Derretimento – Uma introdução a “GeoTáticas”

Um texto de Jamie Hamilton & Gorka Melchor
Sol

We are ultimately nothing but an effect of the sun

Georges Bataille, Œuvres Complètes, 1970; VII 10

Não há uma razão objetiva para que o futebol considerado superior deva acontecer na Europa. Mas o fato de que isso ocorre tem um efeito sísmico — embora curiosamente ignorado — sobre a natureza do jogo global. A Europa é, de modo geral, um ecossistema temperado. As condições climáticas oferecem temperaturas mais amenas, e essa verdade ecológica fundamental molda a forma como o futebol europeu — e, por consequência, o futebol global — é percebido e jogado.

O futebol exige um tipo específico de corrida: esforços repetidos de alta intensidade realizados em padrões caóticos e reativos, com rápidas mudanças de direção ocorrendo muitas vezes sob condições de estresse extremo para a tomada de decisão. Não se trata apenas de um sprint em linha reta ou de uma cadência elegante. É um trabalho irregular e intermitente de acelerações, desacelerações e recálculos posicionais. A fisiologia exigida é específica e implacável.

E é aqui que o clima se torna decisivo. Mesmo atletas geneticamente predispostos a se destacar em disciplinas de corrida, como sprints ou maratonas, têm desempenho melhor em condições mais frescas, com ar rico em oxigênio e brisas. O corpo simplesmente se recupera mais rápido, regula melhor o calor e mantém o rendimento muscular de forma mais sustentável. A vantagem genética não é imune aos limites ambientais — mesmo a biologia atlética mais talentosa fraqueja sob o brilho enlouquecedor do sol. No futebol, isso significa que, em regiões muito quentes, as próprias lógicas do jogo devem ser diferentes daquelas prevalentes em climas mais frescos. Não porque os jogadores sejam menos capazes, mas porque o contexto torna certos modos de intensidade ineficientes — até contraproducentes.

Mapa climático global

O ponto crucial aqui não é que o clima temperado da Europa tenha tornado seu futebol superior. Na verdade, é que a dominação material da Europa — sua riqueza histórica, infraestrutura e controle sobre a mídia — permitiu que ela projetasse sua versão do futebol para o resto do mundo. As condições mais amenas não foram a causa da supremacia europeia; elas simplesmente eram o pano de fundo contra o qual o futebol europeu se desenvolveu. Uma vez que a Europa se tornou o centro econômico e cultural do mundo futebolístico, as qualidades que seu clima favorecia — marcação alta, corrida constante, transições rápidas — foram elevadas ao status de virtudes universais.

É isso que estamos tentando desvendar. A ideia global do que constitui um futebol “moderno”, “inteligente” ou “intenso” não é neutra — ela é contingente. É moldada pelo fato de que as ligas mais assistidas, os técnicos mais influentes e as instituições mais poderosas surgiram de uma parte específica do mundo, com condições específicas. Se o fluxo de capital e poder de transmissão tivesse se concentrado no Brasil, na Colômbia, no México ou na Nigéria ao longo do último século, então estaríamos trabalhando com um vocabulário futebolístico completamente diferente. Estaríamos elogiando traços totalmente distintos. Um jogador andando em campo não seria visto como passivo, mas como atento.

Mas esse cenário alternativo nunca se concretizou. Em vez disso, o futebol de regiões como América do Sul e África foi sistematicamente subordinado. Seu talento foi exportado, suas ligas esvaziadas de prestígio, e suas contribuições estéticas muitas vezes romantizadas, mas raramente estudadas com a mesma seriedade dos sistemas europeus. O que restou foi uma distorção sutil na linguagem da análise futebolística: um viés estrutural que torna certas ações visíveis e outras invisíveis. A inteligência tática, sob esse prisma, é medida pelo quanto ela espelha a norma europeia. Desvios são exotizados, estetizados ou descartados.

No futebol europeu moderno, as qualidades definidas pela “fisicalidade” tornam-se ampliadas. O nível mínimo aceitável de sprints de alta intensidade e cobertura de campo cresce a uma taxa alarmante. Jogadores que ficam abaixo desses limiares crescentes podem não ser considerados capazes de alto rendimento, apesar de demonstrarem genialidade em interpretação tática individual. Os critérios de seleção são definidos pelo que as condições ambientais locais permitem. Isso não quer dizer que times ou jogadores de países como o Brasil não corram, pressionem ou acelerem — é claro que fazem. A diferença está em como a qualidade dos jogadores é percebida e avaliada. A corporação austríaca de energéticos Red Bull desenhou um sistema tático inteiro baseado na “armação” dos padrões de sprint sem bola e gatilhos de pressão. São capacidades facilmente rastreáveis, mensuráveis e quantificáveis por qualquer um com a tecnologia adequada. Em breve, a IA fará essa contabilidade. O que torna um jogador “bom” está sendo cada vez mais visto por uma lente física e reducionista.

Mas esse não é um argumento nostálgico. É metodológico. Se quisermos entender o futebol como um fenômeno global, precisamos parar de tratar o futebol europeu como seu padrão invisível. Precisamos perguntar não apenas quais táticas funcionam, mas por que certas táticas são vistas como inteligentes. O objetivo aqui não é substituir um centro hegemônico por outro, mas reconhecer que aquilo que chamamos de “análise” nunca é apenas observação, mas interpretação — moldada por história, dinheiro, poder e clima. É isso que o conceito de GeoTática tenta resgatar: uma forma de enxergar o futebol que leva em conta onde ele é jogado, como ele é jogado e quem decide o que conta como válido.

É aqui que a miopia metodológica do discurso contemporâneo sobre futebol se torna mais evidente. Basta ouvir as reclamações recorrentes de técnicos e comentaristas europeus durante torneios internacionais realizados fora da Europa: “está muito quente”, “as condições não são ideais”, “não dá para jogar futebol de verdade nesse clima”. Mas isso não é climatologia — é dogma. É a crença não examinada de que a única versão válida de futebol é aquela forjada em temperaturas mais amenas, em centros de treinamento no norte, sob regimes físicos regimentados. Essas lamúrias, na verdade, não revelam um problema meteorológico, mas um fracasso conceitual: a incapacidade, ou recusa, de adaptar métodos táticos a contextos ambientais distintos.

Porque a verdade é simples: futebol é perfeitamente jogável em climas mais quentes. Ele só não é tão eficiente no estilo de esforço físico crescente. Ou mais precisamente: não é tão eficiente (especialmente ao longo de um calendário exaustivo) jogar com base em pressão constante, transições em alta velocidade e noventa minutos de sprints intermitentes quando o ar é denso, a umidade te encharca e o gramado está queimando ao sol. Mas ao invés de reconhecer isso como uma limitação do próprio método, muitos simplesmente culpam o clima. E ao fazer isso, achatam o jogo, recusando-se a reconhecer as diversas possibilidades táticas que existem além de seus próprios modelos herdados.

O futebol sul-americano, por exemplo, há muito aprendeu a jogar com o calor, e não contra ele. Desenvolveu uma abordagem que aceita o ritmo, que compreende o uso das fases do jogo como respiração, que sabe quando não correr. Seus jogadores aprendem a gerir o tempo, não apenas o espaço. Carregam uma inteligência de adaptação, de escolher os momentos, de disfarçar intenções. A lógica tática aqui não se baseia em volume, mas em tempo. Não em intensidade como repetição, mas como surpresa. No calor, o jogador que anda pode ser mais sábio que o que corre.

Nessas condições escaldantes, os mecanismos definidores do futebol europeu moderno começam a falhar. A pressão se torna porosa, não por desenho tático, mas por inevitabilidade fisiológica. Os automatismos sincronizados — movimentos cuidadosamente programados que dependem de energia constante e gatilhos mentais padronizados — perdem a precisão. As engrenagens da máquina derretem. O que antes era lido como inteligência coletiva se revela como dependência metabólica. E quando esse excedente energético colapsa, o sistema exagera. Sua própria lógica — o fetiche do movimento constante, da produção física sustentada — se volta contra si mesma. O que antes significava ordem e controle passa a acelerar rumo ao colapso.

E assim, no lugar desse excedente em colapso, algo novo precisa emergir. Um futebol de seleção, não de repetição. Um futebol de hesitação, não de insistência. O jogo passa a não ser mais sobre quantas ações podem ser produzidas, mas sobre quão bem se escolhe quando não agir. Astúcia, contenção, ritmo: essa se torna a nova partitura do controle. Jogar em calor extremo é abandonar a fantasia da aceleração infinita e entrar em um reino onde cada explosão precisa ser justificada, cada corrida pesada contra seu custo. Isso não é um déficit. É outro tipo de inteligência. Um que vê na quietude uma oportunidade, e na lentidão, uma estratégia. Um que, se bem compreendido, pode reorientar o próprio significado de intensidade.

O modelo europeu frequentemente esquece — ou nega — que o futebol ainda é jogado por corpos, não por máquinas. Seus automatismos táticos, estruturas de pressão e sequências coreografadas são todos construídos sobre a suposição de produção repetível: de que os jogadores podem reproduzir os mesmos padrões com precisão idêntica, independentemente do tempo, da fadiga ou do clima. Mas isso é uma fantasia de abstração técnica, um sonho de replicação perfeita que colapsa diante do calor, da exaustão e dos limites humanos. Marcelo Bielsa, talvez o exemplo mais claro dessa lógica moderna, disse certa vez: “Se os jogadores fossem robôs, eu nunca perderia.” O problema, ele confessou, está na carne. Nos ritmos imprevisíveis da respiração, desidratação, hesitação, falha.

E aqui devemos ser honestos sobre o corpo: ele vaza. Ele desperdiça. Ele se quebra. A utopia de Bielsa de um futebol de desperdício zero e máxima eficiência se desfaz no momento em que reconhecemos o que Georges Bataille chamou de economia geral: um entendimento da vida não como um sistema de conservação e troca racional, mas como um de excesso necessário, sacrifício, inutilidade e perda improdutiva. O corpo, nesse sentido, não é um recurso a ser otimizado, mas uma fornalha que consome e expele. Ele sua, tem cãibras, incha, tropeça. Precisa de comida e oxigênio não para performar perfeitamente, mas apenas para sobreviver ao ato de performar. E quando é levado ao limite, ele não transcende — ele excreta. A fadiga não é um problema tático, é uma inevitabilidade termodinâmica. Essa é a condição que todo sistema tenta reprimir — e que o calor expõe de forma mais violenta.

Sob temperaturas abrasadoras, o corpo não pode se esconder. O organismo afirma seu desperdício. A máquina tática começa a escorregar no próprio óleo. Cada movimento planejado ganha atrito. Cada jogador torna-se uma figura batailleana: não um soldado numa guerra de sistemas, mas uma boca, um estômago, um ânus. Uma entidade que produz resíduos, gerencia falhas, tenta cronometrar o esforço entre o colapso e a necessidade. O futebol no calor não é um problema a ser resolvido. É um limite a ser aceito. E, uma vez aceito, algo novo se torna possível: um estilo de jogo que não finge que o desperdício pode ser eliminado, mas que constrói ritmo e contenção em torno do fato de que ele nunca será.

O calor torna a carne visível. Ele desnuda o futebol de suas ilusões mecânicas e o devolve ao domínio da cognição encarnada. As decisões não são tomadas por esquemas táticos, mas por sensação, tempo e sobrevivência. Quando o corpo não pode correr para sempre, ele precisa pensar de outro modo. Não em maior cobertura, mas em intuição mais profunda. Nesse espaço, o futebol não colapsa — ele se transforma. A suposta impossibilidade de pressionar e jogar em ritmo alto em climas escaldantes não é uma falha, mas uma bifurcação no caminho. Um caminho leva à exaustão, ao mau funcionamento e à arrogância tática. O outro leva a outro tipo de inteligência: nascida do ritmo, do contexto e do reconhecimento de que a estratégia deve emergir do corpo — e não ser imposta a ele.

Portanto, o fracasso não é climático — é metodológico. Não é o calor que inviabiliza o futebol. É a recusa dos que estão no poder em reimaginar o jogo além de seus próprios quadros. E essa recusa tem consequências: naturaliza um modelo de futebol como superior e interpreta todos os outros como falhos. A GeoTática, então, não se trata de celebrar a diferença por si só. Trata-se de revelar as formas de futebol que foram marginalizadas por uma análise que não consegue enxergar além da própria sombra. Porque outro futebol não é apenas possível — ele já está aqui, sempre esteve. A única questão é se estamos dispostos a aprender com ele.

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