Quem é ateu
E viu milagres, como eu
Caetano Veloso
A fé e a superstição se encontram nos quatro corners do campo. Há quem agradeça a Cristo depois de um gol; há quem acredite no paganismo dos deuses do futebol; há quem jure de pé junto ter visto um certo Sobrenatural de Almeida trazendo maus agouros ao time do coração; e há, céticos como só, os que dizem que se “macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano acabaria empatado”. Tal frase, aliás, ora é atribuída a Neném Prancha, histórico filósofo do desporto brasileiro, ora a João Saldanha, jornalista, comunista e treinador da Seleção de 1970 que não foi à Copa.
Meio filósofo, meio comunista e inteiro baiano, Jorge Amado era ateu, mas afirmava ter visto muitos milagres no candomblé. “E são milagres do povo”, dizia o autor de romances tais quais Capitães de Areia, Gabriela, Cravo e Canela e Dona Flor e Seus Dois Maridos. Já eu, que não sou filósofo, nem romancista, nem baiano, nem jornalista e, se não ateu, sou à toa no quesito religioso, tenho visto muitos milagres do futebol quando assisto ao Mirassol jogar. Entretanto, não me refiro ao desempenho tático do time, tampouco a seus resultados – fantásticos em se tratando de uma equipe estreante em Brasileirões e com um dos orçamentos mais baixos da atual edição. Neste texto, quero me debruçar sobre o elenco do Leão Caipira, o mais inacreditável elemento do enredo mágico que sustentou a agremiação do interior paulista no quarto lugar da Série A.
Essencialmente, o plantel do Mirassol é formado por profissionais proscritos no universo futebolístico. Parte dos atletas sofreu enorme rejeição, ouviu ensurdecedoras vaias e recebeu alcunhas famosas no metiê da bola, como “bagre”, “pangaré”, “perna-de-pau”, daí para baixo. Outra parte nem sequer teve o privilégio de se deparar com tais maledicências, posto que elas geralmente se adstringem aos grandes palcos e às camisas pesadas. Afora o fato de, somados, não ganharem mensalmente o que embolsa Memphis no Corinthians, os jogadores do clube estreante na primeira divisão brasileira, em sua maioria, ou são apostas pinçadas em times menores – tão inexperientes na elite quanto a camisa que hoje vestem – ou foram escorraçados de times maiores.
Um dos mais importantes axiomas do esporte bretão ensina que todo grande time começa com um grande goleiro. Não me espanta, portanto, a excepcionalidade no caso de Walter: eterno reserva de Cássio no Timão, o experiente arqueiro tanto fez quatro excelentes temporadas no Cuiabá que não caiu com o Dourado para a Série B; permaneceu na A com o Mirassol para 2025 – e fez jus à confiança que recebeu, sendo agraciado com uma Bola de Prata. O contraste fica perceptível logo no currículo de seus fiéis escudeiros, os zagueiros João Victor e Jemmes. O primeiro, com 28 anos, até chegou a ornar as tradicionais vestes de Vitória e Guarani, contudo sempre na segunda divisão – até a presente época, ele havia atuado em apenas um jogo no principal campeonato do país, na longínqua edição de 2016, por um já rebaixado Santa Cruz. O segundo, por sua vez, nem sequer por um minuto havia pisado num campo de Série A: passou a maior parte de sua carreira nas divisões inferiores de São Paulo, sob as cores do Capivariano, até estrear na Segundona nacional em 2024, aos 24 anos, representando o Vila Nova.
Caminhos mais ou menos similares foram percorridos pelos meio-campistas José Aldo, 27 anos, ex-Pelotas, Paysandu e Ituano, e Danielzinho, 31 anos, cujo auge da carreira até pouco tempo fora atuar por Sampaio Corrêa, Grêmio Novorizontino e pelo próprio Mirassol na Série B. À frente, o ponta Negueba também é remanescente do acesso conquistado pelo Leão Caipira em 2024 – no clube desde 2022, ele tem 25 anos e pertencia ao modesto Globo, do Rio Grande do Norte, de onde saiu para se destacar por empréstimo no ABC, do mesmo estado. Igualmente contratado há 3 anos, o centroavante Cristian Renato passou boa parte deste período cedido temporariamente a clubes da estirpe de Marcílio Dias-SC, Boavista-RJ e Figueirense (esse que já foi grande, mas há tempos agoniza na Série C). No início desta temporada, aliás, o camisa 9 esteve emprestado ao Joinville-SC. Seu principal concorrente, Chico da Costa, é brasileiro, porém fez carreira no México, no Paraguai e na Bolívia, sendo esta a primeira temporada na elite do país de origem. Recém-chegado, Alesson talvez tenha o melhor currículo do setor ofensivo: com passagens apagadas na Série A por Paraná Clube, Bahia, Cuiabá e Goiás, viveu seu melhor momento na B, pelo Vila Nova.
Vejamos agora aqueles que chegaram em situação oposta. Na lateral esquerda, Reinaldo, outro vencedor da Bola de Prata (esse também escalado na seleção do campeonato da CBF) foi do céu ao inferno – e do inferno ao céu – algumas vezes em sua consagrada trajetória. Espinafrado até pelas cadeiras vermelhas do Morumbi na primeira passagem pelo São Paulo, o ala teve de suar as camisas de Ponte Preta e Chapecoense antes de ser novamente digno de vestir o manto tricolor. Ao longo de quase 400 pelejas em trincheiras são-paulinas, caiu nas graças da Torcida que Conduz e virou Kingnaldo – para, logo em seguida, desvirar, deixando o Bem Amado outra vez sob uma enxurrada de críticas. No Grêmio, já curtido de tanto apanhar, o defensor canhoto viu a Avalanche de festejos aos gols do mandante costumeiramente performada no velho Olímpico se converter em uma torrente de reprimendas às suas atuações na nova Arena.
Seu reserva, Felipe Jonathan, viveu situação parecida no Santos, tal como o outrossim suplente Yago, no Fluminense. Shaylon, anunciado na janela de meio de ano, é mais um a vestir a camisa verde e amarela que nunca foi unanimidade no São Paulo. Pelo Cruzeiro, Neto Moura até dispôs de certa relevância na B, no entanto, assim que chegou à A, despacharam-no para o interior paulista. Carlos Eduardo, depois de dar um prejuízo enorme ao Palmeiras, ainda provocou dores de cabeça em quem acompanha os nouveau-riches Athletico e Bragantino antes se filiar ao Mirassol. Todos interessantes, estes casos não intrigam tanto quanto a sequência que apresento adiante, iniciada pelo titular absoluto Gabriel Santana. Um dos símbolos do Flamengo do Velho Testamento, o veterano meia não cabe na memória dos rubro-negros senão em seus piores pesadelos. Hoje mal-acostumada com Arrascaeta e Carrascal, considerável parcela da Magnética Torcida nem sequer deseja se lembrar daquele que vestiu a camisa 10 da Gávea entre 2013 e 2017, por mais de 200 ocasiões. Ao final do período, populares anunciaram o passe do armador por módicos R$ 1,99 em um famoso marketplace virtual.
Da mesma época e com o mesmo sobrenome, Alex Santana – mais conhecido como Alex Muralha – foi outro a assombrar as noites rubro-negras. Fazendo jus ao apelido, o goleiro chegou a ser convocado para a Seleção, porém uma série de falhas bisonhas fizeram-no sofrer uma das maiores humilhações públicas da história – e contínuas – do desporto durante a estadia no Ninho do Urubu. A presença em fase tenebrosa de uma gigante agremiação carioca e a semelhança no registro civil não são, entretanto, as únicas coincidências nas vidas de Gabriel e Muralha. Ambos igualmente vestiram a camisa do Coritiba, onde sofreram tantos enxovalhos quanto no Flamengo. Ao arqueiro a torcida até dispensou tratamento ligeiramente melhor, posto que se destacara em campanha de acesso à Série A em 2019. Todavia, a lua de mel acabou logo no ano seguinte, quando a pressão das arquibancadas levou a diretoria coxa-branca a negociá-lo com – veja só – o Mirassol, à época na Terceira Divisão nacional. O bom desempenho na competição fez com que o Coxa o recontratasse, em decisão muito contestada por seus aficionados. Não deu outra: o desempenho de Muralha novamente voltou a cair, e novamente ele foi cedido ao Leão Caipira, do qual não mais saiu, tornando-se ídolo e uma das principais peças do vice-campeonato da Segundona em 2024. Com este mesmo status no interior paulista, Gabriel Santana é, até hoje, rememorado sob o apelido pejorativo de “Gabriel Covid” por quem veste verde na capital paranaense.
Estes não foram os únicos dois jogadores do atual elenco do Mirassol que fracassaram no Coritiba. O titular da lateral direita leonina, Lucas Ramon, chegou ao Coxa em 2020, depois de se destacar por Londrina e Bragantino, e saiu pela porta dos fundos, com apenas 4 partidas disputadas. O ponta Edson Carioca, assíduo no onze inicial mirassolense até sofrer grave lesão no início de outubro, quase não entrou em campo ornando as cores alviverdes durante a Série B de 2021. O volante Matheus Bianqui, por fim, até agradava aos treinadores coritibanos que o comandaram entre 2023 e o início deste ano, contudo nunca gozou de igual prestígio junto aos torcedores. Apesar de constantemente utilizado no Campeonato Paranaense de 2025, o clube desovou o atleta em uma equipe de divisão superior, tamanho o ódio emanado das arquibancadas do Couto Pereira contra seu futebol. Ainda que não tenha se tornado titular na Primeirona, Bianqui entrou no decorrer de treze partidas e chegou a marcar um gol anulado contra o Corinthians em sua estreia no novo emprego.
A relação entre Coritiba e Mirassol não acaba aqui. Responsável pelo acesso do Leão Caipira no ano passado, o treinador Mozart Santos sagrou-se campeão da divisão de acesso pelo Coxa neste ano. A despeito disso, seu nome nunca foi unanimidade na Torcida Que Nunca Abandona, que o criticou nos mesmos moldes do que os santistas fizeram com Fábio Carille em 2024: satisfeita com os resultados, insatisfeita com o desempenho. Talvez por isso, Mozart tenha jogado a pedida salarial nas alturas e forçado a saída do clube que recolocou na elite do futebol brasileiro. A quem não acompanha de perto, a atitude do torcedor coxa-branca pode parecer desarrazoada, entretanto vale ressaltar que o Alviverde do Alto da Glória bateu o recorde outrora ostentado pelo Santos de pior campeão da história da competição: somou os mesmos 68 pontos, porém conquistou 19 vitórias, contra 20 do Peixe. A alcunha de visitante mais indigesto veio ao custo de uma modesta décima campanha como mandante – foram sete empates em 0x0 no Couto Pereira, além de uma derrota por 2×5 contra o lanterna Paysandu. De modo similar, a positiva marca de melhor defesa contrastou com o quinto pior ataque do certame – 39 gols em 38 jogos –, superior somente aos três últimos colocados e o 16º. Um dos responsáveis pelo vexatório índice foi o centroavante Dellatorre, com apenas 4 tentos anotados – no ano anterior, foram 10, número que o consagrou como artilheiro do Mirassol no mesmíssimo campeonato. O camisa 9 não foi o único ex-Leão no presente escrete alviverde: a ele se juntaram os laterais Alex Silva e Zeca e os pontas Clayson e Iury Castilho. Todos foram alvo de constantes críticas de quem acompanhou de perto os jogos do time promovido à Série A de 2026. Os três primeiros, aliás, mal tiveram tempo de curtir a conquista: logo que a taça pousou em Curitiba, receberam a notícia de que não permaneceriam para o ano vindouro.
Agora vamos às ironias do destino: Castilho, que marcou o gol do título numa apertada vitória por 2×1 contra o já rebaixado Amazonas, era titular do Mirassol na Primeirona até transferir-se – a contragosto, diga-se – de volta à Segundona, durante a qual passou a maior do tempo no banco. Quanto a Mozart, ele não só se recusou a renovar com o clube do interior paulista no início do ano, como também negou a oportunidade de para lá retornar após eliminações contra o modesto Maringá, nas quartas-de-final do Campeonato Paranaense, e contra o modestíssimo Ceilândia, na primeira fase da Copa do Brasil. A segunda opção do Leão Caipira foi Rafael Guanaes, que era a segunda opção do Coxa caso Mozart optasse por disputar a Série A em 2025. O melhor treinador da mais recente edição do Brasileirão tanto para a ESPN quanto para a CBF, inclusive, caiu do comando do Atlético-GO em março, depois de avançar à segunda fase da CdB e empatar com o Inhumas também pelas quartas do estadual. A diferença é que, ao trocar o dono da prancheta por conta de tropeço na ida, o Dragão avançou até as semis do Goiano, porém terminou em 11º no campeonato nacional do segundo escalão. O Coxa, que não dispensou seu comandante a despeito de ficar mais cedo pelo caminho nas duas competições do início do ano, finalizou-o em 1º. O Mirassol, por seu turno, resolveu demitir Eduardo Barroca, com quem iniciara a atual temporada, diante de dois meses irregulares no Paulista. Foi a segunda vez em 15 anos que a equipe utilizou de tal expediente contra um treinador. Foi a primeira vez que um time estreante em Série A contratou um profissional igualmente novato na competição, recém-demitido de um adversário no tier inferior, no meio da temporada, e se classificou para a Copa Libertadores da América.
Teria o Mirassol cometido campanha tão espetacular se renovasse com Mozart ou se, seguindo a tradição de temporadas anteriores, preservasse Barroca? Seria muito improvável, haja vista os 63 gols do Leão em 38 rodadas, contra as já mencionadas 39 balançadas de rede do alviverde paranaense no mesmo recorte em divisão inferior, ou o quarto lugar da Série A do auriverde interiorano, com 67 pontos, versus o oitavo lugar da Série B do alvirrubro CRB – sob os auspícios do barroquismo –, com 56. Ora, no entanto quem ousaria prever êxito tão absoluto de Rafael Guanaes, cujo Operário Ferroviário terminou em sétimo na Série B de 2024, com 58 pontos e míseros 34 tentos anotados? Fica difícil saber até se Guanaes seria capaz de levar o Coxa ao Tricampeonato da B ou de propiciar desfecho distinto de um melancólico meio de tabela ao sempre favorito ao acesso Atlético-GO, mesmo depois de eleito o melhor profissional de sua área no país em 2025.
“Eis o mistério da fé!”, dizem os católicos, extasiados com a ressurreição de Cristo que o padre acabara de celebrar na missa. Disse o craque Tostão, em coluna escrita para a Folha de S. Paulo em 22/11/2025: “Qual o segredo do Mirassol, quarto colocado que disputa pela primeira vez a Série A do Brasileirão e que já está classificado para a próxima Libertadores? Além das qualidades individuais e coletivas e do ótimo comando do técnico Rafael Guanaes, o futebol possui muitos mistérios e razões que estão acima dos nossos conhecimentos.” Quem dera fosse o esporte que move bilhões de apaixonados e trilhões de vis metais a única fonte dos enigmas do mundo. Não deixa de ser a mais fascinante, todavia. A um engenheiro incapaz de erigir um sobrado jamais se confiaria a missão de projetar um arranha-céu. Sem embargo, quando se adentra um campo de grama verde e linhas brancas que o delimitam em 105 metros de largura e 68 metros de comprimento, a paisagem se modifica: um treinador que não conseguiu permanecer por 3 meses em uma das principais equipes da Série B leva ao G-4 o time então considerado mais fraco da Série A.
Na mesma coluna em que se confessou enlevado pelo intrigante caso Mirassol, Tostão comentou, seis parágrafos mais cedo, o desempenho da Seleção Brasileira em amistosos contra Senegal e Tunísia. Para quem outrora vestiu a camisa mais famosa do mundo, falta ao escrete atual “ter ao menos duas opções estratégicas”. A primeira é “apropriada contra (…) fortes seleções, que marcam mais à frente e avançam com muitos jogadores, deixando grandes espaços na defesa para os hábeis, rápidos e talentosos atacantes brasileiros”. A segunda, “a ser usada contra equipes que marcam mais atrás, (…) é ter mais o domínio da bola, trocar passes no meio-campo e na intermediária e esperar o momento certo para alguém finalizar”. O ideal mesmo, conforme o articulista, artilheiro e médico, é valer-se de igual versatilidade que marcou sua trajetória pessoal e “usar as duas estratégias na mesma partida, de acordo com o momento”.
Sim, é verdade que Carlo Ancelotti tem poucas semanas de treinamento e Rafael Guanaes, muitas. Entretanto, é o segundo quem logra êxito em pôr onze jogadores vestidos de verde e amarelo para jogar no modelo vaticinado por Doutor Tostão – isso sem contar com os tais “hábeis, rápidos e habilidosos atacantes”, ao menos no papel. Parece até que o implacável tempo não alivia para pentacampeões de Champions League, nem se munidos dos melhores, mais caros e mais aplaudidos jogadores do planeta. Resta aos vencedores de Copas Paulistas e expedicionários nas trincheiras das divisões inferiores a tarefa de salvar o encanto de um já moribundo futebol, apodrecido pela grana de caça-níqueis online, combustíveis fósseis e chefes-de-estado preocupados em limpar a própria barra.
Com a segunda pior média de público do Brasileirão, a popularidade do Mirassol não chega aos pés daquela emanada pela Seleção de seu país. Contudo, nos campos país afora, a equipe do interior paulista indubitavelmente promove Milagres do Povo, guardadas as devidas proporções com o que flagrou Jorge Amado nos terreiros da Bahia. Este time, em parte formado em 2025, em parte partícipe de um trabalho de longo prazo, é a prova viva de que qualquer um pode jogar bola, e não apenas os endinheirados e adulados pela mídia. É também a confirmação de que esses “quaisquer uns” não são máquinas descartáveis, mas são pessoas de carne e osso, ainda que investidos de elementos mágicos, metafísicos – e quiçá sagrados – quando expostos aos 90 minutos de um duelo. É, por fim, a evidência, necessitada por aqueles que têm fé no futebol, de que o desporto bretão é tão universal quanto particulares são os que o praticam.
Afinal, como explicar que o Coritiba, Campeão Brasileiro e frequentador assíduo da primeira divisão há não muito tempo, tenha penado tanto nos últimos anos, enquanto o Mirassol só sói ascender, com tantas contratações em comum entre ambos? Seriam explicações o ambiente mais leve, o CT mais moderno, a torcida mais complacente, os dirigentes mais competentes? Seriam desvantagens dispor de mais torcida, mais tradição, mais dinheiro? Ora, fosse isso, o Flamengo estaria na quarta divisão a essas horas. Não obstante, atletas malogrados nas praias do Rio de Janeiro se tornam ídolos no interior de São Paulo, a exemplo de tantos outros companheiros seus, renegados nas capitais, nos litorais, nos Nortes e nos Suis, ora pelas vaias e repreensões de quem se considera grande, ora pela falta de oportunidade nos campos da elite em que hoje brilham. Outrora submersos num pesadelo, tais rapazes enfim puderam se regozijar na tardia realização do sonho de quase toda criança deste Brasil profundo: desfilar com louvor a habilidade que sabem possuir, mesmo que recôndita em algum desvão de seus corpos, nos estádios mais ilustres do país. E há coisa melhor do que fazê-lo vestindo verde e amarelo?
Se a nossa Seleção anda tremendamente sem graça, o nosso Mirassol dá gosto de ver e de gostar do jogo. Não há ali somente um time que pratica o esporte com destreza, desenvoltura e coragem; há um segredo valiosíssimo. Como é possível, em um só canto, potencializar tantos talentos desperdiçados em tantos outros lugares? Certamente, muitos cartolas pagariam milhões – ou até bilhões – por tal resposta. Mas o charme do futebol reside justo no fato de que não tem como comprá-la. A curiosidade, no entanto, não deixa de pairar sobre o tão pitoresco caso. Palpites não faltam: para uns, trata-se de uma feliz coincidência, que acaba o ano que vem; para outros, as surpresas não cessam por aqui e se estenderão ao longo da próxima Libertadores.
Há quem diga que o desempenho muito acima do esperado se deve ao pagamento de bichos com valores estratosféricos (inusuais até para os padrões de rivais mais ricos, leia-se Flamengo e Palmeiras) após as vitórias. Isso traria uma motivação extra aos atletas, cujos vencimentos-base relativamente baixos se elevariam conforme os três pontos se acumulem na poupança da equipe. Há também quem ponha toda a culpa de tamanho sucesso em Juninho Antunes, dirigente voluntário do Mirassol há décadas, avesso a holofotes e às loas que tem recebido diuturnamente da imprensa. O hábil administrador seria o responsável por acompanhar contratações, manter as contas em dia e empreender vultosos investimentos em infraestrutura – com o famigerado dinheiro da venda de Luiz Araújo, o clube construiu um CT de ponta e, mais recentemente, reformou o estádio. A chegada do Paulinho como braço direito na gestão desportiva, ato contínuo ao pendurar de suas chuteiras, é tida mais um trunfo do Leão Caipira, para quem a experiência do ex-volante de Barcelona, Tottenham e Corinthians teria sido essencial para atravessar os mares revoltos da Série A.
Embora recompensas pecuniárias, um ambiente bem gerido, diretores com conhecimento de causa e tecnologia avançada de monitoramento e análise de desempenho contribuam para o sucesso de um time, custa a qualquer especialista cravar tais razões como as definidoras de campanha tão extraordinária. Por mais relevantes que sejam a qualquer agremiação, os fatores anteriormente listados, no limite, continuam incapazes de explicar como tantos jogadores antes considerados muito ruins se tornaram tão bons – e como um técnico que, conforme suas próprias palavras, veio da terceira divisão do campeonato Paulista, alcançou o posto de melhor do Brasil no ofício. Fato é que o Futebol, justo na época histórica em que caminha para se tornar cada vez mais homogêneo e pasteurizado, pegou carona na surpresa dos dribles, passes e chutes impressos no gramado do Maião – onde o Mirassol terminou o Brasileiro invicto – para recitar os versos de Gilberto Gil: “não adianta nem me abandonar/porque mistério sempre há de pintar por aí”. Em tempos nos quais o esporte que conhecemos e amamos começa a, inexoravelmente, quedar-se tão irreconhecível, não há Milagre maior do que enigma como esse.
