(…) Fui impulsivo,
Hamlet
Mas louvada seja a impulsividade,
Pois a imprudência às vezes nos ajuda
Onde fracassam as nossas tramas muito planejadas.
Isso nos deveria ensinar que há uma divindade
Dando a forma final aos nossos mais toscos projetos…
Havia um cheiro diferente naquela tarde de 01/09. Domingo, sol, 16h, confronto entre as duas maiores equipes do país, 114 anos do Corinthians e bandeiras homenageando ídolos históricos do clube; comemorando a data, a Gaviões cantava antes do início do jogo “Coisa boa é para sempre” e “A saliva do santo e o veneno da serpente”, sambas-enredo históricos da organizada que não deixam a torcida esquecer do lado metafísico do Corinthians — o normal, no alvinegro paulista, é fracassarem as tramas muito planejadas e predominarem as tramas “toscas”, que precisam de uma divindade dando um empurrãozinho final.
Me dê a mão, me abraça
Viaja comigo pro céu
Sou gavião, levanto a taça
Com muito orgulho, pra delírio da fiel“Coisa boa é para sempre”
Vou, vou prá Bahia
Acende a chama
No terreiro de iá iá
É a força da magia
Que me arrepia
E se espalha pelo ar“A saliva do santo e o veneno da serpente”
O cheiro era diferente, mas o jogo era difícil. 1×1. Sobe, então, a placa com o número 11. Dos sofás de casa, reviram-se os torcedores: por que Romero? Não há sentido em apostar, mais uma vez, no paraguaio. Não estão errados em pensar isso. Em Itaquera, no entanto, onde naturalmente importa menos a razão e mais o impensado, a reação é diferente. Cria-se um frisson: aquele estádio, que tantas vezes viu Romero aparecer quando menos se esperava, sabe que não se subestima o artilheiro da casa. Romero é em Hamlet a impulsividade, o projeto tosco; não precisa ter sentido, e tampouco ser pensado. É uma questão de acreditar que com ele em campo, a força divina dará forma final ao tosco projeto, e que ele, mais uma vez, virá ao resgate. E veio; não só fez o gol no primeiro toque, mas jogou como se fosse um extraclasse, deu chapéu, caneta, mudou o momentum do jogo e deu a vitória ao Corinthians contra o Flamengo, em partida importantíssima na ainda complicada briga do Timão contra o fantasma do rebaixamento.
É que Romero, é, afinal, Corinthians. Discordo da imagem de que o Corinthians seja um time de jogadores essencialmente “bagres”; acho mais preciso dizer que é de jogadores e histórias canhestras, estranhas, ilógicas e diferentes. É isso que é Angel, que nem de perto é um craque e é um tipo estranhíssimo de jogador. A questão toda é que não se racionaliza Romero. Faz partidas de arrancar os cabelos do torcedor, ao mesmo tempo que é constantemente o jogador mais decisivo da equipe na década inaugurada em 2014, quando chegou ao clube. Foi importantíssimo no título brasileiro de 2017, veio ao resgate em 2018 quando do absoluto nada apareceu como centroavante, e novamente resgatou o clube em 2023, quando foi de não relacionado à jogador mais decisivo na briga contra o rebaixamento.
E num Corinthians que por vezes esquece de suas raízes, imerso em um mar infinito de falcatruas e crime, é importante que exista Romero para lembrar que o Timão é a frase de Shakespeare em Hamlet. Se o mundo cada vez mais racionaliza cada relação — no futebol, o avanço da análise de desempenho exclui decisões e atos impulsivos –, existe Romero para louvar a impulsividade e rir de cada um que tenta demasiadamente controlar o incontrolável com tramas muito planejadas. Por haver Romero, o dia foi do Corinthians.
E neste dia de Corinthians, havia do outro lado uma figura que de certo já teve mais valor para a torcida corinthiana: Tite.
Esperava-se que Adenor Bacchi recebesse as maiores vaias da história da Neo Química Arena. Era, sim, um adicional que dava ao jogo um cheiro diferente. Um ano atrás, Tite recusou quatro vezes a equipe que o elevou ao status que atingiu quando se tornou técnico da seleção brasileira — bom lembrar que, após o vexame contra o Tolima em 2011, foi Andrés Sanches, presidente à época, que o bancou contra toda pressão da mídia e da torcida — e, para piorar a situação, após aceitar o Flamengo, se acovardou e não quis comandar a equipe contra o Corinthians na Arena, no jogo que seria sua estreia. Mas a reação da torcida, que tinha todo motivo do mundo para cair em cima do treinador, não esteve nem perto da esperada. Vaias protocolares no anúncio do nome e xingamentos apenas dos torcedores que estavam atrás do banco, como acontece com todo treinador que vai à Arena. Nenhum “Ei, Tite, vai tomar no c*”, como por sinal fez a torcida do Flamengo com Hugo Souza, que nunca fez nada contra o clube.
Mas por quê?
Tite, seja pelo status que alcançou ou seja por alguma tentativa de se “remodelar”, tornou-se um treinador opaco. Se foi num passado não tão distante quem botou Romarinho para jogar em La Bombonera numa final de Libertadores, hoje tornou-se um obcecado por controle e racionalização. Dono de times entediantes — com duas chances, não conseguiu passar das quartas de Copa do Mundo — fã de frases “coach” e, novamente recorrendo à Hamlet, alguém que inexiste sem tramas muito planejadas, se tornou uma figura um tanto cômica por suas coletivas de “extremos desequilibrantes” e sua postura à beira do campo.
Recebeu portanto, na volta à sua antiga casa, não xingamentos, mas insignificância. Não provocou o ódio generalizado que se esperava; foi ignorado por uma torcida que desejava apenas festejar o aniversário de seu clube. O Tite que voltou à Arena não está nem próximo do Tite que a deixou em 2016. Talvez, se um dia voltar a abraçar mais a impulsividade e deixar de lado as tramas muito planejadas, volte a ser uma figura que provoca, pelo menos, ódio nos rivais. Se não, continuará essa caricatura de si mesmo e será sempre recebido com insignificância no lugar em que uma vez foi ídolo.
Louvada seja a impulsividade.
Absolutamente arte