Pela Rua dos Riachões

Essa Rua dos Riachões, como chamo apenas na ficção, pois na vida real é Riachuelo, é mais uma daquelas ruinhas tímidas de centro histórico que resistem a seu modo.

A economia gira em torno dos mesmos comércios de décadas, e as pessoas insistem em usá-la por um certo vício de identidade cultural. Segue bonita, entretanto, mesmo que notadamente sofrida. E desalumiada, devido à aglutinação de arranhacéus.

É nela que se localiza o único cinema de rua da cidade. Dali saio, sem tanta novidade ao redor. Isso que, na crônica anterior, prometi que viria famélico por viver o que a vida não esconde. Poucos metros dali, o brechó de camisas de futebol. Tem de outros esportes. Aliás, tem roupa comum também. A esposa do Mendes, tediosa que só, atrás do balcão. O Mendes contando minutos para descer a porta, bater o caixa e ir pra cerveja do pôr-do-sol. Já o fariam, o casal junto, mas me intrometi.

O Mendes está há uns 20 anos firme na fita. Sou cliente há mais de 10, o que é tempo para nascer amizade. Começou ainda em 2013, quando, pouco antes de me rebelar contra o futebol profissional, curiosamente tive uma fase futebol europeu. O salário de menor-aprendiz enchia o guarda-roupa: Manchester United, Chelsea, Atlético de Madrid… 

Então, a radical guinada, e tolerância restrita à suburbana. Vendi todas as camisas da grife europeia. O Mendes arrumou uma parceria com os clubes amadores da cidade e fez sob medida algumas camisetas. Vesti várias, até firmar fidelidade ao Operário Pilarzinho. Mendes me cobrava o triplo por uma camisa do Tricolor do norte de Curitiba do que por uma do Chelsea. Eu aceitava. Aceito ainda.

Aos poucos, referenciadamente entre 2017 e 2018, voltei ao futebol money talks, pois reconheci que havia perdido a batalha, restando apenas calos nas mãos e fundilhos de calça sujos de fuligem de arquibancada. Timidamente, comprei camisas do Corinthians e genealógicos do Paraná, em especial Britânia, Ferroviário e Colorado, além de algumas retrôs da gralha.

No período pandêmico, só o Footballia nas mãos, a paixão compulsiva pelo campeonato italiano clássico, sobretudo pelo Napoli. Encomendei algumas peitas de época – Napoli, Inter, Milan, Roma. Mendes fazia o favor de entregar pessoalmente em casa.

Um dia, apareceu no meio de um jogo.

  • Que jogo é?
  • Napoli e Milan. 1988.

Havia 5 latas de Brahma e um resto de vodca na geladeira. Senta aí.

E sentou para assistir. Tantos craques. De um lado, Maradona, Giordano e Careca, o famoso trio Ma-Gi-Ca. De outro, Gullit, Baresi, Maldini e Van Basten. Em 10 minutos, 3 gols – 2 rossoneri e 1 partenopei. 

Ele assistiu ao jogo feito criança curiosa. E, com o tempo, assistiu vários outros aqui em casa. O acordo: ele trazia um fardo de cerveja e eu botava o filme pra rodar.

Como não tem TV em casa, o Mendes se priva do futebolzinho atual, mas, em contrapartida, perde a chance de se conectar ao Footballia, que também é difícil em seu telefone básico, que somente comporta ligações e o whatsapp, para negociar as camisetas.

Viramos especialistas no calcio. Depois, no futebol brasileiro oitentista. Quantas figuras. De Marinho a Aladim, Washington e Assis, Elói e Gilson Gênio, de Fumanchu a Jorge Mendonça. Daí para a Seleção é um pulo.

Que verminoso pela esférica não tem trauma? O do Mendes, criança de oito anos, a Copa de 82. E lembrou do pai reagindo à catástrofe, um sorriso incrédulo, meio cínico, no limiar entre o dominante e o vulnerável pela vida. Ria e os olhos diziam outra coisa, com as lágrimas correndo pelas curvas do sorriso. Nunca haveria de haver derrota mais risível. Mendes jamais assistira de novo nenhum jogo da campanha. Dessa vez, não foi fácil convencer.

Por partes: primeiro, um jogo das eliminatórias, em 1981. Careca e Batista foram os melhores em campo – curiosamente, perderiam a Copa por lesão. Reinaldo – como jogava bola! Amistoso: em Paris, sim, mas os franceses nem distinguiram se a bola é branca. Cerezo, Paulo Isidoro, Sócrates e Zico, num mesmo meio campo. No outro lado, Marius Trésor, Massime Bossis, Jean Tigana. Aquilo é que era… isso é que é futebol!

Vamos ao mundial. União Soviética. Mal, mas venceu. Escócia. Bem. Nova Zelândia. Bem – obrigação. Argentina. O show do Capacete – melhor atuação de um lateral-esquerdo até hoje. E o Sarriá.

  • “Não seria engraçado (e até bem coerente) se o Brasil saísse bem agora?” – fui eu que fiz a pergunta, óbvio, porque não vivi; vendo de longe é fácil.

E o jogo foi acontecendo. Ele nem sofreu como pensava que sofreria. Tudo é uma questão de perspectiva – dá pra contar uma grande história indo até as quartas, sem ter de ir à final. 

Foi tudo tão rápido, e fácil de entender. O Brasil jogou e a Itália fez os gols. E não quer dizer nada para o futebol além dele mesmo, um jogo que te força a sorrir para o infortúnio de repente. E você amplifica a risada e segue para a próxima vez. Viu? Era tão simples.

E eu nem vou sonhar. Tá bem certo, Mendes. O que foi nunca prometeu voltar. Você é bom. Que loja, cada vez mais linda, com essas camisas penduradas no terceiro andar. Desce a porta e vamos rir na Rua dos Riachões, pedir cerveja no café cheio de estudantes intelectualizados, e comentar o futebolzinho: a injustiça com o Vini; o mundial que voltou a se chamar intercontinental porque vai ter outro mundial, este de 4 em 4 anos, igual à Copa, que logo será de 2 em 2; que logo terá 96 seleções, para o scretch de Ilhas Cayman poder participar do festerê endolarado.

Estou vivo, Mendes. Enquanto puder desses olhinhos inocentes verter lágrimas e escarrar contra a calçada ao lembrar do stablishment, estou vivo. Anda. Desce logo essa porta.

Rua dos Riachões

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