“Porque se chamava moço
Também se chamava estrada
Viagem de ventania” […]
— Clube da Esquina nº 2
1.
Como explicar o atual campeão da América, que concluiu a sua provavelmente mais brilhante temporada há poucos meses, ser hoje o lanterna do campeonato nacional? É o que eu tentei, num áudio de 3 minutos, responder a um amigo quando perguntado sobre o que estaria acontecendo com o Fluminense.
Não era o tipo de pergunta, como outros amigos me fizeram ainda na madrugada de quarta, com pretensão de deboche e zoação. Seja por ser simpático ao Fluminense, apesar de santista, ou seja por que outra razão for, esse amigo realmente estava intrigado. Queria entender o fato de uma subida tão mágica aos ambientes mais elevados de uma dimensão celeste ter se convertido em tão pouco tempo em uma vexaminosa humilhação terrena.
Falei dos desfalques, falei dos pontos bobos perdidos por erros individuais e entregadas inexplicáveis, falei do jogo contra o Cruzeiro e outros jogos não terem sido compatíveis com o placar.
Falei do Diniz preferir jogadores tecnicamente superiores, por mais que velhos, a jogadores não tão finos mas que fossem rápidos, fortes e jovens — o que o faz, na impossibilidade de contratar jogadores tecnicamente superiores e jovens, por serem mais caros (como o caso do Luiz Henrique), contratar jogadores velhos e em fim de carreira.
Entre trabalhar com jogadores mais jovens e não tão refinados tecnicamente, ou jogadores simplesmente físicos, ele prefere trabalhar com jogadores velhos que possuam esse refino, já que não consegue trazer jogadores desse perfil que sejam também jovens. É uma escolha que eu respeito e que pode dar os seus resultados, mas é aquilo: na hora em que o elenco encurta, a coisa aperta.
Falei dessas e de outras razões, mas no fim das contas esse acontecimento se explica menos por isso do que pelo fato consumado desde a fundação do mundo: de que para cair, basta não saber estar em pé. E o Fluminense, em que pesem as circunstâncias, não soube.
2.
Chico fez 80 anos. A talvez mais brilhante geração musical do Brasil está chegando ao fim. Alguns já se foram, outros estão por ir. O aniversário do Chico, que ganhou do Fluminense o “presente” de quarta-feira, me fez pensar no fim dos nossos gênios e em especial, talvez porque o estava ouvindo, no daquele que aparenta estar mais combalido pelo tempo: Milton — que por sua vez era o outro lado do confronto de quarta.
É curioso como a voz de determinados artistas são uma imagem sonora do lugar de onde vêm. Quem suspeitará que a voz de Caymmi ou João Gilberto não sejam baianas? Ou que a de Vinicius ou Jorge Ben não sejam cariocas? A voz do Milton é o Brasil e é também o mundo, mas ela é sobretudo, a despeito da sua origem carioca, Minas Gerais. As montanhas, os pedregulhos, as rochas — a brutalidade toda dos ferros está ali, no metálico e doce que nela se confundem. E o sonho. O sonho de cor em meio ao cinza. Lirismo e tragédia: a voz de Milton Nascimento.
Entendi ontem, aliás, o porquê de o mineirão ser tão mais bonito azul, e o porquê de Minas Gerais, com todo respeito ao Galo, ser o Cruzeiro: se deve ao contraste do concreto da Pampulha — e da alma mineira — com a vivacidade daquele azul. A lógica inversa se aplica ao Botafogo, por exemplo, cujo alvo e negro contrastam com a radiância das cores cariocas, que o tornam, naquele contexto, diferente. Não que o Galo não possa ter também a sua beleza: mas ali, em Minas, a vida está no azul.
Pois bem: o Mineirão estava radiante, e por mais decepcionante que fosse o feito do Fluminense, não era possível não reparar naquilo. Aliás: o Mineirão, quando azul, <é> radiante — ele irradia naturalmente. Os bandeirões e a paixão são o adorno, mas apenas a gente azul, e nada mais, são suficientes: ele pairaria resoluto no espaço.
Fluminense e Cruzeiro que se encontram em Chico e em Milton. Chico é a mistura do verde, do branco e do grená e Milton é o cinza contrastando com o azul. Milton é a vida permeada pela morte — o Cruzeiro, e Minas Gerais —, e Chico é a mistura exuberante e cálida de cores vivas — o Fluminense e o Rio de Janeiro. Fluminense e Cruzeiro: Chico Buarque de Hollanda e Milton Nascimento.
3.
Ao êxtase humano se segue sempre uma morbidade carregada pelo “o que fazer agora?”. As coisas acabam. Embora a eternidade exista, nada do que é humano é eterno. E isso é triste — ou não. O tempo é isso: um demolidor de encantos. Importa viver o instante e reverenciar o talento. Eles estão indo. Já se foram.
O Fluminense recentemente campeão da América é hoje o lanterna do campeonato brasileiro e Chico e Milton, outrora a vanguarda jovial e criativa da música nacional, são ambos octogenários. O novo sempre vem, mas a passagem do tempo sempre dói. Que o Fluminense saia desse lugar de vergonha — vai sair — e vida ainda muito mais longa aos nossos gênios.
Parabéns, excelente e emocionante texto!
Agradecimentos de um mineiro celeste…