Dinheiro na mão é vendaval

Lula e Memphis Depay

            Diz o mestre Juca Kfouri que futebol e política se misturam feito água e sabão. Logo, a rara leitora e o raro leitor que guardam alguma estima pelo esporte bretão hão de se atentar ao noticiário mais recente de Brasília. E, não, esta coluna não é sobre uma partida disputada no Mané Garrincha, mas sobre a regulamentação das bets.

            Finalmente, o Governo Lula parece ter se dado conta do tamanho do desastre social que representam os jogos de azar, hoje capitaneados pelas apostas esportivas. Legalmente, há uma distinção entre os dois conceitos: o primeiro, que envolve atividades como cassinos e o jogo do bicho, é proibido desde 1946, via decreto do então presidente Eurico Gaspar Dutra. Por seu turno, a permissão para o segundo foi sancionada em 2018, por Michel Temer, sob a tipificação de “loteria de prognóstico”.  Em tese, a diferença é a de que, nessa categoria, o apostador não se encontra à mercê apenas da sorte, pois também dispõe de dados estatísticos e técnicos para embasar a jogatina – no entanto, isso não passa de puro eufemismo. Fato é que os palpites virtuais são tão (ou até mais) nocivos e viciantes quanto as velhas máquinas de caça-níquel, a tal ponto que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e parlamentares da situação já se articulam para mitigar seus efeitos.

            Para dimensionar o tamanho da celeuma, eis alguns números: afirma o Banco Itaú que, entre junho de 2023 e junho de 2024, os brasileiros apostaram R$ 68,2 bilhões e sacaram R$ 44,3 bilhões, resultando em uma perda de R$ 23,9 bilhões. Só no último mês de agosto, beneficiários do Bolsa Família enviaram, via Pix, mais de R$ 3 bilhões aos sites de palpites, conforme o Banco Central. A mesma fonte também aponta que a mediana dos gastos de pessoas acima de 60 anos com apostas é de mais de 3 mil reais por mês. O Banco Santander estima um impacto negativo anual de 0,6% a 2,1% no PIB brasileiro, causado pelos jogos de azar virtuais. Também por culpa destes, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) identificou cerca de 1,3 milhão de novos inadimplentes, no primeiro semestre de 2024. Além disso, uma pesquisa da Educa Insight constatou que 35% dos estudantes brasileiros não iniciaram o curso superior em 2024, porque perderam o dinheiro que investiriam em seus diplomas nos pitacos online. Segundo a Agência Brasil, nos primeiros sete meses de 2024, mais de 25 milhões de pessoas passaram a apostar no país. Para se ter uma ideia, o vírus da Covid-19 levou 11 meses para infectar o mesmo número de pessoas por aqui. Não à toa, a ministra Nísia Trindade fala em uma pandemia de vício em cassinos virtuais. Na mesma toada, a revista científica The Lancet declarou que as bets representam uma ameaça à saúde pública global.

            Ora, e o que o futebol tem a ver com isso? Tudo. Antes de mais nada, trata-se do esporte mais popular do Brasil e, logicamente, do maior destino dos pitacos. Além disso, não nos esqueçamos da Operação Penalidade Máxima, conduzida pelo Ministério Público de Goiás, que ensejou a punição, junto ao STJD, de 22 jogadores – cinco dos quais foram permanentemente banidos do esporte – por envolvimento em esquemas ilegais de manipulação de pênaltis e cartões. Por fim (e mais importante), à exceção do Cuiabá, todos os demais 39 clubes das Séries A e B do Brasileirão são patrocinados por casas de aposta. Como se isso não bastasse, boa parte dos acordos firmados nos últimos dois anos pelas equipes atingiram valores nunca vistos. A Revista Exame estima que, somente neste ano, os sites de jogos de azar destinaram mais de R$ 630 milhões aos times da elite do futebol nacional.

            É justamente a isso que devemos nos atentar. Se parece improvável que os palpites online voltem à clandestinidade, torna-se cada vez mais maduro o debate acerca da limitação – ou mesmo da proibição total – da publicidade desse tipo de negócio. A deputada federal Gleisi Hoffmann (PT-PR) protocolou um projeto de lei para vedar, em todo território nacional, o marketing das chamadas apostas de quota fixa, como oficialmente são denominadas as “fezinhas” esportivas. Não se trata aqui de uma parlamentar qualquer, mas sim da presidenta do Partido dos Trabalhadores, de Lula, que foi ainda mais longe: se a regulamentação não funcionar, as bets serão novamente proibidas em território nacional.

            Caso qualquer uma de tais medidas se concretize, o futebol brasileiro sofrerá indelével impacto. Não apenas os clubes, mas também o amplo ecossistema que lhes orbita: desde as poderosas emissoras de televisão, passando pelos novos canais de streaming ou pelas tradicionais estações de rádio, até os mais mirrados e chinfrins veículos independentes de torcedores, todos sofrerão um enorme baque. A situação lembra o fim dos patrocínios da Caixa Econômica Federal, que, de uma vez só, deixou de estampar sua marca na camisa de ao menos 25 equipes em 2019. Dessa vez, contudo, o estrago tende a ser muito maior: primeiro, porque os valores são bem mais significativos; segundo, porque o corte atingiria muito mais equipes; terceiro, porque não se restringiria a elas.

            Até o momento, a cartolagem não aparenta grande concernimento. Aguardemos até o assunto esquentar no Congresso Nacional. Não restam dúvidas de que os dirigentes do mundo da bola se juntarão ao exército de lobistas que as casas de apostas têm à disposição. Será, talvez, a ocasião de maior unidade já vista no futebol brasileiro: inimigos mortais, John Textor e Leila Pereira militarão fraternalmente lado a lado; Pedrinho e Augusto Melo, recentemente em litígio contra as mudanças de calendário feitas pela CBF, dividirão felizes as trincheiras com Ednaldo Rodrigues; não haverá mais Fla-Flu nem Re-Pa nem San-São, tampouco brados de “Globo Lixo”, disputas entre Fabiano Baldasso e Farid Germano ou posts de cancelamento à Cazé TV. Haverá um amálgama geral em torno da grande causa: preservar o direito das centenas de abnegadas casas de aposta de gastar os quase R$ 9 bilhões reservados para suas propagandas.

            Contra a turba de passapanistas comprados, erige-se a sociedade civil organizada, por meio de movimentos sociais, ONGs e até mesmo uma série de personalidades públicas, como as que o Instituto Conhecimento Liberta (ICL) reuniu em uma excelente campanha contra a publicidade dos mantenedores de palpites eletrônicos. Não vem de nenhum desses grupos, porém, a principal oposição às bets, mas sim de – à semelhança delas – outro gigante capitalista: o setor de comércio e serviços. Responsável por quase 70% do PIB brasileiro, O ramo, afinal, é o principal afetado pelo dinheiro que evapora nos pitacos mal-dados. Ao desviarem o curto orçamento de que dispõem para o vício, os consumidores deixam de comprar roupas, realizar procedimentos estéticos, ir a restaurantes com a família, assistir a shows musicais, assim por diante. Todo o consumo considerado não essencial passa a ser substituído pela adicção em jogos de azar, e um montante considerável que ajudaria a manter a economia aquecida é desviado para empresas que nada produzem, apenas usurpam como sanguessugas o suado salário dos trabalhadores. Nesse sentido, representantes de importantes redes do varejo nacional já ensaiam os primeiros movimentos junto ao Congresso Nacional para levar a cabo as restrições aos seus desleais concorrentes. 

Os clubes, enquanto fornecedores de um serviço, deveriam outrossim refletir sob esse prisma. Nenhuma outra atividade econômica concorre mais diretamente com as bets do que o próprio futebol profissional.  Por mais fanático que seja, o torcedor – cliente principal tanto das agremiações quanto das casas de aposta – não deixará de comer nem de pagar aluguel se se viciar nos palpites; em vez disso, será obrigado a cancelar o plano de sócio, a não adquirir as camisas e os mais variados produtos oficiais, a não assinar o pay-per-view, enfim, a não gastar mais um centavo com seu time do coração. Para além da ilusão de que ainda há algum resquício responsabilidade social no esporte, o argumento viável para convencer a cartolagem a impor freios nos amados anunciantes é o de que, caso nenhuma providência seja tomada, sobrará apenas o patrocínio como fonte de receita; todas as demais amargarão sérios abalos.

Míopes, todavia, os gestores do ludopédio brasileiro dificilmente vislumbram esse desastroso cenário que se avizinha. Preferem, em vez disso, cegar-se com o vultoso mecenato das bets. Repleto de dívidas, o Corinthians resolveu gastar os mais de R$ 57 milhões que recebeu da patrocinadora integralmente com o salário do atacante Memphis. O pagamento da Arena, débito que mais assombra o alvinegro paulistano, ficou a cargo de sua Fiel Torcida. Resta saber se o bando de loucos terá grana para se acertar com os credores de Itaquera ou se as apostas corroerão toda a sua solidariedade.

            Aos quarenta e cinco do segundo tempo, clubes, torcedores, jogadores, todo mundo quer o dinheiro fácil prometido pelos jogos de azar. Basta ter sorte. Por um lado, às equipes configura um péssimo negócio se alimentar do vício de seus próprios fãs e da corrupção de seus próprios atletas. Por outro, aos dirigentes pior seria abrir mão dos patrocínios que arremessam arquibaldos e geraldinos na profunda miséria. Mais que um dilema, tal conjuntura representa um intricado conflito de interesses. E, em sendo o l’argent a razão de tão irracional fratricídio, ninguém melhor que Paulinho da Viola para resumir a ópera:

“Mas é preciso viver

e viver não é brincadeira, não!

Quando o jeito é se virar,

cada um trata de si,

irmão desconhece irmão, e aí

dinheiro na mão é vendaval

dinheiro na mão é solução

e solidão…”

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