O futebol, para o brasileiro, é mais uma das instituições que definem o complexo sistema social da nossa cultura, junto da família e religião. “Você é filho de quem?”, “qual a sua religião?”, são os equivalentes do “pra que time você torce?”. A força com que essas três entidades imperam no “ser” brasileiro, são encontradas em variados meios de expressão (formas de canalizar e manifestar a identidade). Esse aspecto está na literatura, nas artes plásticas e também, no meio mais democrático dentre esses que é a música. Bom, se o papo é sobre “ser” brasileiro e drenar uma identidade, é preciso passar pela estrutura social, e esse organismo é por si só, popular (de denso e geral), tanto quanto democrático. E se o futebol anteriormente foi a prática essencialmente popular pelo fato de depender de mais nada do que uma “bola de meia” e de terreiros abertos, a música também o é em essência pelo mesmo fato de ser irreprimível, dentro de uma lógica onde certas práticas são exclusivas de uma classe dominante. Nesse fato, o que sai dessas duas formas de expressão, é um caso especial: o de encarnar a “identidade” brasileira; coisa que acontece por conta do tom popular da essência das duas.
A música esteve no Brasil em várias alturas e âmbitos, espalhando-se na base a partir dos ritos e festas tradicionais, porém, até a virada de chave, que acontece no ‘modernismo’, ela se ocupava de questões que apesar de identitárias, eram restritas ao grupo – a comunidade que fazia. Visto que a ‘modernidade’ alcança o país, na entrada do séc XX, passa-se a discutir a busca por um “sujeito” essencialmente brasileiro; junto disso, a música, ao pé dessa influência, se encarrega dessa “inconsciência coletiva” (de ser brasileiro) e passa a tratar de uma cultura popular, de massa, que discute uma “única cultura” que seria a brasileira. Como síntese desse processo, nasce o MPB. Que têm espelhado, movimentos como a tropicália e a antiga bossa nova.
Com essa pretensão, esses movimentos musicais se ocuparam diretamente de objetos cuja definição dos mesmos era o “brasileirismo” deles. E não poderia ser diferente, se ocuparam do ‘bendito’ futebol (interessante expressão pois, em uma das discussões sobre futebol, Lima Barreto ironizava o “jogo tão brasileiro” e apontava para seus problemas sociais; é claro, ele não viu como ocorreu a “digestão” social do esporte etc).
O futebol na altura desse processo histórico, já havia se consolidado como prática essencialmente brasileira; isso está em definições como “o nosso futebol”, “o jeito de jogar do brasileiro”. Sendo ele mais velho que a MPB e a MPB um embrião do ‘imaginário’ popular do país, o “fato” futebol foi intensamente explorado como orgulho e extensão da paixão de se encontrar nesse corpo social, ou seja, de ser brasileiro. Cooperando para fixação do sentimento de pertencimento, e além de tudo, também cooperando pra identificação de que “somos um país moderno”, tal qual potencializando a emancipação do negro brasileiro (preto e mulato), que enquanto identidades extremamente racializadas e a margem da sociedade, se tornam o simbolo de reconhecimento da nação em si mesmo; por exemplo, nas imagens de Pelé (preto) e Garrincha (mulato) e em canções como “Umbabarauma, O Ponta De Lança Africano” e “Filho Maravilha” (Jorge Ben Jor) . Onde ocorre um fenômeno interessante dessa fase da afirmação cultural que é o culto a africanidade do brasileiro, ponto principal para encarnação do “ser brasileiro” estampada nessas duas frentes populares (futebol e música), sendo o motor para o encontro do brasileiro com ele mesmo, a partir da afirmação (!) do si (brasileiro negro periférico) e negação do outro (elites brasileiras brancas que buscavam “reformar” o país).
Entretanto, a imagem do jogador de bola, e a imagem desse jogador e/ou futebol enquanto raça e nação, foram as formas de concentrar e colocar para fora, o verdadeiro traço do país. Em outras músicas como “Geraldinos e Arquibaldos” (Gonzaguinha) isso acontece; onde, em uma letra que se assemelha a um ‘tablóide’, ele coloca no cartaz, um manifesto que lembra a velha divisão dos estádios entre a “geral” – ala popular – e a “arquibancada” – restrita e cara. Não precisa saber de futebol para ver na música de qual brasileiro falamos.
Mas essa adaptação do futebol não fica somente nas vias da memória racial. Há músicas dedicadas aos ídolos. Que são o resumo e até mesmo, o resumo genético daquele que torce. Jorge Ben em “Camisa 10 da Gávea” dedica uma linda música ao Zico, além de dar sentido estético ao esporte bretão, que deixa de ser guerra e passa a ser a mais fina arte do corpo. A exaltação dessa característica tão particular do jogo, dá ao brasileiro o ar de dominar a mais fina arte do mundo. Gilberto Gil também dedica um excelente trabalho ao grande Afonsinho em “Meio de Campo”; que nesta situação, se encontra como o ídolo-mártir, que no seu caso, briga por melhores condições no que faz, reivindicando a autonomia do jogador diante do clube, uma cópia ou extensão da luta proletária brasileira – novamente, sintetiza-se no ídolo, na música e no futebol, uma causa popular.
A homenagem ao jogo de futebol na música popular brasileira é extensa, e dentre os grandes músicos preocupados com essa face do país e da população temos desde os Novos Baianos – que foi antes FC do´quê um grupo musical; sendo essa sigla uma sigla que serve de componente para toda coesão do que iremos chamar de ‘cultura brasileira’; ou seja, passa-se antes por uma iniciação futebolística que serve como iniciação à cultura – cantando sobre ser brasileiro e que o fato de não o “ser” também tem haver com uma bola de futebol (Só se não for brasileiro nessa hora). Tanto quanto João Bosco em “Linha de Passe” exaltando as nuances do jogo e a relação do brasileiro com o mesmo.
Antes de finalizar essa breve crônica, gostaria de falar sobre a inteligentíssima música “O Futebol” do Chico Buarque, que exprime, tudo o que aqui falo. Além de construir a tensão literária do futebol, dar vida ao movimento, ele compara, faz linda metáfora com o João. Vos pergunto, quem é João? Basta olhar, é o nome mais popular. E quando ele faz a brincadeira de driblar o João e lembra do Mané (Garrincha), faz do brasileiro pé de igualdade ao jogador. Se há entretanto uma questão indissociável do futebol, é que ele é praticado por pessoas, e se são pessoas, aqui, são os brasileiros e brasileiras que têm o dom de jogar o esporte de pés.
Segue uma seleção de boas músicas que tratam do assunto:
Zagueiro – Jorge Ben (1975)
Jogo De Bola – Chico Buarque (2017)
Aqui É O País do Futebol – Milton Nascimento (1971)
O Jogo – Milton Nascimento (1971)
Samba Rubro Negro – João Nogueira (1979)
Meu Caro Amigo – Chico Buarque (1976)
País Tropical – Jorge Ben (1969)
Pivete – Chico Buarque (1978)