Fetiche do produto
Comum à tecnocracia instalada no esporte, a atividade de produzir cada vez mais, acumular e negociar, é um fenômeno do futebol (e seu alto-rendimento) que marca o triunfo das “linhas de montagem” na forma como se percebe o jogo.
Atrelado aos processos e mudanças globais dos anos 90. O exercício de jogar bola, está cada vez menos relacionado aos jogadores.
No contexto geral do esporte, o homem-máquina é um desejo de todo avanço técnico-científico existente nos laboratórios que mimetizam o trabalho do homem. Precisamente, a ocorrência de uma “manipulação da vida humana”, é a chave para compreender o status do esporte-espetáculo na sociedade do consumo, e a posição do corpo atlético nessa temporalidade.
O homem-máquina é a criatura que efetiva uma cadeia de perversões da ciência no espaço reduzido dos jogos, ele é um objeto cartesiano, um modelo; aplicado, medido e redimensionado.
Até esse fenômeno do corpo na pós-modernidade, modalidades “abertas” como o futebol – que depende essencialmente da imprevisibilidade – eram um campo pouco explorado. Com os avanços inescrupulosos da indústria e o feitio comercial que o produto provocava, mudar a anatomia do indivíduo-jogo, foi efeito de uma causa genérica do próprio tempo. O hibridismo da forma, as transformações genéticas (engenharia genética), a intervenção do homem na natureza; foi tudo microscopicamente redimensionado para o jogo. Enrijecido por ideologias permeadas de conceitos industriais, especializar o jogador e fazer dele uma ferramenta que produz em esteira cada fase até uma criação final, era uma causa-comum do período cientificista.
O caso, jogador-ferramenta se tornando o jogador-produto
Em um jogo repleto de facetas, a proposta mirabolante de controlá-lo não foi tão fácil. Apesar de não ser um fracasso, o futebol conseguiu se sustentar em um plano comercial cuja beleza era a moeda de troca da sua afirmação massiva – imprensa, propagandas, influência. Daí, é possível ligar os pontos do jogador como produto. Os negociadores do jogo entenderam que livrar-se do astro em função de um jogo paramétrico e equilibrado, não era uma boa saída de negócio. Entenderam, que para o apelo global, ainda era necessário a imagem do “grande esportista” (vista nas competições individuais) e sua jornada. Nasce então para o futebol, uma nova categoria dos “craques” que vemos tão regularmente. Esses jogadores passam a se projetar para o mundo como garotos-propagandas, imbuídos de um valor que agora não é mais simbólico, mas comercialmente rentável. Patrocínios, marcas, palavras, tudo medido minimamente para o estabelecimento de mais uma “atividade” que pretendia ditar o ritmo dos sucessos da vida – sonho.
A “mania” criada para os grandes astros, foi a lenta iniciação do projeto de jogador-produto. Ainda, que os craques estavam ligados às grandes marcas e tendo seus nomes estampados em outdoors para vender mais e mais. Essa parte da história foi um período um tanto bonito para a memória de um jogo mais “urbanizado” e mais tecnológico. Precedendo toda infraestrutura que vinha se realizando, essa faixa de tempo foi como um recorte que marcou todo um grupo de aficionados. A popularização de aparelhos de ‘tv’, a
rede social; tudo contribuiu para a nova fase da vida, e claro, do jogo. O que estaria por concretizar era um jogo que acompanhou de perto as mudanças globais e incorporou seu corroído modo de produção para um lucro mais sólido. Para isso, era preciso mudar novamente, toda estética, e assim substituíram o velho astro pelo produto. Então, se o jogador havia sido ferramenta para alcançar o sucesso frente aos vários entretenimentos, seria ele também o objeto de desejo do mercado para reverberar suas idéias. Sem jogador não existe jogo, isso é uma sentença da engrenagem do mundo.
A imagem
Representação visual da coisa. O que é ela na sociedade? Meio de definir estereótipos, forma de armazenar projeções da mente – seleção de dados, na psicanálise. A imagem está intimamente relacionada, em nossa sociedade, à mobilidade do corpo, sua fisicalidade e virtualidade. Desde sempre..
Não seria diferente para o esporte mais famoso do mundo.
Então, se estamos falando de uma prática compartilhada entre os entes de uma sociedade, cujo adjetivo é “espetáculo”, torna-se impossível a dissociação da ‘rostidade’ nesse processo. E se falamos disso, estamos falando propriamente da propagação da imagem. Rostidade é o que diferencia ‘a’ de ‘b’, é o que confere personalidades. É um filtro que passa antes de mais nada, pelo juízo estético, o que faz com que sua ligação com a linguagem, seja algo terminantemente essencial. Se por um lado, uma inventa a conformação das coisas do mundo, a outra a torna inconfundível.
Deleuze e Guattari afirmam que “todo rosto define um campo de frequência” – é um muro de significações que extrapola o acordo social.
Assim, nada mais indexável do que futebol. Principalmente o seu formato pós moderno que utiliza massivamente de propagandas e “tipos”.
Exatamente desse ponto, é possível entender sua mutação industrial. O que antes eram símbolos quase canônicos, ganhou a forma líquida da produção do seu tempo. Foi estudada e medida ao nível de alcançar o desejo principal: uma cadeia produtiva. O futebol cresceu como um foguete. E agora, aquilo que tinha valor de produto, mas ainda, por mera coincidência, não tolhia toda graça, adquiriu valores que se dão a qualquer objeto. Incorporou-se no jogo, as qualidades que se dão a qualquer coisa no mercado, o mundo passou a ser sintético, a vida, manipulada na base da existência.
Jogador em segundo-plano
Se os meios pelo qual o futebol intensifica seu projeto é totalmente voltado para o capital, é questão de verossimilhança que o discurso nele comportado, afirme que os números são a proposta real do jogo. Atingir números como se atinjam metas no trabalho, jogar bola como se redigisse um bloco de notas. O fenômeno dos esportes individuais passa a ser embutido no jogo. Trata-se da convenção presente nos esportes de elite, que faz “o corpo, objeto
convenientemente posto como exterior ao sujeito.”. E se falamos de rostidade, a causa principal que toca todo o desenvolvimento do jogo é a separação da consciência (persona) do corpo (produto). Em linhas simples, a desumanização do jogador.
Jude Bellingham, fato social
Chego ao fim, e agora, no real motivo dessa crônica. Que ‘Hey’ Jude é um “crack”, deveria ser de concordância geral. Jogador polivalente, com bom pé, e principalmente, com um arquétipo (ou estrela) de gênio. A questão, no entanto, não é essa. Jude apesar de ter todos os dotes, não é reconhecido semanalmente por eles. Indiferente a isso, na contemporaneidade do futebol-máquina, ele negocia com o discurso do jogador-operário, que ‘farma’ score, e no fim recebe algum “premiozinho” que endossa sua obediência e competência. Uma verdadeira maldição. Por isso, Jude como ‘fato social’. Sua figura está terminantemente associada ao “tipo” moderno de jogador. Não importa se ele joga, não importa seu conteúdo, mas a posição do seu corpo e a projeção da sua imagem. Tudo relativo ao seu bom futebol, antes de tudo, passa pelo filtro do desempenho – “qual foi a utilidade?” Só é importante as competências observáveis, concretas. Como se dependesse de uma evolução perfeita. Do jeito mais puro, é doentio como o discurso do fazer, imbuído de mecanismos para a medição de metas (eficiência no trabalho), coloca a qualidade essencial do jogo em segundo plano, e subverte seu conceito em valores comerciais. O jogador só é interessante se validado pela eficiência. Justamente essa distorção do real, que descaracteriza o sentido mais sincero de fazer futebol e colabora para a empreitada da palavra do mérito e a dinâmica comercial que corre por trás dela. Roubando a natureza obrística do esporte e classificando sua prática como mais um elemento fundido ao capital. É possível que Bellingham seja um dos jogadores mais antropológicos do “pós-futebol”. Um indivíduo paradoxal que bambeia na corda entre, render e jogar.