Crise de Identidade, anunciação

O Brasil de ouro e tropical expostos nas palavras de revolta poética de Caetano, Gil, Milton e companhia, se encontra em um abismo da identidade – tal qual aquele que se olha tanto até se tornar você – o Brasil negou sua origem para ser Brazil. É a partir disso que discorro por aqui em tom de revelação onde isso nos leva culturalmente. 

Misticamente, pode-se perceber que não nos encontramos em nenhum significado vivo, nos assola um assombroso mundo de crueldades que andam tirando nossos artistas à força de nós mesmos. Perdemos em um curto espaço de tempo, Gal, Elza, Jô, Erasmo; também se retirou dos palcos a grande voz sul-americana que aqui nasceu: Milton Nascimento; mas e as ruas? Como ficaram as ruas e os corações com tudo isso? De nada sofreram, o mundo continuou a girar, e ninguém sequer pensou a arte como unidade que não se difere da vida, o estado é niilista. O Brasil tão desejado do avanço apareceu como nunca havia aparecido antes, quase que higienicamente, as pessoas só conseguem perceber suas rotinas cheias nas grandes cidades, o Brasil quer era retrato da festa e comemoração, passou a ser a tão sonhada locomotiva que produz, produz e produz, e nada mais que isso; o mundo corporativo instalado por admiradores do imperialismo foi sendo identificado às avessas pelo brasileiro como seu verdadeiro Brasil, ninguém chorou. 

Eu sou o início, o fim e o meio 

O brasileiro, que distante do seu rito, da sua prece, do seu mundo cheio de possibilidades, cheio de defeitos e acertos se tornou o brasileiro esperado pelas elites da primeira república, que buscava se abrir pro mundo, mas para isso, precisava da remontada, ou da construção de um novo Brasil anti-latino, anti-miscigenação e que queria ser como a grande potência yanque que refez sua história com teor heroico. A partir daqui, alicerçado pelo racismo indissociável da colônia e pelo ódio do triunfo da cultura negra, buscaram o embranquecimento da população, que não funcionava apenas apenas na arbitrariedade física, mas nas dimensões morais do sujeito brasileiro. O Brasil precisava ser o de Lobato, que não se acometia das doenças da carne que os negros trouxeram, ou as indolências indígenas. Esse Brasil conseguiu apesar de tudo, alcançar seu ponto máximo de negação a origem na contemporaneidade do mundo escasso de símbolos humanos, no entanto, por aqui isso se desenvolve em uma intensa troca de fogo entre povo e elite. O Brasil, mesmo que importunado por uma elite ainda escravagista e com tiques de eugenia, encontrou sua superação em Pelé, que marca dois estados do nosso desenvolvimento pós-guerra: o Brasil que massacra a cultura negra, e o Brasil que nasce dela. Pelé é o símbolo máximo do século XX, e lança o Brasil real para o mundo, dominando-o com ginga, dominando-o de pernas tortas, dominando-o com o línguajar caipira de Guimarães Rosa. Pelé foi tudo. Encabeçou nosso antropofagismo cultural, e foi a retirada das aspas históricas do nosso país, passou a ser o cerne; impulsionou a tropicália, o samba, o cinema novo, a literatura; tudo foi um manifesto de um corpo negro que concentrava no próprio centro a força de um país visto como incompetente graças a própria origem. Foi enfim, graças ao triunfo futebolístico (o maior espetáculo moderno) que o Brasil se encontrou espiritualmente, e nosso crescimento seguiu vertiginosamente até um ressurgir de uma nova burguesia, também higienista e detentoras dos meios de expressão no final dos anos noventa e início dos 00s que baseava toda sua narrativa nas mesmas causas antigas do início do século. Durante a enorme escalada do Brasil no mundo, passamos por movimentos musicais originais e livres, derrubamos um poder usurpador;

tivemos o melhor futebol, a música mais influente (samba em teatros renomados, MPB com força global) o cinema que realocou as ideias de protesto da nouvelle-vague e o construtivista europeu, tivemos o povo como centro de todas as causas de felicidade do país que se superou, se aceitou e comemorou, que foi Suassuna (na afirmação nas ruas e no campo), foi Lispector e Hilda (na introspecção poética da vida) e não queria ser o doente do O Alienista. Estávamos em um caminho de ouro, novamente o futebol marca o processo com o ‘Brasil de 82’, o Brasil da Copa na Espanha que foi um desfile de carnaval, que não acabava, que retumbava, que era o corpo solto. No fim dessa mesma década, víamos ainda o que interpreto como o estopim pras ideias reacionárias voltarem com força; os anos 90 foram os movimentos de manifesto de massas. Enquanto os 80 estava para a celebração do que ainda ecoava como Pelé, Macalé e Caymmi, os 90 estavam marcados por um combustível “alternativo” das contra-culturas da rua que caminhavam junto a Foulcault e Delleuze, filósofos modernos que abalaram as estruturas e deram um choque na juventude radical dos 90. O Brasil seguia o mundo, mas, devido aos processos anteriores, o seguia com suas verdades. Então, vimos Racionais, O Rappa, RZO, Planet Hemp, um hip-hop potente que denunciava um Brasil negligente, o Brasil mostrou definitivamente sua cara. Surgia ainda no nordeste um embrionário mangue-beat, e um forte olodum, o Brasil sem censura apareceu como um soco, eram períodos de arte, honestidade e sacrifício¹. Por óbvio, isso foi terror para a burguesia, sem controle, sem força, não via se não os manifestos de rua ganhando o país, era o Brasil do povo; não iam deixar assim. Nesse emaranhado de acontecimentos, as elites que exaustas de um País que se reconhecia ainda mais historicamente, que registrava e carimbava o mundo com a figura de Castor de Andrade (logo Rio de Janeiro) e com o personagem revolucionário Virgulino Ferreira da Silva, popularmente conhecido como Lampião, buscaram primeiro o auxílio das mídias, que controlando parte delas, começaram a insinuar possibilidades de quebrar esse sentimento de realização do brasileiro para com sua vida. A crônica futebolística, direcionou suas ideias de bancada, tomada por uma enxurrada de estudiosos disso e daquilo à reforma do nosso campeonato – o mais divertido do mundo graças ao talento. Era possível sentir o cheiro de ódio, era palatável todo preconceito engolido durante três décadas de domínio do povo, cada palavra carregava implicitamente a vontade de destruir tudo que até ali se encontrava em excelência; era preciso se abrir para o mundo (!). Como nos odiavam. Esses, pequenos trechos de bastidores históricos potenciam o reacionarismo que estava por vir, a celebração seria a morte. Obviamente os movimentos de rua seriam demonizados, vivemos uma morte suspeita do grandíssimo Chico Science, os grupos como Racionais, Facção Central e outros, sofriam a discriminação típica dessa classe que queria retornar ao poder. A mídia acompanhou, os intelectuais passaram a ser eles, o povo não tinha representantes, tal qual, duvidavam de seus símbolos, se via uma decadência cultural, também moral. 

Anunciação 

Aqui é a parte onde voltamos ao início, o agora. O agora está sustentando (ou suportado) por todas as passagens dessas décadas, mas ele se encontra por ali em meados de 2006 e 2007. O Brasil sem símbolos não sabia para onde ir, precisava ressuscitar os velhos? Produzir coisas novas? Como? Era um período de desilusão, e temos aqui como recurso argumentativo o cinema. O Brasil que precisava se projetar no mundo graças a franca globalização, estava tendo seu rosto mudado, sua história recontada (definitivamente apagada) e encontrou um crivo, que fecha toda obra (boa ou ruim) exposta até aqui: Tropa de Elite. 

O filme Tropa de Elite é popularmente conhecido no Brasil e se tornou um clássico, mas por trás disso, traz ao inconsciente coletivo um tique burguês, o ódio às classes pobres, a desvirtuação da realidade e a culpa. O imaginário construído nesse filme é que as classes baixas são culpadas de toda involução histórica que esse país havia sofrido até ali, devido a sua moral de má fé, sua sensibilidade marginal e principalmente, sua cor, que pretensiosamente demonstra o lado que coloca o povo contra a parede, não transmitindo no fim a verdade por trás de toda pirâmide. A massa, sem símbolos, recorre a esse da culpa, da culpa histórica/social, que não leva em conta um processo permanente de colonização ao qual sofreu até aquele ponto, o que golpeava era a dúvida. O primeiro pensador a nos colocar frente a frente com o marco simbólico que esse produto cinematográfico trazia ao Brasil foi Marcelo Yuka, compositor do O Rappa e um “manifestante” dos tempos de cultura underground que tivemos. Yuka, já em 2014, levantava os questionamentos sobre um país que comemorava a morte de bandido (que seguia os estereótipos de favelado), respaldar a negação do povo ao seu jeito de ser, e a materialização de um sentimento de estranheza a sua natureza. Não queriam fazer parte daquilo – sujeira e escória – queriam ser a reforma, não eram críticos, corroboravam com a necessidade de matar bandidos – ao qual não suspeitavam se enquadrar no padrão desses “bandidos”. O Brasil navegou em tempestades até então, mas agora, entendo que chegamos do pico disso tudo, que faz parte do mesmo bolo. 

O povo seguiu sendo fermento pra massa, e todo higienismo e preconceito passou a ser expresso até o seguinte momento sem o pudor de permanecer debaixo dos tapetes. 

A crise de identidade desse país é fomentada por isso, não é acaso o que vemos na música ou futebol, viramos corpos-estranhos da nossa própria terra. O Brasil se tornou a tão esperada locomotiva, que não sente, não expressa sua cultura com a devoção de uma benzedeira, que não é ou fará Guimarães Rosa. É o Brasil apenas das Memórias Póstumas de Brás Cubas. E tudo foi arquitetado pela burguesia ressentida pelo insulto das massas. Não nos reconhecemos em nada, estamos à beira de se tornar uma grande corporação de commodites, não somos mais o carnaval de outrora. 

O mesmo racismo colonial voltou à tona. O mesmo ódio voltou à tona, e não sei se teremos mais um símbolo de resistência e desacorrentamento que vimos resplandecer na displicência e coragem. O Brasil da negritude, capoeira e miscigenação, herança dos tempos de colônia (como resistência) precisou ser morto para o progresso internacional do nosso faminto vira-latismo. Passamos somente pelo anúncio do que pode ser o fim do maior símbolo de superação da história. E todo o descaso que presenciamos sobre a massa em detrimento do que a própria construiu, afirma o desmoronamento ético e moral da terra vermelha.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima