Um evento magnífico que internalizou na sua forma a real preocupação de narrar as agonias e desesperos dos homens. Fundido a uma plateia que respirava e reorganizava o poder de cada nova peça, essa encenação poética durou por muito tempo no imaginário coletivo como uma grande passagem mitológica capaz de ser o fim nela mesma; a exata perfeição. Mas acalmem-se, não estou falando de alguma grande celebração grega, estou falando do Maracanã em 15/09/1981.
Foi numa noite de ‘maraca-é-nosso’ da revoltosa década de 80.. Para o nosso mundo, que se guia pelos estreitos do coração, pela luz direcionada de uma igreja barroca junto aos monges de Aleijadinho, aquilo era como se encontrássemos a verdade.
Cá estava nada mais do que Maradona, e no interior dessa causa, existia a comunhão quase religiosa de enxergar a disputa capital dos latinos: Maradona ou Zico, quem é melhor?
Essa dúvida alimentou o grande teatro carioca que comportava, então, 60 mil pessoas no seu coral durante 90 minutos.
Maradona, um verdadeiro popstar cujo sangue indígena lhe fornecia uma estrondosa força natural, ânimo e coragem. Na flor dos seus 20 anos, se comportava em campo como o único capaz de domar a selvagem bola de futebol. Era um ‘cancheiro’ de origem, daqueles que se pede “uma jogada a mais, por favor” – do outro, resistia o ‘galinho’, jovem, boa pinta, carioca, com uma malandragem própria, aliada a uma habilidade misteriosa que até hoje ninguém soube como contar.
O Maraca quase surdo e mudo (algo que não se via desde o Maracanazo) via aquele embate com o coração na boca, se moviam em uma cinética estabelecida pelos dois gênios: hora para um lado, hora para o outro lado. Uma eterna aflição aprisionava os olhos daqueles que sequer lembravam do dia de amanhã; o mundo, e a vida dos latinos, eram ali e aquela hora, reduzido à pele dos dois pequenos artistas que forneciam arte em troca de liberdade.
A Obra de Arte: esse jogo, a câmera praticamente no ângulo das pernas, captando o balé coletivo e toda imprevisibilidade de cada corpo. A excepcionalidade de conduzir a esfera com os pés, as leves trocas de planos deixando a visão acima do campo. Artur e Diego como semideuses, tudo de acordo com a imagem, tudo para que a essência transbordasse entre as colunas do templo.
Então, foi em meio a essa confecção engenhosa que o povo sentiu e pôde tocar seus deuses, Maradona e Zico, Zico e Maradona, o eterno retorno onde o futebol era de massas e todos foram gênios.
Com a incrível capacidade de comover os que participam ativamente nas arquibancadas. Aquele jogo teceu em cada corpo que organizava as estruturas desse espetáculo, a afirmação de vidas inteiras. Em um fidedigno cenário de disputa espacial, permanecia um tom próprio de manifesto cultural.
Exatamente como se comportaram em campo, Zico e Maradona foram santos três, sete e dez vezes. E legitimaram a causa completa de que eram o centro cósmico do mundo, e que esse lugar, se tratava apenas e sempre se tratou, de um rito qualquer, em um dia qualquer, de um bom futebol que derretia a rotina das máquinas urbanas.
Foi exatamente no calor sufocante e pressionante da cidade maravilhosa, que por várias e várias vezes, vimos o reencontro hermético, tal qual desafiador, entre homem, natureza e sua produção artística.
O jogo de contornos proféticos, faz juz a Jorge Luis Borges, quando em O Aleph, “Os Teólogos” encontram a cidade perdida e com o maldito e sadico Homero, que lhe põe diante da eternidade. Para quem acompanhou o tango agressivo de Maradona e o violar sutil de Zico, aquela noite lhes soam até agora como um sentimento impávido de que as coisas são exatamente eternas.