com ele. Ele carregava dentro de si como um remorso que se transformou em desespero justo quando os lobos estavam à espreita.
O herói o é porque tem que superar inúmeros obstáculos, às vezes até mesmo contra seu físico. Não pode haver ato heróico sem desobediência. Não pode haver ato heróico se a estrutura for muito perfeita, se o sistema limpar as dificuldades para você. Nenhum general gosta de heróis, apenas o povo bebe desse cálice.
Se Ramos ou Gento são os dois jogadores que estiveram mais próximos disso, é porque chegaram ao Real Madrid sem saber jogar. Chegaram como pedaços de pedra bruta dos quais era necessário esculpir a estátua do discóbolo após um processo longo e doloroso. Chegaram com suas qualidades intactas, selvagens. E depois aprenderam a jogar.
Ninguém poliu suas qualidades em prol de eliminar seus defeitos.
Lembre-se que no minuto 70 de uma semifinal, nada do que foi aprendido valerá. Será a intuição selvagem daquele que passou toda a infância lutando pela bola em um espaço mínimo que salvará o mundo ou o condenará.