
A avenida deserta que deixei na minha lateral-direita
Quando recebi o quinto “não” em peneiras, entendi que o futebol não me queria como eu o queria.
Longe de ser abençoado com o talento e o “ziriguidum”, entreguei ao jogo tudo o que tinha. Repeti de ano, deixei de lado literatura, música, teatro. Mergulhei em treinos exaustivos para virar um meia, depois volante, depois zagueiro, por fim lateral-direito – a função que “sobrava”. Lateral-esforçado, ou coringa tático, qualquer rótulo que escondesse a ausência do essencial: habilidade. Mas era uma batalha perdida. A resposta não mudou: “sem chance de virar profissional”.
Com dezoito anos, aceitei o fim. A bola corria sem mim. Era o primeiro grande fracasso da vida adulta. Ou o segundo, pois a carreira de modelo fotográfico também não dera em nada. Era hora de começar uma vida igual a todas as outras: terminar os estudos, arranjar um emprego, entrar na faculdade como os primos. Resgatar o violão, quem sabe arriscar na música (e fracassar pela terceira vez); ler Galeano, odiar o capitalismo enquanto virava um capitalista comportado. E foda-se o futebol.
Afastado do jogo, tentei aboli-lo de vez: nada de jogos, TV, celular. Mas a realidade sempre se infiltra, como um espírito zombeteiro: Fulano passou na base do Atlético Paranaense. Beltrano no Coxa. Sicrano no Paraná, como eu sonhava. Até pintou uma última chance: teste no Marítimo, de Portugal. Mas se nem o J. Malucelli me quis… achei que era cilada. Barca vicentina pro inferno (para não perder o trocadilho). Não fui.
A peneira é o vestibular do futebol: um teste mecânico, massificado, cruel, porém a única porta para quem não tem empresário ou pai que paga PUC. Um divisor impiedoso entre os que entram e os que voltam pra casa.
João Victor, ponta-direita franzino e ligeirinho, que cansou de correr atrás dos meus esticões quebrados, passou no Jotinha e, depois de uns jogos bons no time de cima, foi parar no Japão. No Instagram: namorada modelo, comidas chiques, lounges. Eu dizia ao instrutor da academia: “joguei com ele, viu?”. Era meu consolo – o “sucesso indireto”. Mas logo vinha a pergunta: “E você, cara?”. Pois é. E eu? Não quis seguir? Não deu. Subia na esteira da academia, os mesmos 30 minutos, mas a imagem mental da avenida da minha lateral não existe mais. Não seria o craque Daniel Alves, nem o pragmático Juanfran. Nem repetiria aquela ultrapassagem esperta quebrando a linha. A cortina fechou. Aprendi ali: há o sucesso e o fracasso.
Mais tarde, já boêmio, falador de groselha, bartender, aluno de primeira faculdade, entendi que deixar coisas para trás é da vida. Mas, se largadas com raiva, elas voltam com juros.
Futebol é lixo? Futebol é só um tentáculo do establishment? Tudo lá é combinado porque quem manda é a grana? Lembra quando o Brasil vendeu 1998 blá blá blá. Jura? A merda que você diz aos colegas do boteco é real ou é só um disfarce para uma vida que não dói tanto? Pense, jovem.
Você tem que lutar pelas tuas paixões, porque paixão é assim mesmo: envolve dor. Procurei alternativas, o futebol amador. Em dois meses, eu já conhecia todas as canchas do circuito suburbano da cidade. Logo estava batendo bola de novo. Domingos de sol, suor escorrendo, coração disparado: eu estava vivo.
Depois de um racha no Urano, anunciaram uma seletiva para compor elenco na Suburbana A2. Um disse: sou meia. Não, meia não precisa. Ponta ou atacante. Não, atacante tem até demais. Outro: Jogo de tudo, professor!, e foi rebatido: não existe isso – quem joga de tudo, não joga de nada.
Chegou minha vez.
— Qual tua posição?
É hora de assumir. Magro demais para ser zagueiro, tosco tecnicamente para ser meio campista, inabilidoso para as pontas…
— Sou lateral-direito.
“Opa. Essa precisa. Tem pouco.”
Claro. Ninguém quer ser. Risos.
De volta aos gramados, pensei que ali poderia ser meu lugar. Uma carreira amadora. E já amava a ideia da lateral – a única posição no futebol que te permite correr livremente, como um cavalo solto em campo, inconsequente na vida.
Comecei a partida neste espírito, um übermensch que escolhia o que e como viver. No entanto, a tensão cresceu e errei uma, duas, três. Corri por dentro quando o passe veio aberto, e vice-versa. E quando decidi carregar a bola, passei desequilibrado e entreguei o contra-ataque do quinto gol. Derrota por 5×2. Saí com gosto de “passa no RH”. O trauma foi tão grande que eu passei anos sem pisar numa arquibancada da Suburba.
Ó vida, por que tão injusta? Como é que Deus permite que alguém possa ser tão ruim em algo que tanto ama?
O tempo passou. Fiz faculdade, depois outra, duas especializações. Trabalhei. Descobri uma ou outra nova aptidão. Mas o futebol ainda era tudo.
Se eu não podia jogar, que vivesse o jogo de outras formas. Eram noites a fio vendo gols antigos, escalações de partidas irrelevantes, vídeos do Campeonato Escocês de 2004.
Um vício. Consumindo compulsivamente, como um náufrago, mesmo sabendo que aquilo não me traria nada. Sem dinheiro, amor e talentos, apenas uma vida vivida pela metade e um vício.
Fui entender depois: se o futebol é forjado como uma régua de sucesso, isso é uma covardia. Porque não há nada no mundo que se compare à emoção do futebol. Mesmo que todo mundo vença, nenhuma vitória é tão grande quanto a do futebol – e talvez de outros esportes. Você pode ganhar prêmios em qualquer seja sua área, tenho certeza que nunca sentirá a mesma emoção de um jogador ou treinador que acaba de vencer uma Copa do Mundo, um Mundial de Clubes, uma Champions League ou uma Libertadores.
Perguntam: por que é que jogadores de futebol ganham tanto dinheiro e têm tanta projeção? Porque têm o dom mais bonito e emocionante da existência: jogar bola.
Ver taças sendo erguidas, jogos insanos, emoções cruas… e ter a frieza de aceitar: eu não jogo bola. Aprender a celebrar minhas próprias conquistas, mesmo sabendo que são menores do que o futebol.
Porque, no fundo, não se trata de vencer ou perder. Trata-se de estar. E eu nunca estive. Ou estive demais.
O futebol é a única prática que une os dois polos do ser humano em equidade: o bruto, que compete, e o esteta, que se sensibiliza. É a carreira mais precoce que existe e, paradoxalmente, a prática que requer mais preparo da vida. Exige tudo, muito cedo. Com 18 anos, tudo já deve estar pronto.
Como diz meu guru local, Cristóvão Tezza (escritor radicado em Curitiba): um jogador de futebol pode encerrar a carreira e virar escritor, mas jamais um escritor poderá se aposentar e se tornar jogador de futebol.
Essa é a piada cósmica. Jogar bola é para pouquíssimos.
Se você também se sente rejeitado pela bola aos pés, vai entender.
Nosso maior drible talvez seja esse: a mente driblando o fracasso e o tempo, e seguindo em frente, mesmo quando a dor tenta dar o bote.
Ainda me restam algumas décadas de vida.
E milhares de áreas para ser feliz pela metade.
“Meu time perdeu de novo
mas tá bem, ainda tenho
arroz, feijão e ovo
e uma cama de solteiro.”