Apêndice: Pogba, Ponta de Lança Africano

Foto de jovens jogando futebol.

Sabemos que o corpo produz sua própria linguagem. Energia que extrapola a matéria e contagia demais matérias. Por isso, nomeia-se uma atividade corporal complexa, que foi experimentada e repassada, como cultura (!) corporal. O corpo é uma ferida aberta no mundo, ele é o receptor das nossas sensações, energias e demais impulsos – os indianos por exemplo, forjaram sua filosofia pensando exclusivamente na transcendência da própria matéria – porém, ele não chega aqui como um papel em branco. Atribui-se a essa herança o nome de ancestralidade. Se o ser-humano, em sua comunidade, mantém um modos preservado a partir da “mimesis”, ele também conserva grande parte do seu conhecimento no corpo, sem contato direto com seu antepassado. O fenômeno da hereditariedade, confirma o pressuposto de que o corpo é tradição e costume, apenas no seu expressar; comportando uma cadeia inteira de códigos locais/familiares que será, enfim, a linguagem. Vejamos, procure uma criança brasileira, com boa ligação à tradição interna do país, dê a ele, uma bola. Não é preciso que se ensine, precede naquele corpo uma maneira de vida, casualmente ele se sentirá confortável com o objeto e no mínimo fará um drible, ou uma invenção que manifeste a essência do “ser” brasileiro, nele. Então, entraremos na reminiscência que está vinculada ao corpo como uma espécie de memória afetiva.
Tudo através do corpo, e como o mesmo é meio e fim da nossa interpretação do mundo, também é entre ele e o imaginário, que se forma a corporeidade desenvolvendo assim a identidade do indivíduo. O corpo é “ente” extremamente ativo no processo de manutenção cultural, ele, antes de verbalizar – através dos seus reflexos – caracteriza a forma como nos identificamos no mundo, sendo capaz de repassar tradição, pelo gesto. A Capoeira, ou a caça indígena; O forró, a encamisada. Todas, práticas antes corporais que envolvem a transmissão cultural e permanência de um povo.
Então, entremos ao ensinar. Um conceito forte, que nessas circunstâncias, soa um tanto facínora da parte de quem pretende de fato ensinar o “subalterno”. Nesse processo, variadas vezes e, em várias formas, é desorientado o processo de entender o corpo enquanto ente da cultura e produtor da mesma a partir do movimento e passar a compreendê-lo enquanto uma tábua rasa a ser completada pelos conteúdos. Quando adentramos então a raiz da tradição, a coisa fica mais séria, tal qual, mais bonita. É impossível ensinar tradição! O corpo, enquanto vivo, feito de carne, é o fenômeno que “altera” a relação da criação e do existente. Como disse, dê uma bola a um garoto em qualquer esquina, não se ensina, se manifesta um forte e longínquo processo cultural que recebe o nome de “dimensão cinética da cultura”, que em linhas específicas, diz respeito à ordem do corpo perante o espaço e a relação de troca que, impulsiona um (espaço sobre o corpo) e o outro retém (corpo), fazendo com que o processo de transição da cultura, fortalecimento e memória, seja particular da atividade motora, antes de tudo.

Entretanto, essa reflexão serve de acesso para entender, o processo de apagamento histórico/cultural de jogadores negros, descendentes africanos que nasceram na Europa e mesmo assim, e obviamente, conseguem fazer intactas sua “lingua” através do movimento.

Comparando um francês médio jogador de futebol a um francês descendente/imigrante é possível traçar o objetivo de compreender o corpo enquanto materialização da cultura.
Nessa hipótese, e tomando o caso real da infância de Pogba como objeto de estudo, faremos o paralelo entre esses dois indivíduos, tomando como certo que participam da mesma região, compartilham o mesmo status, mas são extremamente diferentes em origem – o que se toma por herança cultural.
O francês, apesar da região, continua fixado a herança que o precede enquanto francês. De característica mais sisuda, particular; com gestos mais técnicos, ele se impõe ao mundo de acordo com sua cultura, de acordo com seu costume. Respectivamente essa “tradição corporal”, se enxerga em todas as expressões que demandam o trabalho físico na natureza. Então, vamos de encontro a um indivíduo fechado e seguro como os seus antepassados. Jogando bola, comunica um estilo mais objetivo, e apesar de incisivo, é mais decisivo do que inventivo, e de tal forma o seu engenho, é mais tecnicista do que improvisado. A região intervém, é óbvio, porém existe uma cadeia de códigos corporais que atuam por si só. Em um híbrido de gene e cultura.
Agora, volvendo ao jogador negro imigrante, nas mesmas circunstâncias e região – com uma realidade que oprime o que seu corpo pede. O que garante a sobrevivência da sua identidade corporal? Se o mesmo acessa um mundo de cultura massivamente branca e de cunho ‘cavalheiresco’, qual a força por trás da sua independência? Digo, é o próprio corpo, que como templo, converte a consciência a sua ancestralidade original. O corpo enquanto maneira de se dirigir ao mundo, é a matéria capaz de reter o princípio humano básico de convivência de um povo: seu rito. Nas palavras de William Yeats, “o estado e nação são obras do intelecto, e quando você considera o que vem antes e depois deles, eles não valem a folha de grama”. Nessa pequena sentença, é possível posicionar o corpo dentro do embate entre culturas; que de antemão, sugere sua existência apenas em camadas abstratas. O que vem antes de todo enredo burocrático do contrato social é exatamente o corpo, ele é nosso maior registro histórico – acontecendo sem trégua.

No contexto de análise das duas realidades, faz-se entender como um jovem negro, longe de sua terra, sem contato com sua “cultura mãe” e violado simbolicamente, produz um lexico corporal extremamente intimo que reencontra sua tradição coletiva estando anos de diferença da mesma. Se os regimes sociais, são obras exclusivas do intelecto, somente o choque do corpo, consegue produzir uma monocultura externa àquela realidade. E levando em consideração que a suma maioria dessas culturas, acabam com outras culturas a fim de dominá-las, é o próprio corpo, refúgio e manifesto político contra a imposição simbólica. Ele é antiquado, independente e indisciplinado.

“Torneio Amílcar Cabral”, Corpo e a bandeira da independência


Guiné, nação explorada durante quase dois séculos, pelos franceses. Desmantelada, ocupada e desertificada pelo colonialismo/imperialismo europeu na África Ocidental.
Como parte do processo clássico, de dominação sobre outro povo, se viu desterrada do próprio território, quando passou a lidar (certamente) com nova e soberana cultura no terreiro de casa. Cultura essa, que além de gangrenar àquela terra, tinha como predisposição racista, o exercício de educá-los culturalmente.

“o corpo do nativo é oprimido de inúmeras maneiras no contexto colonial. seu movimento é oprimido porque o colono com sua polícia/militar limita os limites da cidade. então agora os nativos só podem se mover dentro de determinados espaços em determinados horários, sempre dependendo do critério do colono”

Passou-se um século e meio até a Guiné conseguir novamente sua independência. Parte desse ato de liberdade, advém do ‘verso solto’ da sociedade, o corpo.
Em 1979, em meio a uma turbulência civil, ocasionada pelo processo revolucionário de independência das colônias portuguesas, aconteceu o torneio Amílcar Cabral, em homenagem ao grande líder revolucionário e também, como forma de ação política. Reuniu as nações independentes de Senegal, Mauritânia, Cabo Verde e Guiné-Bissau. Dentro do bojo da ebulição das conquistas internacionais/diplomáticas/políticas da frente africana, se encontra como ponto capital a reconquista do direito à expressão cultural. O torneio é antes de qualquer coisa, parte dessa força plástica decolonial. Enquanto nações dominadas, a única origem e contato a cultura, estava no terreiro que é o corpo. Tomados por um inflexível cristianismo, não havia espaço para a manifestação religiosa. Os rituais, os versos tradicionais, as danças; estava sob o controle “filosófico” da nação imperialista.

“um nativo tentando se encontrar no imaginário do colono é uma espécie de dissonância cognitiva”

O corpo, sempre foi o único e último refúgio, nele, se encontrava intacto, o berço da expressão cultural. Da mesma forma, a organização desse campeonato, serviu como exclamação de um povo livre. Desde a abertura, aos corpos correndo sem ataduras ideológicas, e produzindo máximas de sua antiga tradição (sentimento); o corpo terminou sendo a grande ferramenta anticolonialista.

Paul Pogba não é o Único


É de conhecimento geral que a África e suas nações, apesar da soberania de estado, continuam sendo um “celeiro” europeu. O futebol, globalizado e hiperinflacionado, atua ativamente como aparato de exploração dos países do norte – a dinámica mundial segue inalterável. Nessa circunstância, substitui-se a mão de obra desqualificada e barata, pelo pé, e o neocolonialismo segue firme no seu processo de captação.
Pogba não é o único, nem o primeiro ou último que viveu a distopia social do negro na europa. Seu caso reflete um processo muito antigo e fortalecido desde o início do esporte. Como podemos ver no artigo “A Emancipação do Futebol Africano”:

“Nas suas colónias no Norte de África, os franceses tornaram-se os principais “missionários do futebol”. Deixando de lado a África do Sul, esta foi a região mais intensamente urbanizada e industrializada de África e teve o maior número de colonos europeus. Desde a década de 1920, o governo francês apoiava a promoção do jogo e o Magrebe seria a primeira região do continente a obter sucesso internacional.
Desde cedo houve uma estreita integração com o futebol nacional. Os clubes franceses descobriram que a Argélia e Marrocos, em particular, eram excelentes locais de recrutamento. Já em 1938, 147 africanos jogavam na primeira e segunda ligas da França. Alguns deles, como o marroquino Larbi Ben Barek, chegaram a jogar pela seleção francesa. Ben Barek, uma das primeiras grandes estrelas do futebol negro, começou sua carreira no Union Sportive Marocaine de Casablanca, antes que o Olympique de Marselha o trouxesse para a França em 1938. O maestro, famoso por seu drible, posteriormente amarrou as chuteiras no Stade Français Paris ( sob o comando do lendário técnico Helenio Herrera) e do Atlético Madrid. E quando o Olympique de Marselha enfrentou o Racing Club de Paris na final da Copa da França em 1940, outro jogador do Olympique foi um certo Ahmed Ben Bella.”

Entretanto, essa análise está calcada ao processo de mercado mundial. O problema principal enfrentado pelos jogadores africanos (ou de origem) que fazem parte dessa “diáspora” moderna está correlacionado ao universo de Pogba, e ao universo futebolístico que irão enfrentar. Novamente, o que eles têm pela frente, é o mesmo que os seus antepassados tiveram na sua própria casa. Repressão, status de subdesenvolvido, e choque cultural. Vão para fora de seu país encarar um mundo avesso a suas crenças; se tornam estranhos. Porém, ainda possuem sua terra com eles. A expressão; o modo de ser, lhes garante a incensurável revolta. Daí em diante, é irreprimível a força de “ponta de lança africano” que transborda seus corpos.

Bafana bafana

Foto de jogadores de futebol.

“Os rapazes”. Em casa, mesmo distante da sua terra. Nas palavras de Simas, o espaço enquanto atividade comum de rudeza arquitetônica, é território, quando alterado para a celebração, é terreiro. O mesmo acontece com o conceito de corpo. Segundo Oyeronke Oyewumi, o corpo no mundo ocidental tem recebido desde sempre a diferenciação binária, que sobrepõe intelecto à fisicalidade. Base para a discriminação racial. Entretanto, superando essa ideia eurocentrada (ocidental), são vias de fato que, o corpo, espaço e mente se associam criando dotes culturais. Dentro dessa condição é que o corpo deixa o simples cartesianismo e passa a agir como modificador dos costumes – a partir da subversão dos códigos estruturais legais.
Assim é que os rapazes africanos, viabilizam sua jornada árdua ao profissionalismo, sem deixar sua terra mesmo estando longe. O corpo também forma o espaço.


Agradecimentos

Grato pela participação e auxilio do Lentz Sigue (Mbonji – @ESCADINHA no X) pelas bibliografias e conteúdos disponibilizados, somado a sua excelente leitura sobre a cultura africana. Também o meu agradecimento ao Tostão Tostaganza, que me ajudou com matérias especificas que nunca teria acesso, caso estivesse sozinho. Esse trabalho seria impossível sem um olhar que vem de dentro.


A emancipação do futebol africano
por Dietrich Schulze-Marmeling

CABRAL, Fernando; GOMES, Flora; AZULAY, Jom Tob (dir.).O torneio
Amílcar Cabral. Brasil, colorido, 1979, 27 min

THE INVENTION of Women: Making an African sense of western gender Discourses. [S. l.: s. n.], 2021.

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