Chegou um tempo em que eu precisava sair de casa sozinho para acompanhar o Flamengo. Não tinha TV a cabo em minha casa, e a melhor opção era o bar do Queijinho. No bar, além dos clientes nas mesas, uma multidãozinha de mais ou menos trinta pessoas entre a calçada e a rua, algumas em pé, outras sentadas nas bicicletas, e todos procurando a TV. Eu exercitava o pescoço. No Maracanã, cinquenta e nove mil pagantes, disse o repórter.
Época que o São Paulo era o melhor time do Brasil. Seria tricampeão brasileiro depois de vencer a Libertadores e o Mundial. Mas o Flamengo tinha uma boa linha defensiva, tinha o Ibson e tinha o Cristian que chutava forte. Ganhamos por um a zero, gol do Ibson, e a câmera filmava a torcida que não parava de cantar no estádio. Eu tinha achado a coisa mais linda do mundo.
Até que Cabañas. Dor muito maior que fora o Santo André. O primeiro jogo eu vi no bar do Queijinho; o segundo eu vi em casa. Era jogo televisionado. Despedida do Joel. Festa no Maracanã. Como não houvesse sala propriamente dita em casa – os cômodos da minha casa nunca tiveram função clara para mim, não dava para dizer o que era sala, copa ou um quarto -, eu e meu pai e meu irmão mais velho assistimos ao jogo num desses quartos: meu irmão e eu na beirada da cama, meu pai no chão, a TV em cima de uma cômoda. Flamengo eliminado. Eu e meu irmão dormimos ali mesmo, e ele chorava sem fazer barulho.
Tempo depois, foi em outro bar que assisti Flamengo 5×2 no Palmeiras. Na minha percepção de menino, gostava de ver jogar Marcelinho Paraíba, Kleberson e Ibson. Nesse dia, um conhecido adulto, Toninho, me viu e me convidou para sentar à mesa com ele. Era cliente do meu pai, seu irmão mais novo era conhecido na rua como Morcela. Bebi coca-cola e comi moela de frango pagos por ele.
Já tinha provado o bom da vida tempos atrás. Os bêbados do bar ao lado da minha casa me fizeram chorar por uma semana inteira, mas o Obina me salvou do rebaixamento. Eu tinha levado a coisa a sério. Depois veio a copa do Brasil, e o Obina melhor que Eto’o. Mas foi com o campeonato brasileiro, é claro, que a emoção fez mais forte. Desacreditei. Gritei, chorei e fui para praça da cidade ver a carreata. Foi o melhor dia da minha vida? Adriano, Petkovic… Como eu posso dizer? Eu também gostava demais que Flamengo fosse o time do Andrade, do Williams e do Ronaldo Angelim.
Também me diverti com aquele time esquisito de 2013. Jayme, Paulinho, Hernane Brocador, Luiz Antônio. Meu pai morria de rir com essas figuras. Maior barato. Contra o Botafogo, quartas de final, foi a maior alegria.
Então veio 2019. Outros tempos de futebol. A diretoria havia se profissionalizado e o futebol já era outro esporte depois da revolução dos espaços, de Guardiola e Mourinho. Aprendi sobre marcação zonal e homem a homem, organização ofensiva e transição, gegenpressing (ou counterpressing), jogo de posição, saída a três, amplitude, meio-espaço, entrelinhas, domínio orientado. Agora eu entendia e sabia falar de futebol. Estava todo mundo falando assim.
Ainda assim uma delícia: os melhores jogadores que já vi no meu time, o melhor treinador e a conquista da Libertadores. Eu que tinha assistido às finais do São Paulo e do Internacional sem piscar. Rogério Ceni falhou. Fernandão se consagrou. As derrotas de Grêmio e Cruzeiro também me marcaram. Numa dessas, fui convidado para uma festa no mesmo dia. Não fui, fiquei em casa. Agora, Flamengo campeão. Que coisa. Assisti com amigos.
E vieram os anos de hegemonia. Ganharam mais títulos, naturalmente. O Flamengo venceu mais uma Libertadores em 2025. O jogo foi mais ou menos o que se esperava. Assisti ao jogo comendo amendoim e vendo as mensagens no grupo do whatsapp. Até usei as redes sociais para demonstrar que estava contente. Mas não chorei, não gritei, não teve rua. No dia seguinte eu tinha compromisso. Pensei em escrever, mas não há muito que dizer. Que eu detesto os shows de abertura e o formato de final única talvez. Hoje em dia inventam muita coisa.
[Nota]: o título faz referência ao último verso do poema machadiano Soneto de Natal: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”
