Gabigol, representação e vontade
Deve ser uma pergunta geral para os espectadores: como o Gabigol não é definitivamente um gênio mas tem a capacidade de criar momentos que somente alguém dessa qualidade (capacidade de buscar as coisas fora da realidade concreta) poderia? E além de tudo, por mais que seja também geral a atribuição da ideia de “lapso” – aquela suspensão limitada que acontece uma vez na vida e depois se esgota – pois é assim que compreendemos os não gênios (não esperamos nada do comum)? O caso de Gabigol é completamente à parte, onde estando fora das várias regras que colocamos no discurso do jogo a sua forma de jogar futebol não se resume em sorte. Diferente de uma “iluminação”, ele, durante a partida, está aberto à toda sorte que os 90 minutos reúnem, sendo apenas um mortal ou de forma mais simples, sendo um qualquer. Esse desafio que o jogador propõe é o que o distancia da normalidade que o futebol acontece, fazendo com que ele não seja parte de um acaso maior, impossível, mas que seja capaz de se fundir de tal maneira à tragédia de uma partida que o adversário não seja capaz de distingui-lo entre homem e jogo.
Mas a questão ainda permanece imóvel, não é de fácil compreensão esse “nó” que o camisa nove brasileiro faz em campo e exatamente por isso a proposta deste texto é apresentar a substância de vida que diferencia o Gabigol do restante e o coloca como um “trânsito” do mundo normal e do mundo dos gênios.
Tomamos como análise suas partidas mais memoráveis, as finais. Se partimos desse ponto, é um exercício pouco comum relacionar os melhores jogos de um jogador às finais. O estágio mais alto do jogo é justamente o mais tenso e difícil onde ser o melhor nessa circunstância é trabalho de gênio. Isso fica ainda mais interessante, porque quando falamos do Gabigol, falamos de finais. Isso nos faz voltar à questão original, onde, de acordo com as opiniões movidas pelo medo e ódio ao camisa nove, Gabigol não é craque, então, muito menos será gênio. Entretanto, se nos baseamos nas coisas mais evidentes da construção do imaginário do futebol esse cara vira se torna uma incógnita: ele é um aniquilador de finais. E isso, na soma mais simples, teria como resultado a descoberta de um gênio. Mas a forma como ele recolhe os fragmentos desse tipo de jogo tão sisudo e naturalmente característico das finais é diferente. Ou seja, a partir da ideia de que o Gabigol é um normal, ele rompe com uma série de limites conceituais do mundo da bola, estabelecendo um caso crítico do jogador de jogos grandes… Trezeguet? Milla? Eto’o? A sua retrospectiva comprova que os seus melhores jogos nunca foram os que mais dependem de toques na bola, mostrando que seu poder está em jogar o jogo sem temê-lo. Mesmo assim, isso é pano pra manga quando narrativa que persegue a “utilidade” de um jogador desse tipo aparece, mas nada tira que seu melhor futebol surge nas finais, coisa que divide a vida e a morte. Exigir desse cara alguma prova maior é coisa de leitor desavisado, quem entende de futebol, entende de Gabigol, pois o xeque de seu jogo está no poder de comprimi-lo em um pequeno toque que surge a partir de uma força integrada ao jogo. Como disse, Gabigol se abre ao lado mais feio do jogo, ao lado que pressiona e pune quem erra, é por isso que o gol aparece como uma recompensa.
Não tenho como compromisso discutir a essência deste juízo mal direcionado e como isso nasce de uma rasa conclusão comprada daquilo que vem de fora, e se intercala em uma concepção social profundamente colonial que temos com o futebol brasileiro. Mas a totalidade do jogador pode muito bem ser entendida a partir de uma ontologia que visa “desmembrar” a sua forma e possível ligação com os “gênios”, assim sendo, a próxima etapa do texto terá em sua base o fenômeno físico e metafísico do camisa nove, seu fazer e ser em campo.
No seu fazer dentro de campo, e em suma, a partir da imagem construída sobre ele, Gabigol diferentemente dos demais canaliza o fluxo livre do jogo: o caos. Há uma maravilha em seu jogo e essa está no não enfrentamento do problema. Oposto àqueles que não suportam as cartas colocadas sobre a mesa, àqueles que querem prever e acabar com tudo o mais rápido possível, Gabigol aproveita para ser o inverso, e se materializa no próprio jogo. E aqui está um problema pro adversário, que tendo medo do jogo, nutre um medo do atacante, que só faz o que uma partida normalmente faz: pressiona, ri, domina.
Existe um aspecto interessante em suas decisões, e isso o aproxima de vez dos gênios: enquanto em seu jogo ele está disposto a errar, sem temer o que virá após o erro, sem lamentar a oportunidade, os outros marcando friamente, não conseguem deduzir a qualidade dessa calma, e exatamente nessa situação, está a síntese do futebol do centroavante das regatas. É como se a culpa errasse o caminho e durante a falha e a paciência, surge no adversário a inquietação: “como esse cara erra e permanece intransponível?”. Não acredito que seja válido alcunhar essa qualidade como “fortaleza mental” ou coisas que beiram o futebol da “análise especializada”, mas esse comportamento do Gabigol é simplesmente o de quem compreende o que faz – ao invés de rebater, ele cria sentido, e é impossível para o adversário fugir da realidade que tá se abrindo; por isso, Gabigol faz gols fáceis. Como contrapartida, todos os gols fáceis tem uma similaridade em sua natureza, e o batismo de “gol fácil” concorda com uma atitude particular dos gênios; atitude essa que o Gabigol compartilha.
Pode ser que quando olhamos para um gol como o ‘barrilete cósmico’ do Maradona ou o drible da vaca de Pelé em cima do Mazurkievski (aquilo foi gol) buscamos uma compreensão a partir da dificuldade, entretanto, o que existe ali como uma ironia própria dos gênios é que tudo aquilo estava dissecado, revelado há horas antes, onde o “achar” daquelas ações é simplesmente um desnudar do universo. Esforço? Não existe. E como disse: aí está o gênio, fazendo do impossível fácil.
Mas porquê faço essa digressão? Ela parece ridícula. Mas é de se pensar que a coisa mais importante do futebol é o seu maior segredo. “O gol é o orgasmo do futebol”. E isso não se conquista, mas aparece, se permite. Aqui mora a diferença de Gabigol para os demais e também nasce a sua semelhança limitadamente humana com os gênios. Ao passo que a maioria banal dos goleadores procuram furar uma bola na rede a partir de uma produção industrial de chutes, Gabigol, com uma frequência que está mais para o jogo do que para seu próprio corpo, simplesmente se funde com o jogo para a revelação do gol. A diluição entre o limite do ego e as potências do jogo nessa ocasião, talvez seja a grande carta épica do jogo do camisa 9. É como um herói, que cego da sua designação, simplesmente cumpre a sua jornada, não existe ego, não tem tempo para o eu quando este está em função do todo, e é isso que acontece em campo com Gabriel. E é exatamente isso que possibilita as jogadas ridiculamente fáceis, se uma coisa é cativa do futebol essa coisa é o gol, ele não tem tempo ou hora marcada, mas surge para aquele que tem o desígnio, a marca, e se um jogador está completamente fundido de corpo, alma e mente à sorte do jogo, é consequência que o gol queira aparecer – por isso vocábulos como “fede a gol” faz sentido pleno à natureza do futebol. O que quero dizer com isso, é que um jogador tão ligado à condição do jogo, inevitavelmente será um goleador, como outros com essa encantaria, foram outrora. E mesmo assim, ele pode não ser gênio ou craque, mas como gente, ele fere o mundo, e conhecendo essa condição, consegue colocá-la na unidade micro do futebol e ser um sujeito que ao invés de subjugar-se ao ceticismo do concreto, se permite ao problema e caos da outra realidade que o jogo estabelece.
A mídia e a produção simbólica
Na ressaca da Copa de 50, após os uruguaios destruírem o Brasil, Mário Filho conta que vivíamos um hipotético vácuo de ídolos. Na caça às bruxas que culminou numa das mais cruéis investidas da mídia no futebol brasileiro – culpando os jogadores negros e a partir desse sentido, justificando o racismo na ciência positivista da época – marcando o começo da triste história do goleiro Barbosa; o senso comum num revestrés passou a negar o que tinha e fazia e ver o de fora como sagrado, desejavel. Mário Filho conta sobre o termo que seu irmão viria a cunhar, o “complexo de vira-lata” e o mito criado sobre o futebol dos argentinos tanto quanto dos uruguaios, que refletia muito mais a autoestima do brasileiro com o encontro de um corpo que definisse de fato o ser brasileiro – isso particularmente sempre pertenceu ao gênero mestiço que via no futebol a oportunidade de provar a valia racial, porém, nos vexames, a culpa rebatia com ódio, e o brasileiro, maravilhado com a potência do outro, não tinha chance de pensar a sua unidade e compreender a beleza que produziam, não tinham raça ou casa.
.Entretanto uma coisa nos interessa de fato aqui. Se a mídia burguesa profundamente racista (eram contra o profissionalismo – que possibilitou de fato a entrada do negro no futebol) do período caçava no “problema da raça” o triunfo que o Brasil nunca veria. Mas uma coisa é certa, o brasileiro mesmo tomando partido desse discurso, fez isso a partir de um englobamento do contrário: inconscientemente e “sabendo que o de fora é que valia”, passou a idolatrar o único mestiço da seleção uruguaia, Obdulio Varela.
Essa introdução tem apenas um motivo: reconhecer a potência midiática na determinação daquilo que é correto ou verdadeiro. Assim como a mídia pauta o consumo e uma gama de relações sociais, ela cria ídolos e monstros – isso desde a invenção da imprensa.
O caso do Gabigol e sua vida no Flamengo tem um pouco do evento catastrófico de 50, desde a forma como não somos capazes de atribuir valor ao que é nosso por conta da “recusa” histórica que carregamos graças ao “problema da raça”, tanto como a criação de vilões motivada intimamente pela posição dos mediadores de discurso, que sem esconder suas intenções mais sacanas com o futebol brasileiro, destilam o ódio burguesinho aos ídolos populares.
A repercussão desse tipo de raciocínio no cenário do futebol, confirma a validade do discurso jornalístico na condução dos gostos e desejos das pessoas; assim, ainda num contexto de “crítica futebolística-especializada”, temos mais uma vez o ídolo que está “contra o time” ou que “não respeita a instituição” – para mim, o mais feio é isso ter como alicerce a pauta do rendimento (tão mal vislumbrada no futebol moderno), onde na hora de emitir uma mínima opinião, o indivíduo quer falar de números, covarde. Mas aqui, o mais válido a ser lembrado é que esses eventos são casta de qualquer jogador desse porte, o amor e ódio são da natureza de quem ganha esse status pela justa condição em que esses caras são o único e verdadeiro trânsito do corpo da torcida e do campo. Nesse fenômeno se odiar como quem joga é um feitiço que todos os torcedores lançam mão desde cedo, desde que vestem a camisa do craque do seu time. Não é novidade, Renato, Romário, Zico, Raí… alguns de porte nacional outros na vida em seus clubes. Gabigol, explodindo no contexto de futebol de clubes, é odiado pela vasta maioria dos rivais e não-rivais, isso mostra em gênero que reconhecer o Flamengo é antes reconhecer Gabigol.
Assim, nos últimos meses de uma suposta baixa do jogador e o florescimento de um ódio descabido, que na grande maioria das vezes, fez parte de uma construção narrativa da mídia, a torcida do Flamengo passou a tomar partido do discurso fabricado e começou o processo de automutilação perseguindo o próprio ídolo(!) sem sequer saber o porquê. O ponto principal desse fenômeno não está nem no motivo, como também não está apenas na força da mídia, mas na natureza ambígua de odiar um símbolo histórico à troco de nada. Coisa que faz parte de uma inconsciência e por hora faz parte do manejo das mesas redondas sobre a opinião comum. A crise inventada sobre a figura do jogador, como salientado nas linhas acima, é mais um problema com a personalidade e identificação do mesmo, principalmente pela sua projeção popular, do que fatos.
Gabigol craque nacional
Para mim Gabigol nunca teve uma fase. Gabigol é um jogador copeiro e isso requer uma noção diferente sobre níveis, auge e rendimento, diria que jogos normais das tabelas não são seu forte. Pois como venho desenvolvendo, é um jogador da situação, que depende da pressão do jogo manejando suas pulsões. Quanto maior o jogo, maior a sua crença nele, maior a sua ganância por ele e nessa batalha que à parte do campo, é que o atacante conduz a sua força dentro de campo, ou seja, sua aposta no limite do erro e do acerto, ele está disposto a encarar qualquer que seja o destino. Normalmente ganha, porque é um herói sem motivos para perder. O seu adormecimento durante alguns jogos “normais” comprova que ele não faz jus a uma fase, como os jogadores comuns, onde, assim como os gênios, como os superiores, ele renasce através de uma exposição capaz de canalizar o jogo completamente. Ele é um jogador grande, diferente de ser bom ou ruim, isso depende da alma e vontade do jogador, enfim, de como ele se mostra e vive. Por isso se assemelha aos gênios – que normalmente jogam com a consciência de serem gênios.
É ainda mais profundo, no entanto, porque Gabigol é um indivíduo com mania, e a sua coragem no desafio, faz dele um jogador maior em todas as circunstâncias em que os outros se apequenam.
Isso é a chave pra entender o seu romance com o Flamengo, e assim, ver de fato o rosto do jogador, que gosta mesmo é de jogos grandes e copas, decididas em mata-mata, de maneira franca. Isso também conta um segredo sobre os times pelo qual deve ir, os verdadeiros copeiros. Assim como, para entender o porque ele é um ídolo nacional mesmo sem ter vestido a amarelinha, que perdeu muito do seu prestígio pela fabulação daquilo que vem de fora. É assim que ele passa a circular pelo imaginário de pessoas como o meu velho, que conhecendo bem sobre esse esporte, vê no Gabigol tudo aquilo que fez de alguns jogadores, grandes jogadores.