O que é analisar o jogo pt 2: duvidar sem deixar de crer.

Baggio cabisbaixo após perder o pênalti contra o Brasil em 1994

“Para ser espectador é preciso aceitar crer no que vemos; e para sê-lo ainda mais, seria preciso começar a duvidar – sem deixar de crer.”

– Jean-Louis Comolli, A inocência perdida.

Duvidar sem deixar de crer

Como Frampton apontava, a fotografia, para além do registro do real, é linguagem: uma possibilidade de reorganizar o real poeticamente, politicamente ou dramaticamente. Nesse aspecto, a fotografia encontra, no herdeiro direto das antigas batalhas do Coliseu, infinitas possibilidades. O futebol é um dispositivo onde a tragédia e o triunfo contrastam com enorme frequência. Como na imagem de Baggio, desolado, com os brasileiros em êxtase ao fundo. O mesmo ato (o pênalti batido por Baggio) desencadeia reações distintas, antagônicas: de um lado, a vergonha e o vazio; do outro, a glória. O olhar de Omar Torres está focado não nos vencedores, mas no derrotado (sim, o derrotado, já que a imagem escolhe isolar Baggio dos demais italianos). A rede enclausura não somente Baggio — como se fosse uma espécie de prisão para ele — mas tudo que está em tela. É nesse aspecto que a verdade do futebol mora nessa fotografia: um espaço onde a dor, a tragédia, a alegria e o êxtase nascem de um mesmo gesto.

Mais do que isso, é importante observar que existe uma forma pela qual os dispositivos mediadores do nosso recebimento do jogo (nossos olhos, os olhos alheios, as câmeras) escolhem organizar ou reorganizar aquilo que é visto, lido ou escutado.

Não que esse papel da mídia e do mercado em mediar a experiência do espectador seja um fato novo, mas, na era da interconectividade e das redes sociais, vivemos o momento em que, mais do que nunca, a experiência direta é substituída por representações espetaculares. Atualmente, com o algoritmo e a monetização, essas representações circulam em maior velocidade e, por consequência, geram lucro (simbólico ou financeiro) quase que em tempo real.

Essa transformação tem como consequência uma perseguição incessante pelo engajamento. Assim, o jogo é substituído por fragmentos viralizáveis; o torcedor deixa de ser um espectador para ser transformado em um consumidor desses fragmentos; e a crônica esportiva deixa de ter um papel crítico para se transformar em agente — não do jogo, mas do espetáculo em torno dele.

É nesse cenário que emerge uma tendência crescente: a de pseudoanálises que falam de futebol sem jamais tocá-lo. Na era em que o espetáculo (no sentido debordiano) é cada vez mais presente e dominante, esse afastamento do jogo se torna não apenas sintoma, mas também estratégia.

O jogo — e não a análise — é o objeto, e, portanto, o cerne das possibilidades. Cabe à análise extrair ou organizar essas possibilidades, sem trair o objeto. Quando invertemos essa lógica — quando passamos a “analisar” por cima do objeto —, o ato perde todo e qualquer sentido. Pelo menos no que tange à sua concretude.

É justamente por isso que, no espetáculo mercadológico e algorítmico em torno dele, o jogo deixa de ser o cerne e passa a ser o pretexto, o plano de fundo. Para que, com os mais variados objetivos (em sua maioria, capitalizantes), ele passe a ser palco de performances.

É nesse palco que atuam indivíduos a quem não interessam o pensamento, a crítica e a análise. É por esse motivo que repórteres fazem perguntas que pouco têm a ver com o jogo; que debates de mesa-redonda falam sobre tudo que não seja o jogo e seus desdobramentos; e que vemos muitas figuras de notoriedade assumirem um comportamento acrítico, infantil e idiotizado nas redes sociais.

Esse mesmo comportamento se espalha por outros perfis: tornaram-se comuns os “influencers” de torcida — em muitos casos, perfis de conteúdo completamente voltado para o engajamento, para o assunto do momento —, figuras que, lamentavelmente, ganham notoriedade e influência no YouTube e nas redes sociais.

E se, como aponto no primeiro texto, é nesse momento de pobreza de pensamento e reflexão que uma postura crítica se faz extremamente necessária, alguns dos que teoricamente poderiam ser frentes nesse movimento tornam-se adeptos dessa cultura.

Não é incomum vermos, pelas redes sociais, perfis de supostos jornalistas com uma proximidade assustadora com páginas feitas por e para o algoritmo. Nesse aspecto, lutar contra a crítica (não confundir com criticar de volta — que é o que deveria ser feito) se torna uma atividade central.

E aí, acredite se quiser, as mesmas figuras que frequentemente citam Eduardo Galeano, César Luis Menotti, Tostão e Nelson Rodrigues nas suas redes sociais — figuras que sofreram a fritura mercadológica apontada por Barthes e, infelizmente, se tornaram produtos para as performances alheias — também ironizam, ridicularizam e se colocam acima de debates relevantes dentro de espaços de conhecimento do jogo (espaços que, por óbvio, não os interessam).

César Luis Menotti

É evidente que não devemos ignorar o fato de que várias dessas figuras têm algum conglomerado ou outro tipo de empresa por trás — o que pode ir desde redes de TV por assinatura americanas que fazem, explicitamente, censura jornalística, até casas de apostas e outros meios de extrair lucro da espetacularização do jogo.

Se eu vendo Big Mac, certamente não tenho críticas a fazer ao McDonald’s. Nesse caso, a análise oferecida por esses veículos pode, na verdade, não ser análise alguma, e sim comentários esdrúxulos que servem não ao jogo, mas ao algoritmo e ao mercado. O tipo de coisa que não precisa ser averiguada no jogo para ser dita — afinal, antes mesmo de se assistir ao jogo, já se sabe tudo o que será dito. Como qualquer outro agente publicitário, a função desse tipo de indivíduo é a de promover a manutenção do valor simbólico do produto que promovem.

Então, cabe àqueles que se propõem a pensar criticamente o futebol — e fomentar esse pensamento — a compreensão de que isso só será possível abandonando a passividade, os ideais de “pureza” e aquilo que eu gosto de chamar de “jogo ideal” (o jogo que acontece não na prática, mas no imaginário), e abraçar o futebol com suas contradições e seus limites, sem deixar de ser sensível ao campo simbólico, lúdico e estético.

Nesse sentido, olhar para o passado pode nos ajudar a cultivar essa sensibilidade. Nas imagens do passado (que nunca foi ideal ou perfeito), vemos períodos em que o contato entre o espectador e o futebol era mais direto e, portanto, se apresentavam mais claramente as possibilidades de análises e críticas sensíveis quanto ao objeto.

Essas imagens podem gerar uma expectativa permanentemente frustrada: a de estar nelas — ou, melhor dizendo, a de estar naqueles períodos. Mas, se enxergarmos essas imagens para além desse desejo — se aceitarmos que agora são registros de um momento já morto e, portanto, aceitarmos a impossibilidade de estar neles —, veremos que, para além disso, elas são um lembrete: de que ali existiam outras disputas simbólicas e culturais, e de que a sensibilidade é possível em meio a esses conflitos.

E assim desenvolveremos a capacidade de reconhecer e criar as possibilidades de sensibilizar o jogo mesmo diante do panorama atual.

Crianças jogando bola

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