
Tristeza não tem fim;
Felicidade, sim.
Antônio Carlos Jobim
A verdade é que ninguém sabia o que esperar dessa Copa do Mundo de clubes. Eu, por exemplo, achei que ia me divertir, mas não tanto. E não me refiro nem aos brasileiros ganhando dos europeus, não sou fetichista a esse ponto. Falo de Inter Miami e Seattle Sounders, da peladeira MLS, colocando Palmeiras e Botafogo nas cordas; do Wydad Casablanca criando chances claríssimas de gol (desperdiçadas, infelizmente) contra o todo poderoso Manchester City; do belíssimo futebol desfilado pelo Mamelodi Sundowns, que veste verde e amarelo e troca passes aos borbotões como uma certa Seleção um dia fez; do pior Boca da história, num dia, empatar com o amador Auckland e, noutro, ver o empate com o ultraprofissional Bayern escorrer pelos dedos aos 40 do segundo tempo. E por aí vai.
Quanto às nossas equipes, aconteceu o que eu esperava: que perdessem o medo de enfrentar os europeus conforme os confrontos fossem se multiplicando. Isso não significa dizer que não torci por nossos representantes. Pelo contrário, extrapolei a máxima de Nelson Rodrigues e, além de me tornar flamenguista por um dia, tornei-me outrossim botafoguense, palmeirense e tricolor. Confesso, inclusive (e peço, aos Deuses do futebol e à rara leitora e ao raro leitor, que me perdoem), que vibrei com nossos gols e nossas vitórias mais do que com certos gols e vitórias de meu próprio time.
O que me surpreendeu, enfim, nas campanhas brasileiras foi o fato de o Fluminense ter superado Flamengo, Palmeiras e Botafogo. Talvez, no entanto, se eu tivesse pensado como Claude Lévi-Strauss, não teria me espantado. É por isso que, aqui, sugiro que pensemos como este gênio da raça, o maior antropólogo de todos os tempos, para melhor compreendermos o que se passou entre junho e julho deste ano nos Estados Unidos. Uma das grandes missões da vida e da obra de Lévi-Strauss foi demonstrar a falsidade da crença de que os povos tradicionais – mal chamados de “primitivos” – representassem um “estágio infantil” da humanidade, um “fóssil vivo” na história da evolução de nossa espécie. Essas teses, filiadas ao evolucionismo, serviram de base científica para o racismo, o colonialismo e outros tantas mazelas cometidas pela – nas palavras de Aimé Césaire – indesculpável Europa.
Para comprovar a inadequação dessa teoria, Lévi-Strauss, entre outros tantos esforços, empreendeu o que batizou de análise estrutural dos mitos. Baseado no que coletou durante o período em que esteve no Brasil, quando foi professor da USP e fez estudos de campos com diversos indígenas locais – a exemplo dos Bororo e dos Nambikwara –, o antropólogo esmiuçou narrativas mitológicas de grupos étnicos tradicionais de diversas partes do mundo, a fim de encontrar neles todos estruturas comuns de pensamento. De forma muitíssimo resumida, para não entediar a rara leitora e o raro leitor que aqui estão pelo futebol, Lévi-Strauss encontrou o que definiu como ciência do concreto: um conhecimento fundado nas qualidades sensíveis e estruturado a partir delas. Em outras palavras, trata-se de sociedades que refletem acerca do mundo através dos mitos, com base no que sentem, nos fatos que já lhes estão disponíveis. Nós, por outro lado, pensamos por via da ciência, partindo de métodos outrora definidos para comprovar a veracidade dos fatos. Em síntese, nós criamos fatos (coisas verdadeiras) a partir de estruturas (métodos científicos), enquanto os povos mal chamados “primitivos”, de modo inverso, criam suas estruturas (mitos) a partir dos fatos (coisas verdadeiras). Essa inversão apenas comprova que não há uma distância evolutiva entre os dois tipos de pensamento. Apenas são formas diferentes, igualmente válidas, ricas e complexas de se estabelecer o conhecimento, e que coexistem em um mesmo período histórico.
Lévi-Strauss define o cientista moderno como um “engenheiro”, que precisa seguir uma série de regras previamente estruturadas para construir algo do zero, e o contador de mitos como um bricoleur, ou seja, como aquele que realiza bricolagem, que pega o que já está construído e reorganiza, criando a posteriori as suas estruturas. Se traduzirmos essa discussão em termos futebolísticos, eis a comprovação de que o antropólogo esteve sempre certo: em meio aos engenheiros Abel Ferreira, Filipe Luís e Renato Paiva, quem chegou mais longe foi o bricoleur Renato Gaúcho.
Durante a – arrisco dizer – maior crise de identidade da história do futebol brasileiro, precisou a FIFA organizar uma Copa do Mundo de clubes para que percebêssemos que a nossa forma de pensar o jogo não é menos inteligente e meritória que a dos europeus. A diferença entre os times da Conmebol e os da UEFA é a mesma diferença entre quem é chamado de bárbaro e quem é chamado de civilizado nos livros de História: a grana. No fim das contas, as coisas funcionam bem como Lévi-Strauss dizia: bárbaro é aquele que acredita na existência da barbárie.
Nesse caso, ainda bem que os europeus acreditam na barbárie, pois nós os barbarizamos mesmo. Depois de dominar por completo o Borussia Dortmund na fase de grupos, Renato Gaúcho despachou a atual vice-campeã da Champions, Internazionale, modificando a tática com base em uma sugestão dos próprios jogadores na pausa para hidratação. A quem lê assiduamente este Ponto Futuro, a cena não causou espécie. O texto “Autonomia, Pt. 2”, do companheiro Felipe Lemos, rememora episódio similar protagonizado por Portaluppi na final da Libertadores de 2017, sob comando do Grêmio. Ora, há algo mais bricoleur que dar aos atletas a liberdade para se posicionarem conforme entendem que será o melhor para a equipe? Renato, nos dois momentos – e em tantos outros que não ficamos sabendo –, criou a estrutura organizacional do time com base nos fatos que se desvelavam ali na hora, em campo. Para isso, é preciso que o treinador saiba sentir o desporto – e é preciso deixar que seus comandados também o façam. Eis aí uma abordagem diametralmente oposta ao jogo posicional, científico, dos europeus, que busca controlar milimetricamente o que cada atleta faz dentro de campo – ou seja, criar os fatos do jogo na medida de uma estrutura prévia, exaustivamente treinada e hermeticamente definida, na qual ninguém nada sente, apenas obedece.
A FIFA bolou esse torneio para ter uma festa de europeus para chamar de sua. De fato, isso não só quase se concretizou, como tinha tudo para se tornar uma festa do jogo de posição. Luís Enrique, Xabi Alonso e Enzo Maresca conseguiram entrar. Mas o mestre do três, Pep Guardiola, foi barrado justo na chave em que o penetra bricoleur Renato Gaúcho tomou de assalto o convite às semifinais. Seu adversário das quartas, o Al Hilal de Simone Inzaghi, também não aderia ao dress code do evento. Filho da tradicionalíssima escola italiana, o ex-treinador de Internazionale superou expectativas ao eliminar o todo poderoso Manchester City, naquele que era apenas o quarto jogo oficial à frente de sua nova equipe. A despeito disso, Inzaghi não foi páreo para o terceiro mês de trabalho de Renato, que, tão ou mais rapidamente que seu companheiro de profissão gringo, mudou a cara do Fluminense: de um modorrento e retrancado catado para uma equipe que, mesmo quando fica menos com a posse, não se resigna a defender; marca forte e, ao roubar a bola, ataca o adversário do modo mais conveniente para a jogada em questão.
Talvez esse seja um dos grandes segredos do futebol brasileiro contemporâneo, cujo principal decifrador é Renato. Em um país de dimensões continentais, desigualdades econômicas patentes, gramados não tão bem cuidados e um calendário esquizofrenicamente lotado, é preciso saber adaptar-se. Nas prateleiras intermediárias, os times que mais se deram bem jogaram assim. É evidente que não me refiro aos escretes de maior orçamento, que podem disputar o esporte em mais alto nível com maior frequência. Mas, afinal, o que mais representa o jeito brasileiro de se jogar futebol? O estilo empregado pelas minorias mais ricas ou o adotado pelas maiorias mais pobres? A bem da verdade, o que mais me agrada desde a elevação do sarrafo alegadamente promovida pelo Flamengo a partir de 2019 não é a maior preocupação dos times grandes em impressionar seus torcedores, mas sim a melhora significativa no desempenho dos médios e pequenos. Onde antes predominava a defesa fechada, o chutão e a serendipidade do jogar por uma bola, hoje impera o que aqui chamo de jogo adaptativo – ou bricoleur.
Visionário sobre quem discorri com profundidade noutro texto, Mario Celso Petraglia foi o primeiro a entender e a sistematizar isso. Depois de ganhar a primeira Copa Sul-Americana com Tiago Nunes no comando técnico, o cartola resolveu que o Athletico teria, dali para frente, uma abordagem tática específica, apropriada às ambições do clube, que alternaria momentos mais defensivos – com menos posse de bola, linhas mais recuadas, resistência à pressão adversária e transição em velocidade – e momentos mais ofensivos – com maior controle do jogo, jogadas criadas a partir da defesa e pressão alta. As variações, claro, dependeriam do contexto e do adversário e serviriam para que a equipe soubesse se portar bem em qualquer circunstância. Funcionou: o Furacão foi o clube que mais cresceu no Brasil desde o início dos anos 2010 até o rebaixamento no ano passado. Sem embargo, outros emergentes seguiram o mesmo caminho. O Fortaleza de Rogério Ceni, quando subiu para a Série A, preservou boa parte das valências ofensivas que o fizeram dominar a Série B no ano anterior, mas passou a adotar cuidados defensivos extras para lidar com os oponentes mais qualificados da elite. Com Vojvoda, em um segundo momento, o Tricolor do Pici teve fases mais ofensivas e fases em que foi o time de menor média de posse de bola da Série A. As boas campanhas do Ceará sob o comando de Lisca, do América-MG nas diferentes passagens de Vagner Mancini, do Juventude com Thiago Carpini, Roger Machado e Fábio Matias, do Vitória também com Carpini e, neste ano, novamente do Ceará com Leo Condé e do Mirassol com Rafael Guanaes são apenas alguns dos inúmeros exemplos do sucesso desta fórmula. Difícil é lembrar-se no período recente de alguma equipe menor bem-sucedida apenas à base da retranca. Até o Cuiabá de António Oliveira, que ganhava mais jogos fora (quando obrigado a se resguardar mais) do que em casa, tinha seus momentos de maior presença no ataque.
Renato Gaúcho comandou, nos últimos anos, equipes de maior envergadura – Grêmio, Flamengo e Fluminense – em comparação às mencionados no parágrafo anterior, é verdade, mas foi quem melhor encarnou esse espírito de versatilidade e adaptabilidade que hoje toma conta do futebol brasileiro. Não à toa, seu trabalho não foi tão bem recebido na Gávea, onde se exige que se jogue a mil a todo momento. Nos tricolores, por outro lado, ele pôde jogar a cem quando o jogo era de cem e a mil quando era de mil. A Cesar o que é de Cesar, resume a sua filosofia. Seu diferencial, contudo, não reside meramente na capacidade de velejar para onde o vento sopra, mas sim na habilidade de envolver os jogadores enquanto peças ativas do jogo. Sua tática não molda os jogadores, mas os jogadores moldam a sua tática.
Eis aí outro importante segredo nosso. Podemos não ser o país com os melhores índices de educação formal do mundo, mas com a bola no pé, nenhum atleta é mais inteligente que o brasileiro. Justo no momento histórico em que mais tolhemos a criatividade de nossas joias, para que cheguem à Europa bem adestradas em troca de mais uns vinténs, Renato estimula-a, exalta-a e a usa como elemento primordial de suas equipes. Sua forma de pensar o jogo concede autonomia aos únicos agentes que efetivamente podem alterar o destino de uma partida – os jogadores. Reis das circunstâncias aleatórias, dos gols perdidos, das bolas na trave, dos cartões vermelhos, dos dribles desconcertantes, dos desarmes ríspidos, dos escanteios mal cobrados, dos lançamentos magistrais, dos cortes providenciais das saidinhas de bola, dos arremessos laterais lançados na grande área, são eles quem, em última instância, definem o que se passa no infinito intervalo de 90 minutos. Renato, enfim, respeita esses poderes quase sobrenaturais. Fornece a régua e o compasso e deixa que os desenhistas façam a sua obra.
Isso não significa dizer que Renato não conhece de tática, que está desatualizado ou que se resigna a um treinador motivador, como sugerem alguns ressentidos notáveis de nossa crônica esportiva. Aqui, lembro as lições de Davi Rigamonte, presentes no texto “Teoria do Modelo de Jogo”, que a rara leitora e o raro leitor, vejam só, outrossim encontram neste Ponto Futuro: os modelos de jogo nascem da dialética entre o sistema abstrato elaborado pelo treinador e a situação concreta vivida e sugerida pelos jogadores – além, é claro, da influência imprevisível exercida pelo adversário. Nos ensina Rigamonte que
Para que desse encontro surja uma coisa nova, é preciso abertura. O treinador, com seu preconceito deverá se abrir para as sugestões de jogo que os jogadores sinalizam. Cada contato e cada experiência com os jogadores deverá moldar uma vez mais seu modelo mental, sua ideia de jogo. Da mesma forma, os jogadores se abrirão para as sugestões e deixarão ser moldados pela ideia que o treinador teve. Por causa da abertura, o mundo do treinador entrará no mundo dos jogadores, que deixará ser influenciado; e o treinador verá invadir em suas concepções a realidade que dos jogadores lhe está à frente.
Renato é, hoje, o treinador brasileiro que melhor opera no interior desse espaço. Valendo-se de tal advento, ele logrou êxito em se impor, por exemplo, tanto contra o Borussia Dortmund, quando formou uma linha de 4 atrás e explorou as transições em velocidade com Everaldo ao lado de Arias e Cannobio na frente, quanto contra a Internazionale, partida em que entrou com 3 zagueiros e abriu o placar após duas triangulações pelo lado direito, iniciadas pelo zagueiro Ignácio e finalizadas em cabeceio de Germán Cano. Aliás, a forma como manejou o uso de seus dois centroavantes é digna de nota. Nos momentos em que precisava da técnica, escalava Cano; nos momentos em que julgava ter de pressionar a saída de bola adversária e atacar em velocidade os espaços nas costas dos defensores, punha Everaldo. É o que faz um comandante que sabe se adaptar às vicissitudes que encontra pelo caminho.
A campanha do Fluminense na Copa do Mundo de Clubes enfim representou uma resposta contundente às formas hegemônicas de se pensar futebol e ao viralatismo que as acompanha no Brasil; mostrou que é possível definir uma estratégia a partir das circunstâncias, ao invés de definir as circunstâncias a partir da estratégia; e provou que arquitetar o jogo dessa maneira não é uma forma inferior de pensamento. Renato, o bricoleur das Laranjeiras, fez felizes os trópicos outrora descritos como tristes por Lévi-Strauss. Mas uma hora a folia haveria de ter fim: se nos acostumamos a terminá-la na quarta, dessa vez a encerramos numa terça-feira, dia 8 de julho.
Nada seria mais significativo do que a eliminação para o Chelsea, com gols do recém-chegado João Pedro, garoto revelado pelo time derrotado, vendido como pé de obra ainda em tenra idade para a Inglaterra, trazido para os Blues arbitrariamente no decorrer da competição, em mais uma regra absurda inventada por europeus e para europeus. Eis aí a nossa sina: não somos burros ou involuídos, só não temos dinheiro! Parafraseando Vinicius de Moraes, nossa beleza vem da tristeza de nos sabermos terceiro-mundistas, feitos apenas para vender matéria-prima.
No entanto o futebol, democrático como só, mostrou-nos que a desigualdade humana não é tão imensa quanto o fetiche do dinheiro faz parecer: dentro de campo, são onze homens contra onze homens – e só. Nas áreas técnicas, um pensa diferente do outro, mas ambos de modos igualmente legítimos e complexos. Quem sabe, diria Gonzaguinha, um dia chega alguém anunciando que não há mais quarta-feira. Nem terça. Nem o domingo da final. Quem sabe, daqui a quatro anos, sem nos importarmos com as cores que vestimos, vençamos os ditos invencíveis; aí a nossa felicidade não terá mais fim.