Campo? De Extermínio

“E nada disso é mais triste do que um coração que não aceita o sangue que lhe colore.”

O trecho marcante de minha trajetória como leitor de grandes obras literárias, sintetiza em número e grau, o desassossego moral do esporte bretão. Precisamente e obviamente, falo aqui sobre o jogo segundo os latinos, ao qual sofre as marcas coloniais de não se aceitar no tempo e espaço.

Raça, gene, raiz e terra. De Pablo Alabarces à Panzeri, o trecho que me marca, também vive em seus pensamentos. Incomum a nós, a matéria que produzimos é muito menos sobre a gente e se faz cada vez mais genérica.

Inverter valores é uma casualidade do tempo, que perpassa o feito de jogar bola em unidade, porém, odiar a si mesmo, se faz diferente de negar-se e atualizar-se.

Quando você se deixa perder no tempo, e se torna incapaz de tatear as intimidades da memória, assume o feito de prostituir-se perante os deuses artificiais do mundo capitalizado e especializado. É isso que querem.

Arrodeado de mirabolantes máquinas cinzentas que ocupam cada terreno aberto que rompe uma potente energia boleira, é cada vez mais difícil sentir fluir na pele a energia de um jogo indomável, puro, ilimitado; insubordinado! Isso, um jogo insubordinado, e que quando se vende, é como um pássaro em cativeiro. Bola e gol, chute, passe, trivela, tronco; não se ensina jogar bola como se ensina a matemática, fórmula. Vida não pode ser caixote, e aquele que tem medo do impossível… é preciso sempre estar de olho, pois são eles os limitados e subordinados. Perante isso, é praxe que essa arte compartilhada, unida e separada como a série “The Blue Nudes” de Matisse não se injeta no homem, mas sim, se faz nele, e o é porque deve ser. Escolhe um, aquele e aquele outro (sinceramente, os que têm alma) e diz: “você é jogador de bola”. Não tem como fugir, ou odiar (!) isso.

O seguinte valor em vertigem, detona a lógica natural do negócio, e os frustrados – aqueles que ficam para as faculdades do juízo e separam suas horas para organizar coisas – investem em regras e formas que atrofiam a mesma. O positivismo científico virou a principal arma desse grupo. Aliam estatísticas, materialismo, comprovações meramente físicas e concretismo com o intuito de negociar a troca entre ultrapassado e moderno, no caso, primitivo e avançado; por fim, raça x raça, já que os mesmos (de cadeias sociais onde odiar-se é regra) não passam de malabaristas – bons moços com ímpeto em apagar um resto de história que lhes sujam o sobrenome.

Nesse plano, enveredamos por um caminho sensível, uma árvore, que tenta encontrar a luz sem se importar em como fazer.

A moralidade é o que é vital, a moralidade define a beleza pura da mesma. E no futebol, lidamos com uma moralidade possuída pela hiper-especialização do trabalho, capaz apenas de pensar a produção e produto, aquém de entender o fenômeno. Fazendo com que a prática se renda a fria comprovação do real e deixe de lado o seu plano humano e abstrato que funde o homem das pontas dos pés ao nariz.

Sinônimos: Raça, Valor e Localidade

Jogador de futebol.

Raça é um elemento que depende exclusivamente da consciência, no caso, só garante sua importância se estiver devidamente cravado no metafísico – o senso social que determina o que será relevante para as relações dentro da sociedade.

Raça se trata do conflito que mais tomou formas entre o tempo do homem. Dado a sua sensibilidade em ser apenas moral. É assim, com uma situação pura e simples de pertencimento, que uma raça ou outra pode ou não ser identificada pelo meio.

O valor tem um peso ímpar nessas decisões coletivas, valores são ideias, e a ideia de raça faz juz às convicções que circundam o meio.

Por exemplo, falando de latinidade – o sentimento compartilhado de se ver como latino, fenotipa/racialmente – (mestiçagem, mistura…) nos deparamos com a falta dela, pior ainda, com o desejo tirano de envolvê-la em um pacote e guardá-la no fundo de uma gaveta. Não há espaço nas ideias que compartilhamos, para compreender nossa raça/identidade. Assim, não existe espaço para compreender o indivíduo sob a luz da sua raiz.

Com isso, a localidade se faz capital. Precisamente, ela é material para que tudo isso seja pescado do campo das ideias, é nossa imanência enquanto indivíduo. Local é cultura em cada parede, e os saberes partilhados conferem sentido simbólico àquelas práticas, contando assim, valor (moral) para a existência do “pertencimento”. Sendo assim, os signos do mundo dependem exclusivamente do acesso permitido pelo local.

Quando unimos esses conceitos e divagamos sobre sua atualidade no futebol (sendo esse, o mesmo que a sociedade para o redator), encaramos uma realidade que não conhece essas dimensões que formam o jogo, e muito menos, cada uma dessas unidades é respeitada no esporte como objeto de promoção de uma atividade que está àcerca do expressionismo.

Entender o homem como algo ou aquilo que é completo, imenso e profundo; sensível às ocasiões temporais do espaço. É um passo inerte pro futebol. Sem mobilidade não há vida. Todas essas condições da raça, e seus valores, pertencem à instabilidade e irredutibilidade do movimento. Sendo assim, só existe um “fulbo cafetero” se existe cumbia. Só existe o samba se houver ciranda. E só existiu cada uma dessas ‘celebrações’ se antes inventamos Américas.

Desligado à noção de identidade

Capoeirista

Uniformização das relações é um fenômeno do avanço humano que se tornou inerente à modernidade. Relações de trabalho editam relações humanas. A velocidade e o tempo, tal qual correm muito rápido para o mundo. Importa a produção, e mais ainda, a reprodução. As epifanias industriais tornam o homem asséptico e instalam um abismo entre ele mesmo.

No futebol não é diferente, e pertencendo a essa teia de micro-organismos sociais, tudo que a sociedade alimenta, também é devorado por ele. O fenômeno do aborrecimento também toma conta do futebol.

Porém se torna um pouco mais problemático; ele adquire o cunho da raça e do valor.

Sulamericano que somos, cultivamos um jeito de levar a vida: morosa, amena, contemplativa.

Isso nos marca como indivíduos de culturas que se entrelaçam além das tensões da língua. A forma como se enxerga o mundo é a mesma de Bogotá até Recife, de Lima até La Plata.

A forma como entendemos o mundo rebate na forma que jogamos futebol, ou fulbo, futbol, la pelota… não importa, é sobre a gente mesmo, sempre.

No entanto, quem está nas sombras e promove esse “espetáculo”, não está por isso, e mais além, tem o ressentimento encarnado de ver esse jogo multimilionário na intimidade das classes baixas, um filho da cultura popular.

O futebol latino lida com o paradigma moral da reforma. E isso é sobre raça e cultura.

É de raça quando sabemos que o esporte é dominado por aqueles que sempre estiveram tomando conta dos negócios por aqui: burguesia. E são exatamente eles que odeiam no fundo o fato de um jogo que deveria ser exclusivo, ser inclusivo o suficiente pra depender de habilidades capoeiristas ou do choro de Gardel.

Quando abordamos raça, entendemos que o que odeiam é justamente a impossibilidade do futebol não sair das condições de arte de segundo valor, arte para todo mundo. Coisa que provoca uma ebulição de manias que marcam nosso estilo.

A subversão ou displicência pertence à capacidade das classes baixas em absurda-se com a vida, torná-la bonita defronte o caos. O ódio colossal empregado por nossa burguesia está na insuficiência científica em controlar essas “indolências” que só poderiam pertencer a raça. Não são polidos e conscientes o suficiente.

A turbulência desse fenômeno, apesar de ser um pensamento de burguesia, atinge a massa, de toda forma. E o mais comum disso tudo, é conseguir ver em plano quase físico o sumiço da nossa identidade e prevalecimento de tendências dissonantes. Mídias! Um instrumento incomum para a afirmação das elites, segue firme quando o assunto é repassar a palavra que desejam. E para onde se olha, nos prende a retina discursos que propagam a tal “maldição genética” do nosso futebol.

Nada novo, recapitulando passagens como a de 50 com Barbosa e 54 com toda seleção – Didi e entre outros – vemos que o raciocínio é colonial.

“Aconteceu com a burguesia industrial da América Latina o mesmo que acontece com os anões: chegou à decrepitude sem ter crescido. Nossos burgueses, hoje em dia, são comissionistas ou funcionários das corporações estrangeiras todo-poderosas.” p. 276

Essa passagem de As Veias Abertas da América Latina (1971) sintetiza em número e grau o escárnio racial cultivado por essa classe e sua necessidade em se desatar da massa/cultura – suja e geneticamente desfavorecida. O desejo em se projetar para o mundo como capazes de serem extremamente civilizados nutre suas convicções racistas a 500 anos.

A Voz Do Povo É A Voz De Deus

Quando as coisas atingem a sensível camada do senso comum, toma dimensões imensuráveis. Tal qual, o caso de anos de represália imagética sobre o estilo e jeito de jogar bola do sudaca levaram o surgimento da crença de que o atraso intelectual para ler o jogo, limita nossas condições de ser competidores (eternos, pais).

Se tentarmos desembaraçar as costuras da linguagem conseguimos algumas interessantes respostas.

Um dos códigos compartilhados pela comunidade boleira são os dialetos, são por eles que criamos as relações da estética, imagem e cultura. Assim, inventamos uma identificação.

Tal costume, se faz escasso. No esporte tomado pela tecnologia e elitizado de cabo-a-rabo não há espaço para “confeccionar”. Ou seja, inerte (!) o futebol não transborda entre a memória daqueles que o partilham, ele só serve de um escape imediato, uma diversão artificial de fácil teor dopaminérgico. Sem acesso às portas do afeto, aquilo que depende exclusivamente da alma se faz incapaz de sobreviver. Não vemos entre as esquinas aquele papear sobre o jogo de domingo onde fala-se mil e um apelidos diferentes ou gírias que só pertencem aos loucos da bola. Não existe. E a frieza comercial nos furta à’alma.

Potro, o caminho sinuoso da terra

Foto de homem

Com todo esse sistema cancerígeno é que tocamos o limiar capaz de explicar o comportamento suicida estimulado na cultura boleira.

Primeiro é preciso falar do fracasso em não possuir o futebol no centro das relações humanas.

Se o jogo é pensado como desencarnado, externo ao ser-humano e ambiente como qualquer objeto ou trabalho, dificilmente ele terá o sucesso da sua essência, o puro sucesso, que se configura em jogar a bola. Não em seu sentido corpóreo, terreno, mas em sua significação para o mundo, o feito de se desatar da impaciência mecânica da vida e ser um indivíduo em elevação.

A bola, é o sagrado. Ela narra. E como sabemos, está entrelaçada na contemporaneidade; línguas, sinais, óticas.

Se em um filme, a ocular é capaz de sensibilizar o espectador a ponto de uni-lo à história, no futebol, em matéria, quem joga e quem vê (mesmo isso pertencendo a uma unidade criativa) sentem a mesma causa. O campo não está a parte de seus entes, e para que ele permaneça intacto, sem finitudes, precisa estar dos dois lados, mantido em uma emoção que está na carne viva, como a música.

Quando o futebol passa a ser pensado como prática isolada à noção física do ser humano, no caso, controlado, mensurado e definido (alto-rendimento), nos afastamos diretamente da sua natureza fenomenológica. O brio da criação humana (elemento que caracteriza a nossa relação com o ecos) passa a ser descartado, e ao visualizarmos intenso contorcionismo simbólico para a aplicação de métodos infames, compreende-se que tudo isso se trata de tempo, modos de produção e moral. No caso, um mundo inteiro.

Desde que o futebol sofre mudanças em seu formato a níveis industriais, perdemos um pouquinho daquilo que o fez ser um prazer completo do nosso século.

A base corresponde em número e grau a essas mudanças, mas antes de tudo, quem regula sem qualquer pudor a forma como se joga bola, é o mercado.

Vejamos, o fenômeno da urbanização nos direciona a um caminho muito interessante.

O que é preciso para a felicidade moderna? Consumo. Para se consumir? Estabelecimentos. O sentido do mundo são as convicções do homem, e nisso, nunca estaremos falando de estética ou planejamento. Desde que aceleramos o modo de vida, fomos perdendo o sentido do gosto, e principalmente, da vontade. Diria, o que te faz gostar de futebol? Ou de uma catedral? O que há de tão importante!? A matéria, a ocupação espacial (considerações mensuráveis: volume, resultado, condição do real) ? A vida já não é pensada faz tempo. Quando Roger Scruton (2009) faz uma análise dimensionada em “A Beleza” e nos questiona em aberto “onde foi parar a beleza”, está falando em claro sobre isso. O jeito de pensar as relações (o jogo) espelha-se na forma como construímos a sociedade. Se não é preciso pensar a completude, ou, a importância de cada elemento vivo para que assim, exista uma harmonia visual capaz de transcender o humano em questão (ser de emoção), não precisamos de mais nada a não ser dedicar horas sobressaltadas enxergando outdoors. A escassez da criação é inerente do nosso tempo, do nosso modo de vida, e como trata Kant em “A Crítica da Faculdade de Julgar”, para encontrar beleza em algo, ou, a motivação que lhe faz achar algo belo, é preciso que antes de tudo, sua reflexão passe pelo crivo do desinteresse; o desinteresse puro da razão. Uma coisa é bela exatamente pela sua graça de estar ali (e sua grandeza simétrica) e a partir do momento que direcionamos nossos gostos para o filtro da utilidade, matamos diretamente o que faz o homem ser homem: a emoção.

Guardado as equivalências, o mesmo acontece com a língua, precisamente, com a forma pela qual conjecturamos nosso arredor e estabelecemos como se vive: cultura.

Nesse sentido, igualmente falando de mundo e América Latina, falamos quase de varredura histórica.

Não é eu ou você, somos todos nós, fechados em uma definição meramente vira-lata. Subjugado à própria insignificância, e vontade de imitar, encontramos nossas diferenças em um cerco. E como exposto, é impossível identificar se ‘pelada’, ‘fulbo’, ‘peloteo’ ou ‘picadito’. De nada vale expressar seu estado no mundo.

Seguindo uma linha cada vez mais racional, disfarçando a ousadia, se fazendo nulos.

Isso é a verdade por trás do sumiço de elementos do nosso jogo que dizem respeito a comunicação de tempo, espaço, homem e bola, e como diz o velho ‘Húngaro’, é o fator determinante para pensarmos a vida.

“Minha língua, minha pátria” diria Fernando Pessoa.

No entanto, o desaparecimento de figuras construídas sob o nosso olhar, tem haver diretamente com modernidade e submissão ao capital.

O Rompedor Latino, História

A partir dessa persona, de qualidades teatrais é que de fato voltamos a indagação que leva a criação desse texto. Então, de que campo estamos falando quando falamos de futebol? O rotineiro pensamento de um jogo ajuizado, definido e limitado a si mesmo, rompe com a natureza do imprevisível, que de forma total, permite a lógica de criação do próprio esporte.

Dado o desaparecimento de imagens tão pessoais e tão próprias de suas culturas, lidamos então com um potente fenômeno comercial que sequer tem sentido em ser cultivado. Quando não há traços, ornamento e dimensão, as três causas de algo ser importante, tal qual verdadeiro, não são cumpridas: ser bom, belo e justo.

Entretanto, é por isso que o gosto pelo jogo morre até uma partida qualquer de um campeonato nacional.

Se você tem um Cabañas no Paraguai, Crespo na Argentina, Salas no Chile e Adriano no Brasil, quer dizer por certo, que suas considerações humanas sobre o jogo estão ali, física e moralmente. É como ler a Odisséia para qualquer grego ou o Bhagavad Gita para qualquer indiano. E não se tratará de qualquer texto, mas sim de um provérbio tão próprio, interno e real, que diz respeito a você mesmo naquela condição, uma transfusão metafísica entre homem e o juízo da sua alma.

O doloroso é entender que para continuar existindo jogadores de potência transcendental, é a compreensão de que os meios o anulam para que seja cada vez mais ríspido e sem memória. E sem memória não há movimento. Sem movimento, não há o de mais belo nas coisas. Nossos traços não podem ser de autômato¹, Pasolini clama.

¹ Pier Paolo Pasolini em Os Jovens Infelizes, nos trás um tratado antropológico que denuncia o modo de vida da juventude daquele período. Desgastada pela futilidade e com a cabeça regulada pelo consumo, os jovens ‘setentistas’ italianos são para o grande cineasta uma aberração ética e moral.

Referências

Scruton, Roger (escritor) (28 de novembro de 2009). Por que a beleza é importante (documentário). BBC dois .

Immanuel Kant, Critique of Judgment, Translated by J. H. Bernard, New York: Hafner Publishing, 1951. (Original publication date 1892)

KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do juízo, trad. Valério Rohden e António Marques – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

GALEANO, Eduardo; As Veias Abertas da América Latina; 1970; L± Tradução Sérgio Faraco 

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