Nos últimos dias, Rodrygo vem sendo alvo de críticas por boa parte da imprensa espanhola por seus números tímidos na temporada: é o jogador que mais finaliza em LaLiga, mas só tem 1 gol pelo Real Madrid. Além disso, Rodrygo não converteu nenhuma das suas últimas 28 finalizações. Vinícius Júnior, por sua vez, começou a temporada longe do ritmo alucinante que nos acostumamos a ver e se lesionou logo depois. Para além de sua lesão, muitos atribuem a nova posição mais central como o motivo de seu começo de temporada ser mais morno. Brasileiros à parte, Modric é quem mais sofre nessa nova temporada. O croata é o terceiro meio-campista do elenco com menos minutos jogados (perde apenas Ceballos e Arda Güler, que se lesionaram e ainda não estrearam na temporada) e vem mostrando sua insatisfação. Quem vê esses 3 agora, nem imagina que eles estiveram constantemente entre os melhores jogadores do Real Madrid na temporada passada e foram extremamente relevantes nos melhores momentos do time ao longo do último ano. O que será que aconteceu de lá pra cá? Para entender o que mudou da temporada 22/23 para a temporada 23/24, precisamos antes entender o impacto dos principais movimentos no mercado do Real Madrid: a saída de Karim Benzema e a chegada de Jude Bellingham.
O Real Madrid da temporada 22/23 partia de um 4-33-. O sistema teve alguns ajustes com o tempo (Valverde começou como ponta mas voltou ao meio-campo, Tchouaméni entrou e saiu do time, Camavinga virou lateral, Rodrygo virou titular etc.), mas o esquema base sempre foi o 4-3-3.
Saindo dos números e partindo pro que acontecia no campo, era um time com a cara de Ancelotti: um ataque funcional cujo foco era potencializar ao máximo os talentos individuais dos jogadores sem abrir mão de um sólido senso de coletividade. A base daquele time era, como disse, um ataque funcional muito sedimentado em um jogo curto, de imposição técnica, com bola ao chão e de pé em pé, onde os jogadores criavam espaços a partir de seus movimentos e não de suas posições.
O Real Madrid 22/23, portanto, era sinônimo das famosas tabelas, uma arma muito utilizada pela equipe de Ancelotti para facilitar os toques curtos. Jogadores sempre muito próximos, passando e imediatamente se deslocando. Toco y me voy.
Era um time rico em pausas, sem medo de frear a velocidade das jogadas para entender melhor o tempo de cada uma. Os jogadores se moviam constantemente, se aproximavam, criavam linhas de passe bem curtas e avançavam a partir de seus movimentos e das tabelas. E o sustentáculo para esse ataque era Karim Benzema. A já famosa capacidade do francês em ser um 9 armador, articulador, criativo, genial, imprevisível e que melhora os jogadores à sua volta não pode ser subestimada se queremos entender as mudanças no Real Madrid. Sua capacidade para associação, para jogar curto, para se movimentar, para baixar de sua posição de 9 e armar o ataque como um 10, para distribuir passes criativos e precisos para seus companheiros e ainda assim ser um goleador é quase sem precedentes na história do futebol. Tendo um craque desse quilate em seu elenco, Ancelotti, claro, montou um time ao redor das características de Benzema: um jogo curto, de imposição técnica, com liberdade de movimentação e associação, como dito antes. Acontece que o jogo perfeito para Benzema era também o jogo perfeito para a maioria dos jogadores do elenco do Real Madrid. Modric, Valverde, Tchouaméni, Camavinga, Vini e principalmente Rodrygo não só se encaixam nesse jogo, mas são violentamente potencializados por ele. Todos os jogadores que citei (especialmente Rodrygo) são jogadores de ataque funcional à lá Ancelotti, pois ele os permite uma liberdade posicional e para associação imensa. Eles podem se deslocar livremente pelo campo, desenhar tabelas e sair tocando curto até chegar ao gol. São todos jogadores muito técnicos acostumados a esse jogo curto e pausado ao estilo funcional, com ultrapassagens, tabelas, diagonais e múltiplas possibilidades de interações. Um time para Benzema é um time para todos. Benzema melhorava todos à sua volta porque é um craque, sim, mas principalmente porque suas CARACTERÍSTICAS eram perfeitamente compatíveis com as características do resto do elenco. Eram feitos uns para os outros. E, por ser um craque, era um facilitador absurdo para tudo. Mas Benzema sofreu com problemas musculares ao longo da temporada passada e, apesar do time ter eventualmente achado algumas alternativas (destaco o 2 a 1 contra o Atlético de Madrid em LaLiga, com Rodrygo de falso 9 e Valverde de ponta), os problemas viriam, cedo ou tarde. Até quando o time jogava bem (como no 1 a 1 contra o Manchester City), desperdiçava muitas chances simplesmente porque Benzema, sofrendo fisicamente, não era mais capaz de dar continuidade às jogadas como antes.
Bem, virou a temporada, Benzema saiu e Bellingham foi a principal contratação do Real Madrid na janela. Por ter meio-campistas demais e atacantes de menos, Ancelotti abandonou o 4-3-3 e passou a armar o time em um 4-4-2 com diamante no meio-campo, mais conhecido como 4-3-1-2.
Esse novo sistema tem algumas implicações, como uma necessidade de maior protagonismo ofensivo dos laterais (a posição mais frágil no elenco do Real Madrid) e exigir que Vini e Rodrygo joguem mais por dentro, mas a principal mudança é tirar Benzema do time e colocar Bellingham. Bellingham não é um jogador de ataque funcional. Na verdade, é um meio-campista interior perfeito para o Jogo de Posição moderno. Para esclarecer isso, pense no Bayern de Guardiola em 15/16, que tinha Vidal e Müller como interiores.
Hoje, não é nada fora do normal pensar em um time do Guardiola com Vidal e Müller no meio, mas à época, com o time de Xavi e Iniesta ainda muito fresco na memória, era um absurdo. Mas, frente à verticalidade do futebol alemão, Pep viu que tinha que acelerar um pouco as coisas. Por isso, ele mudou o eixo de construção do time e começou a atacar mais por fora com os pontas, aproveitando toda a largura do campo e cruzando para os meias concluírem. Martí Perarnau explica em seus livros que Pep começou a valorizar mais os cruzamentos e sobras para marcar. No futebol atual, onde tudo é radicalmente vertical, é muito comum ver times que praticam o Jogo de Posição repetindo isso: usando os pontas e a largura do campo para acelerar as jogadas e cruzar para que os meias concluam. Um interior que finaliza, não que constrói.
E Bellingham nasceu exatamente nessa cultura, a de um futebol posicional e vertical que busca transportar o eixo de construção para as pontas, usando e abusando dos cruzamentos e esperando que os meio-campistas sejam bons finalizadores, e não necessariamente bons construtores. Portanto, Bellingham se desenvolveu como um jogador fisicamente muito privilegiado, excelente em inverter o jogo acionando os pontas em velocidade e muito esperto para invadir a área, usar seu físico para ganhar superioridade por lá e antecipar os cruzamentos para marcar. Não é que Bellingham não possa tabelar; na verdade, seu físico pode ser muito útil para sustentar as paredes e Ancelotti, se quiser, pode direcionar seu excelente faro para atacar espaços para potencializar o movimento de ruptura no toco y me voy. Ancelotti poderia ter mantido o sistema da temporada passada, apenas incluindo Bellingham nele, e passado a usar o físico de Jude para sustentar as tabelas e sua inteligência para romper os espaços no toco y me voy. Afinal, Jude só tem 20 anos, ainda vai evoluir seu jogo.
Mas Ancelotti não fez isso porque, como disse antes, o jogo do Real Madrid era feito em volta de Benzema, um jogador geracional e um facilitador absurdo. A perda de um craque do quilate de Karim é um baque desproporcional para qualquer sistema de jogo do mundo. Assim, Ancelotti acabou montando um time para Bellingham, ao redor dele. Se você tira Benzema de um time e o faz jogar ao redor de Bellingham, isso significa que o time que sempre jogou com toques curtos, jogadores próximos e tabelas agora vai jogar para valorizar o jogo de Jude. Ou seja: muitos cruzamentos para a área e passes longos para aproveitar a capacidade sobre-humana de Bellingham de usar seu físico para criar superioridade na área e antecipar as bolas ali. O Real Madrid começa a desenvolver o vício de lançar a bola para os pontas cruzarem. Isso significa que o Real Madrid começou a espetar mais os laterais (já que Vini e Rodrygo jogam por dentro) e lançar bolas para que eles cruzem já automaticamente procurando a antecipação de Bellingham. Menos bola ao pé e mais bola no espaço. Assista a um jogo do Real Madrid na atual temporada e repare quantas vezes Bellingham faz um lançamento preciso para um lateral que ataca a ponta em velocidade e imediatamente invade a área para antecipar o cruzamento desse lateral. Bellingham foi uma contratação não tão boa principalmente porque seu estilo nada tem a ver com o estilo de Modric, Camavinga, Valverde, Tchouaméni, Vini e principalmente Rodrygo, justamente os pilares do Real Madrid que se davam tão bem quando o time jogava por Benzema. Jude precisa de cruzamentos e passes longos para que o seu melhor possa florescer, porque joga melhor em um time mais alargado e com mais cruzamentos, mais posicional e vertical. Isto é um pesadelo para Vini, Camavinga, Modric, Rodrygo e cia. Eles precisam, como falei antes, de bola ao chão e no pé e de um jogo muito curto e lento. Se você não fizer tabelas e apenas cruzar para a área, você mata o jogo de meio elenco do Real Madrid. Bellingham não é o 10 que tem o passe criativo para melhorar os atacantes (como Benzema fez, sendo o 9 e 10 do Madrid), é o 10 que antecipa os cruzamentos. Assim, Rodrygo, por exemplo, não tem mais as chances que Karim gerava (toques curtos etc.) Agora, Rodrygo tem as chances que Jude gera, ou seja, sem mais passes curtos, criativos e precisos, e muitas sobras de cruzamentos para a área e bolas divididas. Como Jude é muito capaz de tirar vantagem dessas situações, é perfeito para ele. Para Rodrygo, é o pior possível. O único jogador do Real Madrid com um estilo mais próximo ao de Bellingham é Kroos, que também é um jogador mais posicional, de passar e esperar ao invés de passar e se mover (toco y me voy), mas Kroos é um jogador de Jogo de Posição “das antigas”, pausado. Jude é verticalidade. O resto dos principais jogadores de meio e ataque do Real Madrid têm um estilo totalmente diferente e, por ter perdido Benzema, o pilar do time, Ancelotti acabou achando mais viável adaptar o elenco a Jude, e não Jude ao elenco. É o exemplo perfeito de que o ataque funcional não é “deixar os jogadores confortáveis em campo”, porque alguns jogadores se sentem mais confortáveis em sistemas posicionais.
Bellingham pode ser o melhor da geração, mas sua característica é quase oposta à do elenco do Madrid. Jude seria perfeito, por exemplo, no Bayern de Tuchel, no Arsenal de Arteta, no Manchester City de Pep, até no Barcelona de Xavi. Pensando em times mais funcionais, Bellingham também se daria bem no Liverpool de Klopp, que é um time que prefere encurtar a distância até o gol o máximo possível e acaba exigindo que seus meias sejam menos armadores e mais concluidores (vide Wijnaldum). Mas no Real Madrid de Ancelotti, moldado (intencionalmente ou não) para jogar um jogo mais funcional, curto e de aproximações, um jogador que tem inversões cirúrgicas para os pontas e que se beneficia de cruzamentos para a área não é o encaixe mais natural do mundo.