Foto: José Kalkbrenner – Museu da Imagem e Som do Paraná
1994
“Uma defesa ma-gis-tral de João Afonso! Num contra-ataque fulminante do time do Água Verde, Jofre bate firme, cruzado, à meia-altura. João Afonso voa e desvia com ponta dos dedos para o corner, num lance de grande beleza aqui no Durival de Britto.”
– Hein, vô? – O neto chama novamente. Se perguntava por que o avô encarava tão fixamente a fotografia. Ele é resgatado de uma imaginação profunda.
– Perdão, meu filho. É que eu lembro bem desse dia aqui. O que você tinha dito mesmo?
O neto também pousa o olhar sobre a foto. Um fotograma fosco, de um preto-e-branco amarelado pelo desgaste, mostra um goleiro flutuando no ar com o braço direito esticado. A bola, também suspensa no ar, parecia fugidia ao enquadramento.
– É você, vô?
– Sim, filho. Nesse dia aqui eu fechei o gol. Fiz, por baixo, dez grandes defesas iguais a essa aqui da foto. Foi o melhor jogo da minha vida. 16 de julho de 1964. Atlético Ferroviário um, Água Verde zero.
O neto ficou sem entender bem. Ainda não sabe bem como o futebol funciona, muito menos poderia compreender em um exemplo que utilizava dois clubes que não existem mais.
– E o Brasil, vô? O senhor já jogou nele?
– No Brasil… na Seleção Brasileira, você diz?
– É.
– Eh, eh. O vô nunca nem jogou profissional direito, filho. Era amador.
Nem seria preciso dizer que, para o menino, esta distinção era nula.
– E o senhor já jogou com o Pelé?
O avô não segura a risada.
– Nunca tive essa sorte. Quando ele veio jogar aqui, eu não era mais goleiro do clube – o avô inventou – mas alguns amigos do vô já jogaram contra ele.
– E ele era bom mesmo?
– Nossa… Aquele era o maior que já existiu. Bom, ele fez mais de mil gols, não é?
– Quando eu for jogador, vou fazer mil gols, milhões de gols. Vou fazer infinito de gols!
– Ah, ah, ah… nada. Você vai ser goleiro, igual ao vô.
1998
Após o terceiro gol decorrente de falha de Afonsinho, o ginásio veio abaixo. Xingamentos duros eram lançados ao pequeno goleiro. O treinador pediu para que os juízes abrissem uma exceção no regulamento para permitir a troca do goleiro. Alegando preocupação com o lado psicológico do menino, com custo conseguiu o direito de fazer a substituição, ato que seus colegas de comissão encararam com desagrado. Enquanto eles argumentavam que a sustentação da pressão é um aprendizado fundamental no amadurecimento de um jovem jogador, o treinador acreditava que um menino de 10 anos não merecia passar por uma situação tão extrema.
– Afonsinho, se liga no jogo! Isso aqui não é brincadeira. É um torneio oficial!
Afonsinho desatou a chorar.
– Você é um bom goleiro e mostrou isso. Mas pra ser profissional, tem que saber controlar o nervosismo. Se no salão você tá assim, imagina no campo?
– Já deixa esse menino por aqui mesmo – esbravejou um membro da comissão. Ele que procure outra coisa pra ele fazer.
2002
– E aí eu acordei com meu pai mandando o Lúcio lá praquele lugar depois que ele errou e entregou o gol pros ingleses! Mas depois o Ronaldinho Gaúcho meteu aquele golaço e a gente virou. Que sofrimento, hein, vô?
– Sofrimento. A Copa inteira sofreu. O jogo que menos sofreu foi hoje, a final.
– É verdade, né? Hoje pareceu até fácil.
Se aproxima um conhecido do avô.
– Como que vai, Seu João? Gostou ou não gostou da Seleção?
– Posso ser sincero? Não gostei. Não gostei mesmo. Ganhou, sim. Mas não tinha aquilo, não teve time pra…
– Não teve muita técnica, vô? – Arriscou Afonsinho.
– Não, técnica teve. Aliás, teve técnica demais pra nada de brilho, de beleza. Não é igual quando você tinha Gerson, Rivellino, Tostão, Pelé, todo mundo junto ali. Aquela época não se fazia nem esforço pra jogar.
– Hoje em dia a gente faz esforço é pra ver! – Comentou o outro.
– Ah, Dori, esse aqui é meu neto, Afonsinho.
– Pomba, mas um piá reforçado já! Nem sabia que era teu neto, achei que era teu amigo! Ah, ah, ah!
– Mas é também meu amigo! Companheiro de futebol de botão, de jogo no rádio e de comentários. Afonsinho, esse aqui é o Dori. Jogou bola. Foi ponteiro-direito do Atlético, do Britânia, do Palestra e jogou comigo no Ferroviário.
– Agora conte pro teu neto o quanto eu jogava!
– Olha, não jogou tanto no ataque quanto eu joguei no gol, mas jogou bem. Ponteiro daqueles com balanço.
– Mais ou menos que nem o Denílson hoje?
– Ah, eu joguei mais bola que o Denílson, muito mais. Afonso, conte pro guri que o Botafogo queria comprar meu passe pra eu ser substituto do Garrincha. O Garrincha saiu em 1965 e aí me telefonaram lá de General Severiano implorando pra mim por favor aceitar a proposta. Mas eu disse não, porque não era um desafio à minha altura! Aí então fiquei no Ferroviário.
O avô fazia o gesto indicando a falácia.
– Teu avô e eu fomos campeões do Paraná em 65 e 66 juntos. Eu já tava em fim de carreira.
– Isso aí é verdade, Afonsinho.
– E pra que time você torce, menino?
– Que pergunta! Torce pro time do avô dele, ora! O time que joga no Capanema. Ou jogava, pelo menos – atravessou o avô.
– Mas e o Atlético, hein? Bateu campeão ano passado!
– Dá nada! Continuo Tricolor. Mas achei legal o Atlético ganhar.
– Você sabe que o maior jogador da história do Atlético, chamado Barcímio Sicupira Júnior, jogou com a gente no Ferroviário? E eu ensinei ele a jogar bola! Antes disso, eu estava no Britânia, quando lá surgiu um menino chamado Dirceu Krüger, que depois foi o maior jogador da história do Coxa. Os dois maiores ídolos do estado fui eu que ensinei a jogar.
– Ô Dori, pare de encher o menino de história. Mas que sarna baiana!
Os três riram.
– Aquele tempo sim, hein, Afonso? Aquele tempo jogador era jogador.
– Nem fale. Tempo que goleiro defendia sem luva, no cuspe. Jogador de campo batia na bola com botina de madeira. Não era qualquer um que jogava.
– Você sabe, menino… Afonsinho, né? Igual teu avô. Você já ouviu falar de um jogador chamado Didi?
– Já, o vô falou dele algumas vezes.
– Você pense que ele inventou o chute com curva, chamado folha-seca, que bate com a parte de fora do pé e a bola vai assim… pense que ele inventou esse chute com uma bola pesada, quase o peso de uma bola de boliche!
– Ôrra! Sério isso?
– Bola de boliche ele tá exagerando… mas era pesada feito um melão – os três riram de novo.
2006
– Essa Copa tem tudo pra ser nossa, vô. Eu tô sentindo…
– Não sei, não. Não tô acreditando muito nesse tal quarteto mágico aí.
– Ôrra! Mas os caras dão espetáculo.
– Mais ou menos… de mágico mesmo ali só o Ronaldinho. E o quarteto pra ser mágico precisa que todos os quatro sejam.
– É verdade…
– Quarteto mágico pra mim era de setenta. Gerson, Roberto Rivellino, Tostão e Pelé, com Clodoaldo carregando o piano. Ou Paulo Roberto Falcão, Toninho Cerezo, Sócrates e Zico. Didi, Vavá, Garrincha e Pelé, com Zagallo correndo por todos. Aquilo lá que era talento.
– Vô, e o quarteto atual equivale a quem do passado?
– Ronaldinho, gosto tanto dele que não vou comparar com ninguém. Kaká pode ser o Enéas, da Portuguesa. Adriano é como o Roberto Vendaval. Robinho, deixa eu ver…
– Eu sei! O Robinho equivale àquele teu amigo.
– O Dori?
– Ele mesmo! – os dois riram.
– Ele inclusive faleceu mês passado.
– Poxa, vô. Que triste. Gostava dele.
– Do jeito que ele sabe inventar história, eu tive que esperar uma semana pra descobrir se ele tava falando a verdade. Como não retornou, acho que morreu mesmo.
– Se ele tivesse aqui, iria dizer que inventou a pedalada do Robinho?
– É bem capaz.
2010
– Imprensa esportiva, é? Vai narrar? Igual ao Osmar Santos e Fiori Gigliotti?
– Ah, ah! Não, vô. Eu sou fotógrafo. Fico atrás do gol pra tirar fotos iguais àquela sua.
– Que barato, filho. Não esqueça de dar de presente as fotos para os goleiros, hein? Isso aí é a história deles.
– Com toda a certeza, vô.
– E como tá o trabalho?
– Corrido, mas muito legal. Um dia eu me torno um figurão da imprensa e aí levo o senhor como convidado pra ver os jogos.
– Aí eu vou ficar contente!
– E a Copa esse ano, vô? O que acha que vai dar?
– Ih, eu já não tava nem mais me lembrando. Nem sei ao certo quem é que vai, quem não vai, esse Dunga… como jogador foi bom, agora como técnico…
– Tem os dois craques do Santos, né? Neymar e Ganso. Se ele levar os dois, junto a Kaká, Ronaldinho, teremos talento suficiente.
– Tomara…
2014
– Uma pena que só uns joguinhos ruins caíram aqui na cidade, não é? O Brasil eu já nem digo, mas pelo menos podia vir uma Itália, uma Laranja Mecânica, um Uruguai…
– Ah, vô, mas é futebol! Futebol hoje em dia tá muito nivelado.
– Se você tá dizendo, eu acredito.
Afonsinho fez o credenciamento e conduziu o avô à tribuna. O estádio estava cheio de equatorianos incandescidos pela sua seleção.
– O Equador joga de amarelo, vô. Dá pro senhor fingir que é a Seleção Brasileira. Pelo menos até o jogo começar, depois fica difícil! Ah, ah, ah!
– Ah, Afonsinho, mas tudo aqui já valeu a pena. E não sei não, no meu tempo o Equador batia um bolão.
– Hoje bate mais ainda! As seleções menores vêm em grande evolução.
– Equador contra quem, mesmo?
– Honduras.
– Ih, vai dar um vareio. Vai passar gol até por de dentro do zóio, que nem dizia antigamente.
– Vou indo, vô.
– Vai aonde? Não vai ficar aqui vendo o jogo comigo?
– Eu tenho que trabalhar! Fazer as fotos da partida!
– É mesmo, já tava me esquecendo, eh, eh.
– Vou ficar atrás daquele gol ali. Numa dessa o senhor pode me enxergar daqui.
– Tire bastante foto dos goleiros, hein? E não esqueça…
– De mandar as fotos para eles? Hoje em dia nem precisa, vô. As fotos ficam pra sempre.
– É, mas mande mesmo assim. Pra um goleiro, faz diferença…