Com as aspas do Guardiola associando a forma do Fluminense de jogar ao que ele entende como estilo de jogo brasileiro, o assunto voltou a tomar conta da rede. “Não existe um jeito brasileiro de jogar, porque o Brasil é multicultural”…Vamos tentar sair das explicações meramente táticas para falar disso? Decidi tomar um tempo e trazer quatro textos para falarmos de cultura x sociedade x futebol:
1. CULTURAS E SUBCULTURAS
O principal argumento de quem é contra a existência de uma identidade cultural de jogo brasileira é o fato do país ser um conjunto étnico cultural enorme e difícil de ser definido em uma coisa só.
Observar uma cultura, é entender que ela pode ser interpretada como um conjunto de várias outras, porque toda cultura, independente do âmbito e da dimensão, vai ter as suas subculturas, afinal, o indivíduo sai de algum lugar e se pluraliza nas próprias experiências individuais dentro da sociedade.
O que quero dizer com isso?
Vocês concordam que existe uma cultura nordestina? Quando falo disso, uma identidade imagética vem na nossa mente. Porém, Maranhão, Pernambuco e Bahia possuem hábitos culturais diferentes e particulares dentro de uma mesma cultura mais abrangente.
Um amigo deu o exemplo do cuscuz, típico prato nordestino, internalizado fora do país como um prato típico brasileiro. O que é do Nordeste, é do Brasil, e cada estado, cidade e até casa, pessoa, vai ter o seu jeitinho de preparar o cuscuz. Existe até o cuscuz paulista, pode acreditar?
No futebol, existe uma perspectiva do que é a cultura sul-americana. Mas Brasil, Argentina e Uruguai têm suas particularidades. Existe uma do que é futebol brasileiro. Mas Sul, Sudeste e Nordeste têm suas particularidades. Existe uma do que é futebol nordestino. Mas Pernambuco, Bahia e Rio Grande do Norte têm suas particularidades. Existe uma do que é futebol potiguar. Mas Natal, Mossoró e Currais Novos têm suas particularidades. E aqui partimos para bairros, famílias e indivíduos. A pluralidade cultural não anula que há denominadores comuns que colocam diferentes desenvolvimentos culturais dentro de um eixo que os engloba.
A partir daqui, devemos discutir como uma cultura atravessa o futebol e o que raios tem a ver.
2. CULTURA E SOCIEDADE BRASILEIRA
É possível a gente chegar a uma convergência das várias culturas que se formaram aos seus moldes no Brasil em que vivemos, a ponto de transparecer na expressão do futebol?
A sociedade brasileira, como nação, se desenvolve a partir das diferenças. Se desenvolve nos conflitos étnico-culturais, geopolíticos, socioeconômicos e requer sempre uma observação de convergência dentro da divergência.
O menino brasileiro que sonhou ser jogador no futebol cresceu num país que sempre buscou a expressão artística como forma de se mostrar ao mundo e de sobreviver, independente de onde estivesse.
Essa expressão artística está na música, na culinária, na arquitetura, na pintura, no cinema, no teatro e, dentre vários outros cenários, no futebol. Todos esses cenários possuem multiculturalidade e diferenças de região para região, mas todos são parte de um Brasil só, que se desenvolveu a partir de alguns princípios que os tornam Brasil.
Autonomia e adaptação.
O Brasileiro sobrevive na sociedade se adaptando às constantes mudanças políticas abruptas da nossa precoce história como sociedade, às mudanças econômicas, de moeda, de educação e diversos outros pontos de responsabilidade do Estado.
Para se adaptar, sobreviver e se expressar, o brasileiro sempre mostrou criatividade. Por isso a gente é o país que mais conseguiu monetizar com máscaras personalizadas durante a pandemia. Quem não teve sua máscara de time ou com florezinhas? Isso é muito Brasil.
Da autonomia, da capacidade de existir através de si, do que se é, o Brasileiro sempre conseguiu se destacar e chamar a atenção, gerando uma autenticidade reconhecida mundialmente, inclusive por causa do futebol.
Independente do nosso sistema político e de quem esteja governando o país, o brasileiro gosta da sensação de autonomia e da liberdade que lhe é dada para se expressar, ser o que é e ganhar o seu dinheiro.
Há um denominador comum? É difícil dizer, mas eu iria por autonomia, liberdade, criatividade e capacidade de adaptação.
Isso tudo tem a ver com o fato de falarmos a mesma língua, independente de gírias locais, de seguirmos a mesma base legislativa, de estudarmos a mesma história, dentro do mesmo sistema educacional e de sermos impactados pelo mesma sistema econômico.
Independente dos comportamentos de manada, o brasileiro é muito particular e julga o outro a partir da própria perspectiva, inclusive moral. O brasileiro tem sua própria autenticidade. Somos um conjunto de várias diferenças.
O Brasil é plural, mas ainda é Brasil.
3. A IDENTIDADE BRASILEIRA DE FUTEBOL
Autonomia e adaptação. A partir disso, liberdade e criatividade.
Entender que essas características essenciais vão muito além da tática e de qualquer ideia de jogo, permite que a gente saia do óbvio do “não existe um estilo de jogo Brasileiro”. Mas afinal, se existe, como se constrói e se entende?
Pergunte no mundo a fora, para um torcedor coreano, para um jornalista escocês e para Pep Guardiola, o que eles entendem como futebol brasileiro. O treinador deu uma explicação tática, talvez alguns irão entender como criativo, vistoso, diferente, com muito drible. A visão também pode ser negativa, com simulações, malandragem, engano ou desorganização.
De toda forma, existe uma imagem do futebol brasileiro lá fora e foi construída através da globalização e principalmente das Copas do Mundo, quando o futebol é mais visto e falado pelo planeta inteiro.
Se observarmos cada uma das seleções brasileiras campeãs, vamos ver diferenças táticas e particularidades de cada uma delas. Primeiro, porque o que entendemos por escola brasileira muda e se desenvolve através do tempo, das tendências e das mudanças de regra do esporte.
Só que todas elas possuem um denominador comum: praticam jogo funcional. E não, diferentemente do que parecem entender, jogo funcional não é uma coisa só. É uma maneira de se comportar em relação a bola, ao tempo e a estrutura. Diante do time ser mais ou menos posicional, existem várias particularidades.
O jogo é funcional/aposicional, mas pode seguir mais ou menos o sistema tático, pode ter menos ou mais trocas de posição, ser mais físico, mais técnico, mais vertical e rápido, mais horizontal e cadenciado/pausado.
Isso significa que a explicação da identidade termina aí? Não. Mas por que o desenvolvimento parte de um jogo funcional?
Querendo ou não, um jogo funcional é menos “estruturado” que um posicional, independente do quanto eles sejam coisa x ou y. Logo, abre mais margem para adaptações em função das características individuais do jogador.
É possível criar um modelo de jogo posicional potencializando as individualidades, claro, mas no Brasil, é muito mais comum encontrarmos jogadores que carregam mais a bola, que não guardam posição e que procurem mais autonomia nas suas funções. Abel Ferreira já falou dessa dificuldade para ele, inclusive.
Isso parte das características culturais que já foram citadas. Liberdade, autonomia, criatividade.
Os modelos posicionais não são contra ou isento desses traços, mas proporcionam condições diferentes. A criatividade é estimulada de outra forma, o drible também. As ações são mais mecanizadas, no sentido de seguirem um propósito a partir do todo e não do indivíduo, ainda que o indivíduo seja protagonista.
E falando nisso, é bom ressaltar a ideia do Luxa: o conceito brasileiro de futebol é o protagonismo das individualidades, mas isso não anula que haja tática e coletivo.
Mas tem outra característica que não citei aqui: adaptação. Diferente do que algumas pessoas dizem, não creio que o traço primordial do treinador brasileiro seja o jogo funcional e sim a capacidade de se adaptar aos contextos.
Nosso cenário econômico, cultura de resultado, nossa mídia nociva, amadorismo nas gestões, cultura de ódio das torcidas, calendário arrochado e diversos outros detalhes criou treinadores excelentes em se adaptar.
O bom treinador brasileiro chega num contexto bagunçado e organiza a partir do que tem. Os treinadores campeões tinham suas convicções, mas se adaptavam e tinham seus modelos de jogo construídos a partir das principais características de seus jogadores.
Esse é o fato, independente de você usar ou não o termo “jogo funcional”. Essa é a escola brasileira de treinadores. Na tática, técnicos que se adaptam aos seus jogadores e contextos.
E não tem certo e errado aqui.
4. A FERIDA DO FUTEBOL BRASILEIRO
Entendemos a convergência cultural do Brasil, os denominadores comuns que geram traços do brasileiro e como é expressado no futebol, mas o por quê disso e o desandar das narrativas também precisa ser ressaltado.
No terrão, na rua estreita da favela, na quadra da escola, nos campeonatos de futsal, nos projetos sociais, na quadra do bairro, na rua de paralelepípedo, na lama, no mato, na praia… o futebol como paixão infantil brasileira sempre foi jogado em todos os lugares.
Nesses cenários, onde reina a liberdade individual e o caos, ainda que hajam regras, as crianças criam suas próprias soluções e desenvolvem técnica, drible, domínio, decisão, passe e até força física, mas não são treinos organizados e condicionados.
Com a urbanização dos grandes centros e o aumento da insegurança nas ruas, isso se perdeu um pouco, mas não sumiu por completo. Hoje, eu diria que um dos desafios do futebol brasileiro é conseguir trazer esses cenários para a base. O Palmeiras, por exemplo, leva os jogadores para treinar em campão de terra desregulado.
Por isso, precisamos parar de achar que a solução para o futebol brasileiro está na seleção, em ter um jogo funcional na CBF e pronto, porque a questão é estrutural e seleção brasileira é o topo da cadeia. Ela só importa dois motivos:
1. É o que gera comoção no país inteiro, nas Copas, e une torcidas que estão ano a ano brigando
2. Se vencer, sustenta uma narrativa dentro da cultura de resultado que nos rege
A ferida do futebol brasileiro foi aberta justamente por narrativas e resultados.
As quedas em 2006, 2010 e 2014 (principalmente) geraram respostas prontas que só consideravam a questão tática, ou suposta falta dela. Muita gente começou a reproduzir que futebol brasileiro era só entregar colete e mandar os caras resolverem na individualidade, quando na prática, isso é exagerado e mentiroso.
Haviam problemas? Sim, mas ninguém quis falar de questões psicológicas e emocionais na época do 7 a 1, porque falar “somos inferiores e não temos tática” é uma resposta mais fácil.
O sucesso do Barcelona de Guardiola e da Espanha em 2010 criou um grande apreço do mundo sobre o jogo de posição e para as respostas táticas para o que acontece nos resultados do jogo. Assim, a maioria no mundo passou a valorizar uma forma de jogar que foi potencializada, também, pelo encurtamento dos campos, pelas mudanças nas regras e pela evolução tecnológica.
Assim, cursos, analistas, treinadores, entidades e personalidades passaram a reproduzir ao redor do mundo um jeito ideal de jogar, de treinar, de atacar, de defender. Nisso, o problema não está no Jogo de Posição, no método sistêmico ou no Guardiola e sim no que chamo de posicionalismo: achar que isso é resposta certa, que é modelo superior.
Essas receitas sem contexto criou no Brasil, onde a CBF nunca se preocupou em catalogar, desenvolver e estudar nosso futebol a partir do que ele sempre foi, uma geração de profissionais viciados na padronização.
Nossos cursos bebiam de fontes acadêmicas da literatura portuguesa ou espanhola para estudar e compreender futebol. Olhamos para fora não para aprender e sim para reproduzir, de forma cega, inclusive, desconsiderando o contexto dos nossos jogadores.
Qual o problema disso? Nem todo jogador vai ser valorizado e acolhido nessas respostas prontas e isso começa na base.
A cultura do resultado faz com que técnicos de base desde cedo implementem mais trabalho tático periodizado do que o recomendado e acabam desenvolvendo menos o gesto técnico e as individualidades, porque isso acaba dando resultado mais cedo, afinal, crianças jogando de forma racionalizada e organizada, ganham, mas e o foco no desenvolvimento? Nem no Barcelona, um dos berços do jogo posicional, funciona assim.
Esse cenário também acaba supervalorizando jogadores genéricos: que cumprem diferentes funções e são mais táticos/físicos do que técnicos/especialistas. A quantidade de “jogador igual” no mundo é absurda.