NADANDO CONTRA A MARÉ

O artigo “An alternative analysis of the World Cup”, de Juanma Lillo, auxiliar e mentor de Pep Guardiola, foi paradigmático para o debate tático no futebol. Ao questionar a homogeneidade tática e técnica das seleções durante a Copa de 22, Lillo questionou a própria dominância do modelo que é ideólogo. Desde então, formas alternativas de se pensar o jogo ganharam espaço.

Com isso no horizonte, nosso olhar na primeira rodada de Euro se voltou para seleções que querem fazer diferente – nessa thread, mais especificamente, Hungria, Croácia, França, Turquia e Itália. Aspectos como não ocupar racionalmente os espaços, sobrecargas no setor da bola a partir de movimentos amplos, menor rigidez posicional, menor fragmentação entre base e entrelinhas e menos valorização do uso da amplitude máxima do campo são, de alguma forma, comuns a todos estes times, apesar de serem obviamente equipes diferentes em natureza. Vamos a eles, então.

HUNGRIA

A escolha por começar a thread pela Hungria de Marco Rossi é simples: é o exemplo mais claro e evidente de futebol anti posicional entre todas as seleções. É, inclusive, muito semelhante em algumas dinâmicas ao Fluminense de Fernando Diniz. O próprio treinador afirma: “We are playing a kind of football that’s less positional and more relational”.

Vejam, primeiro, aqui no campinho os comportamentos básicos do time. Se juntar na esquerda com Szoboszlai guiando todas as interações da equipe:

Toda essa influência dinizista e os príncipios extremamente relacionais foram vistos na estreia contra a Suíça. “Paralela cheia”, escolher um lado, juntar-se exageradamente nele e atacar por ele, movimentos amplos, associações curtas, tocar e andar e liberdade total para que os meias – principalmente Szoboszlai – participem da 1a fase de construção.

No contexto do jogo, no entanto, sendo um time com claras limitações técnicas, perderam e não performaram como fizeram em outros momentos. Vejam nas imagens abaixo: a Hungria conseguia ter a bola e atacar a partir de seus princípios, mas a Suíça marcava muito bem.

Para os que querem se aprofundar em Hungria, sobretudo no período antes da Euro, temos em nosso site este texto de Jamie Hamilton.

FRANÇA

A França é um fenômeno, mas que dificilmente ficaria de pé sem a mente do pouco apreciado Didier Deschamps. Deschamps quer ganhar no pé: no pé dos craques da frente e de bons operários atrás. E ganha – 2018 e 2022 mostram. Para isso, deixa seus craques livres, como disse Mbappe:

Monta o time ao redor de seus craques na frente, cria sistemas de compensações, os deixa confortáveis. Faz o que precisa, mas principalmente se adapta ao que tem em mãos. 2018 é uma coisa, 2020 outra, 2022 outra e agora, 2024 outra – veja no campo:

A capacidade de adaptação de Deschamps é incrível. A equipe parte do mesmo 4-3-3 da Copa, mas com ligeiras diferenças. Dessa vez, o time é ainda mais visivelmente construído ao redor de Griezmann e, principalmente, Mbappe. Arte na mestre das compensações, Deschamps escala Thuram como compensador de Mbappe e Rabiot como compensador de Griezmann.

Mbappe e Thuram, nada logicamente, partem basicamente do mesmo espaço – o intervalo entre zagueiro e lateral canhoto –, mas para onde Mbappe vai (é completamente livre para decidir isso, aliás), Thuram compensa fazendo o movimento contrário. Kylian por fora, Thuram por dentro, Kylian por dentro, Thuram por fora. É assim também com Rabiot: se Griezmann baixa para buscar e ditar o ritmo, Rabiot se projeta. Além disso, jogam com pouca rigidez posicional e também sobrecarregam o setor da bola; Theo ultrapassa por dentro. Imagens!

CROÁCIA

É frustrante pressionar os croatas; posse calma, lenta, fugir da pressão e encontrar espaços entrelinhas, tudo isso sempre redesenhando a estrutura do meio-campo, inicialmente em triângulo. Campinho!

Reparem nas imagens. Modric hora está entrelinhas e hora na base, assim como Brozovic e Kovacic. Recebem por fora do bloco, tocam e se movimentam, se associam em diagonal, caem em pouquíssimos metros no setor da bola e controlam o jogo. À frente, o nove Kramaric joga como um digno falso-ponta atravessando o campo e os laterais, sobretudo Stanisic, aparecem por dentro e por fora. Sobrecarregam pelo lado direito.

Apesar do resultado, jogaram muita bola contra a Espanha e não parecem ter muita sorte na Euro. Vejam como Brozovic sobe, Kovacic desce, Kramaric e Majer aparecem… o meio se reconstroi de acordo com as demandas de cada jogada.

Para mais detalhes sobre o jogo em si, temos este texto em nosso site.

TURQUIA

Comandada por Vincenzo Montella, a Turquia foi uma das seleções mais empolgantes da primeira rodada. A certeza de que qualquer estádio na Alemanha virará Istambul anima para o resto da competição. E o time é muito bom.

Prometem muito Kadioglu na lateral esquerda, o incrível quarteto de meio de Çalhanoglu, Ayhan, Kokçu e Guler com o ataque sem referência de Yildiz e Yilmaz, além de Akturkoglu desde o banco. Não podiam atacar de outra forma sem ser com liberdade e protagonismo aos meio campistas.

Vejam nas imagens. Atacam em uma espécie de 4-2-2-2 invertido, com os atacantes partindo de fora para dentro e Kokçu e Guler como meias internos. Circulam muito bem a bola, sobrecarregam pelos lados – principalmente na esquerda, inicialmente com Kadioglu, Kokçu e Yildiz, contando com a colaboração de Guler e Çalhanoglu —, jogam por dentro e dão liberdade para os meias aparecerem tanto na base quanto entrelinhas.

Contra a Geórgia, fizeram certamente a melhor partida da competição. E muito pela qualidade de seu jogo com bola centrado no meio campo e na flexibilidade posicional. Jogam sem 9 criam muitas possibilidades a partir disso.

ITÁLIA

Por último a Itália, por serem um exemplo menos óbvio ao primeiro olhar – estaria mais mais próxima de um hibridismo. Spalletti, no entanto, se diz adepto do “calcio relazionale”; é a primeira pista para pensarmos que fazem algo diferente.

Híbrida pois parte de um 3-2-5, com duas referências mais fixas de amplitude – Chiesa e Di Marco – e uma de profundidade – Scamacca. No entanto, os quatro meias e até os dois zagueiros são livres para interpretar os espaços e sobrecarregar o centro de jogo.

A referência é a bola. Quando na direita, Pellegrini cruza o campo até o centro do jogo e Calafiori – os zagueiros também são bem livres para participar – sobe em diagonal fazendo uma espécie de cerco. Jorginho e Barella se aproximam, com o ítalo-brasileiro como eixo, pegando a bola de frente, e o meia interista alternando entre a base e as proximidades da área. Di Lorenzo se projeta por dentro na maioria das vezes, mas também por fora para liberar Chiesa.

Scamacca e Frattesi variam entre o movimento de apoio e de ruptura, materializando as tabelas e ultrapassagens infiltrando na área. No lado oposto, Di Marco se mantém aberto, porém afunilando à medida que a posse avança e atacando a área, podendo também permutar com Pellegrini.

Já na esquerda, nota-se a diferença entre o camisa 10 e o camisa 7. Enquanto o meia da roma cruza o campo, Frattesi fica afastado da zona da bola e sempre apto a infiltrar na área, conexão explorada por Barella. Nessas ocasiões, Jorginho ou aproxima do centro do jogo ou baixa na linha de defesa, permitindo que Bastoni também balance junto com Calafiori, que se projeta livremente ao ataque.

Publicamos no site um texto que se aprofunda mais na participação dos zagueiros no sistema italiano e a maneira como a Itália se comportou diante dos eventos do jogo.

Esse texto é uma adaptação da thread escrita por Felipe Lemos e Francisco Melo, no twitter do Ponto Futuro.

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