No mormaço do domingo, acordo sem muita pretensão para além do futebol. O Corinthians jogará somente à tarde. Ao filho, faço a pergunta dos domingos de manhã: “o que temos?”. “Um Bayer Leverkusen e Werder Bremen”, responde. Não parece muito promissor. Recebo maiores informações: “esse Bayer é chamado ‘Neverkusen’, nunca foi campeão; jogo para quebrar a escrita”. Ok. Na espera modorrenta da segunda-feira, qualquer partida serve.
A CazéTV abraça quase todos os campeonatos: Paulista, Brasileiro, sul-americano; europeus; as Olimpíadas… Além de boa-praça, como esse Cazé conseguiu? Não sei. É um mundo novo. A Globo é referência há tantos anos, mas seu monopólio, junto com tantas outras coisas, parece ter terminado. O futebol digital grita nos ouvidos moucos da minha alma analógica. Sou do século passado.
Mas, vamos lá: “Bayer ‘Neverkusen’, na TV, quer dizer, na Internet; quer dizer, na CazéTV; quer dizer em algum lugar; aqui e alhures. O fundo, importante mesmo estar na companhia do meu filho. Nos seus dezoito anos de idade, sabemos que nosso tempo vai minguando, até se transformar em sombras e memória. Aquela criança curiosa ao pé de mim, never more. Quer dizer, Neverkusen.
O jogo é morno, esse Bayer parece nervoso por não estar acostumado com o sucesso. É dirigido por Xabi Alonso. O espanhol jogava muito, hoje é técnico badalado. Suspeito ter simpatia prévia pelo time, sem saber por quê. Torcer pelos fracos é meu fraco: “Oprimidos de todo mundo, uni-vos!”.
Vendo a ansiedade incontida de contidos alemães, acompanho o jogo e me transformo em um dos seus. Nada nesse “mundo, mundo, vasto mundo” é coincidência. Não é coincidência torcer para o Corinthians e me identificar com um “Neverkusen”, nunca campeão. A gente não escolhe time; antes, somos capturados por um sentimento.
Nasci em 1965 e cresci num momento em que o “Curíntia” ganhava de ninguém; era piada, o “faz-me rir”, o sparing do Pelé. Até os doze anos, no meu tempo de vida, também era um “nunca-never”. Seria campeão um dia? Perguntava sem saber responder, sem saber dos tais ciclos da vida e do futebol.
Na família, dizem que foi meu cunhado – na verdade, mais que um irmão – quem me desvirtuou na ladeira abaixo do Corinthians. Uma explicação simplória. Influência pessoal alguma poderia ser maior que a incômoda pressão na rua, na escola, na periferia em que nos chamavam “sofredor” – “maloqueiro e sofredor, graças a deus” surgiu muito depois. A pressão era gigante; capitular ao bullying, que não tinha esse nome, seria justificado.
Na final do Paulista de 1974, o Corinthians poderia sair da fila. Mas perdeu para a tal “academia de futebol”, o Palmeiras, time dos meus irmãos, bicampeão brasileiro de 1972-1973: “Leão, Eurico, Luiz Pereira, Alfredo e Zeca; Dudu, Ademir e Levinha; Ronaldo (Edu Bala), César (Maluco) e Ney”. Bola espirrada na área, gol de Ronaldo.
O complexo de vira-latas só aumentou. Mais que a torcida, a imprensa culpou Roberto Rivellino, “reizinho do Parque”, que se foi para o Fluminense. Rivellino era a minha “desculpa futebolística”, o craque que justificava e suportava a minha torcida. Doeu.
Não bastasse tudo isso, nosso time de meninos ganhou um jogo de camisas. Verdes. Os incentivos não tinham fim. A despeito de usar verde, torcia mais e mais pelo Corinthians.
Algo atraia com a força da gravidade de mil planetas. Era uma identificação íntima entre “sofredores”, “maloqueiros”, “favelados”, “bandidos”, como diziam dos corintianos; uma paixão pela esperança de um dia não mais sofrer. E ser algo na vida. E, assim, com o sofrimento de um time nos casamos até que nem a morte nos separe.
Tinha outro lado: vida era difícil; dureza para ganhar o pão. A dureza da vida dura, amarga; que ao contrário do trocadilho, nada tem a ver com o doce da rapadura. A “vida dura” que, na verdade, o Corinthians expressava com uma forma de alento. A humilhação era uma espécie de camisa; a esperança, nas cores da dor e da esperança, a bandeira em Preto e Branco. “O clube mais brasileiro…” Suspeito que seja por isso que o time cresça na baixa.
Certamente, tudo definiu quase todas as escolhas que fiz depois. Esse sentimento foi base da formação que carrego até hoje na vida de “cientista político” – o que quer que isso signifique — e professor universitário, pai, amigo e cidadão.
Assim, sem saber, no mormaço de uma manhã de domingo, sentei-me diante da TV para assistir o “Neverkusen” deixar de existir. Narciso, vi meu rosto no maravilhamento de cada torcedor alemão, na descoberta não de um título – que é coisa pouca –, mas da revelação de um princípio vital. Lembrei daquela noite de outubro de 1977, quando o pé de Basílio pôs fim ao “faz-me-rir”.
Como se a alma me saísse do corpo, vi um menino, aos doze anos, de joelhos, cabeça enfiada no colo da mãe, chorando aos soluços de alívio e de alegria. No orgulho de ter superado uma maldição. Ouvi tanto tempo depois os imaginários rojões e buzinas que, em 1977, romperam em gozo o silêncio da periferia e de toda cidade.
Na Alemanha, torcedores invadiam o gramado, como os corínthians invadiram o Morumbi, há quase 50 anos. Na espreita, de olhos vidrados na TV do Cazé e na lembrança de antanho, guardava a expectativa de um alemão qualquer, bandeira às costas, atravessar o campo de joelhos como na paga de uma promessa. Como naquele outubro. Acho que nenhum o fez. Afinal, na Alemanha há alemães.
Chorei lágrimas furtivas, pelo Bayer e sua torcida; pela minha infância, pela minha mãe, pelo meu Corinthians e tudo o que o futebol representa para tanta gente. Ouso dizer que o “Neverkusen” nunca se apagará da memória de quem viveu seu carma. Nem a solidariedade de quem sofre por quem sofre. Essa identificação é íntima e caracteriza o mundo da bola. O “Leverkusen” foi, no mormaço da manhã de domingo, meu Corinthians alemão. Um novo outubro da minha infância.
Carlos Melo, é cientista político e professor do Insper desde 1999.