Este texto é, sim, uma análise do Espanha 3×0 Croácia. Mas é na mesma medida uma ode ao futebol da seleção que saiu perdedora; um simples país de alma montanhesa — o nome, Hrvatska, quer dizer isso –, jovem, machucado por guerras e de apenas 3,5 milhões de habitantes. E que, mesmo assim, tem indubitável sucesso no futebol dos seleções, de certo um dos maiores nos últimos 15 anos. A crueldade do futebol, no entanto, é inexorável e atinge até os mais realizados. Se ontem com bola jogaram um tremendo futebol, nada deu certo para transformar a qualidade em resultado.
Indo ao jogo, não é muito mistério assumir que a disputa seria pelo domínio do meio campo. Ambas as equipes tendem a gostar de ter a bola, e apesar de o fazerem de formas essencialmente diferentes — e apesar, também, de talvez a Espanha ter entendido que pode ser melhor sem ela –, ambas tem o protagonismo no centro do campo.
O início do jogo foi de posse da Espanha. Pressionavam alto, buscavam encontrar os pontas no 1×1 e dominavam territorialmente, mesmo que sem muita efetividade. A chave do jogo estava no encaixe de Kovacic em Rodri, como é possível ver abaixo (atenção às imagens. Fui além do que fui no texto nelas). Como a Espanha distribuia seu meio em três alturas dentro de seu 4-3-3 tão mais que clássico, com Rodri sendo o “1” da saída 4+1, Fabian variando entrelinhas e base na esquerda, ocupando muitas vezes uma segunda altura, e Pedri mais fixo, entrelinhas, de pé aberto — nada que remeta àquele encantador Pedri da Euro de 2020, pela esquerda, lateralizando e vendo o jogo de frente; por que será? –, a Croácia encaixava setorialmente Kovacic em Rodri, Brozovic em Pedri e Modric em Fábian. Com Rodri fora do jogo e Pedri tão distante de onde me parece que pode ser influente, a Espanha não era nada produtiva.
Começou, então, a posse do infinito meio croata. Meio que, diferentemente do meio mais estático espanhol, se reconstrói e se redesenha a cada posse. Frustravam as pressões espanholas com toda capacidade de retenção e resistência à pressão dos “três ic’s”, até que a Espanha parece ter percebido que não valia a pena pressionar tanto. Bola no pé da Croácia, e, então, uns 30 minutos excepcionais de futebol. A marcação da linha média espanhola, a não ser pela capacidade brutal de Rodri em vencer duelos e ganhar segundas bolas, era convidativa; Fabian perseguia Modric, menos influente do que o comum, mas impressionantemente importante nas melhores posses croatas. Já que Brozo e Kova circulavam pela base com toda calma e espaço do mundo, atraindo saltos, à Modric restava apenas se movimentar para mobilizar Fábian, abrindo ângulos para passes entrelinhas. Ali apareciam Kramaric (talvez ponta-esquerda, mas sempre livre até para atravessar o campo inteiro), Majer (PD), Stanisic (LD) e, por vezes, até Kovacic (MC) se projetando. Mas é aí que faltou algo para a Croácia.
Procurem por estes lances na tramissão do Youtube em vídeo. Vejam como é um meio que se redesenha a cada jogada, que cria novas estruturas a partir da movimentação dos três meias. E reparem principalmente em Modric, que era marcado individualmente por Fabian e Brozo, por Pedri, se movimentando para tirar seus pares de posição e assim liberar o passe em um dos que ocupavam o espaço entrelinhas.
Seja por um azar tremendo que atingiu níveis cómicos no penâlti cobrado por Petkovic no segundo tempo ou por uma simples falta de qualidade na conclusão — Budimir pareceu insuficiente — , a Croácia perdia gols aos montes e não aproveitava os espaços que a Espanha dava. Numa bola forçada longa, Rodri ganhou a segunda bola e Morata concluiu no contra-ataque. A Espanha, que até este ponto não parecia tão confortável em se defender tanto — foi, afinal, a primeira vez em 136 (!) jogos que os espanhóis tiveram menos posse –, percebeu que havia ali um caminho. Um caminho que aposta numa Espanha renovada, de Nico e Yamal enérgicos por fora. Por conta deste último, inclusive, que assistir à Espanha se transformou naquele sentimento esquisito de que vemos a história acontecendo; de que estamos vendo um gênio nascer.
Mas, bom. A Croácia continuou jogando. Jogando bem. Mas nada dava certo. Em mais dois lances, um de inspiração de Fábian e outro de Yamal — reparam como, nessa Espanha, a inspiração não costuma ser de Pedri? –, a zaga croata assistiu aos espanhóis fecharem o placar.
Foi esse o jogo. Se a Cróacia do meio campo infinito parece ter nascido para as Copas do Mundo, não parece definitivamente ter nascido para as Eurocopas. Nada que nos impeça, no entanto, de desfrutar de deliciosos minutos de futebol sendo jogado através de um centro do campo espetacular.