Pra não dizer que não falei das flores: espaço, tempo, posicional e funcional

Foto de Ancelotti e Guardiola.
A dialética posicional x funcional é perfeitamente sintetizada em cada um dos confrontos entre Ancelotti e Guardiola.

Se você acompanha futebol a partir de um ponto de vista mais tático, com certeza já se deparou com a discussão entre futebol posicional e futebol funcional, que acabou nos últimos meses furando a bolha dos debates táticos no Twitter e invadindo novos ambientes. Juanma Lillo falando que todos os times da Copa do Mundo jogam de forma igual; discussões sobre o Brasil de Tite ter perdido sua essência sul-americana (e sobre a Argentina de Scaloni tê-la recuperado); o debate acalorado sobre as trocas de treinador do Flamengo, o atual campeão da Libertadores; as críticas de Oliver Kahn sobre a mudança de abordagem de Nagelsmann no time do Bayern no período pós-Copa do Mundo; a matéria do The New York Times sobre o “novo” jeito de se jogar futebol de Fernando Diniz e por aí vai. Lentamente, as palavras “funcional” e “posicional” começam a pautar alguns debates futebolísticos ao redor do mundo.

O termo “ataque funcional” foi cunhado por József Bozsik, o “Húngaro”, em 2018 no texto “Entre o homem e a bola há o espaço e o tempo”, onde ele diferencia os tipos de ataque entre aqueles que se organizam a partir do espaço e aqueles que se organizam a partir do tempo (mais sobre isso mais tarde), criando uma divisão clara nas organizações ofensivas. Alguns anos mais tarde, o treinador escocês Jamie Hamilton levou o debate que o Húngaro levantara no Brasil (e que se espalhara por boa parte da América do Sul) para a Europa em seu texto “Fernando Diniz vs o Homem Máquina”, adaptando dos termos posicional e funcional para posicionalismo e relacionismo respectivamente. 

Acontece que, como em todos os outros debates que se expandem muito e se afastam do cerne, a discussão entre posicional e funcional foi muito desvirtuada. Na maioria dos debates onde esse tema é abordado, fala-se e ataca-se espantalhos, conceitos adulterados e desvirtuados que mal lembram o ponto inicial de onde eles vieram, uma clássica consequência da polarização extrema que a internet incentiva. Criou-se a ideia de que o futebol funcional se resumia em aglutinar jogadores ao redor da bola e que o futebol posicional era só espalhar os jogadores em campo; que um simbolizava a máxima expressão da liberdade e o outro, do futebol mecanizado e engessado. Desse modo, para não dizer que não falei das flores, pensei ser prudente tentar esclarecer algumas confusões, derrubar alguns espantalhos e consertar alguns desvios que o debate formou ao contextualizar aquilo que deu origem à briga posicional contra funcional.

1. O espaço e o tempo

“Há quem fale de contra-ataque, de ataque rápido, do que quiser. O vocabulário você usa como preferir. Eu entendo o futebol como espaço e tempo” — Xavi Hernández

O futebol é algo um pouco mais complexo que apenas os jogadores em campo e a bola que está em jogo. Claro, eles são a parte material do jogo, aquilo que dá corpo a uma partida, mas não significa que sejam a única coisa do futebol — isso porque precisamos ir um pouco mais a fundo e ser um pouco menos materialistas ao analisar o futebol para entendermos o debate posicional x funcional. Precisamos analisar os conceitos de espaço e tempo. 

Dos dois conceitos, o espaço é provavelmente o menos abstrato e, por consequência, o mais fácil de se entender: é o espaço físico do campo de futebol, o palco material do jogo. A partir disso, é possível perceber o espaço de uma série de maneiras diferentes, mas focaremos aqui em uma percepção específica: cada jogador ocupa um determinado espaço em campo. 

O tempo, por sua vez, é um pouco mais abstrato e, portanto, mais difícil de entender e de explicar. Para determinar um ponto de partida, podemos defini-lo como o tempo que alguém demora para realizar uma ação. Aplicando esse princípio para o que acontece dentro de um jogo de futebol, é o tempo que um jogador demora para realizar alguma ação em campo, seja ela um passe, um chute, uma corrida, um drible, qualquer coisa. Bom, perfeito, temos um conceito arrumado perfeito para um verbete de dicionário, mas gostaria de dividi-lo em dois: objetivamente, o tempo é a ação de um jogador, seja com ou sem a bola. São seus movimentos, seus toques, suas interações com o resto do time — tudo o que vemos o jogador fazer é o tempo em ação. Subjetivamente, o tempo é a percepção individual de cada jogador sobre o que acontece em campo — antes de interagir (ou não), de correr (ou ficar parado), de passar (ou arrancar com a bola), antes de materializar sua ação, o jogador precisa ter consciência daquilo que ocorre ao redor dele, deve perceber o jogo, intuir, raciocinar, e só então agir. Resumindo algo impossível de se resumir, o tempo é a percepção individual de cada jogador que guia sua ação em campo. 

O espaço é o palco e o tempo é a peça. O espaço é o instrumento e o tempo é a música. O espaço é a língua e o tempo é a fala. Um não existe sem o outro, pois um sem o outro não faz sentido. E, dentro de um jogo de futebol, ambos devem andar juntos. Se um jogador tem controle sobre seu tempo, mas não tem espaço para botá-lo em prática, ou se um jogador tem espaço para agir mas é incapaz de controlar o tempo de suas ações, ele não consegue jogar. O jogador e a bola são os protagonistas, sim, mas entre o jogador e a bola há o espaço e há o tempo. E se um jogador quer dominar a bola, deve antes dominar o espaço e o tempo.

2. A visão posicional

“Se há espaço, há tempo” — Xavi Hernández

Há aqueles que acham que um jogador só terá tempo para agir e interagir se ele tiver espaço para isso, ou seja, que o caminho para dominar o tempo está em antes dominar o espaço. Eles priorizam o controle espacial do campo e veem o espaço como a primeira coisa que se deve dominar para ter controle da bola. Se um time tiver total controle dos espaços do campo, os jogadores terão tempo para interagir. O nome “posicional” vem exatamente dessa ideia — os jogadores devem ter controle sobre suas posições para, então, ter controle de suas ações. 

O futebol nasceu na Inglaterra, e com ele veio a tradição posicional. A relação quase umbilical que o esporte tinha à virilidade, à masculinidade e à guerra nas terras britânicas acabou naturalmente criando uma ideia de domínio espacial, e por compartilharem a mesma origem, o futebol começou bem parecido com o rugby. Era um esporte extremamente físico, e seus primeiros sistemas táticos (1–1–8, 1–2–7, 2–2–6) privilegiavam enfileirar atacantes para valorizar o jogo de condução de bola e passes longos. O futebol não era lugar para romantismo, era lugar para objetividade: você deveria chegar ao gol adversário do jeito mais rápido e prático possível, e os britânicos (ou melhor, os ingleses — mais sobre isso mais tarde) achavam que o melhor jeito para isso era tornar o campo o mais largo e profundo possível para atacar o oponente de mais lugares. Com uma linha de 5, 6 ou até 7 atacantes, você poderia fazer um passe longo para um deles para que ele carregasse a bola em direção ao gol adversário e, se ou quando ele perdesse a bola, outro atacante poderia recuperá-la e continuar carregando a bola — muito parecido com rugby. A ideia de interações e relações entre os jogadores não era muito popular aqui.

Esquema tático
O 1–2–7 era um esquema bem popular nos primórdios do futebol: os 3 jogadores mais recuados lançavam a bola para a linha de 7 atacantes carregá-la em direção ao gol adversário. Há uma ideia muito forte de dividir o campo em espaços: cada jogador tem o seu espaço para carregar a bola em direção ao gol.

Nasce assim a ideia de um ataque espacial, isto é, atacar pelos espaços. À medida que o futebol evoluiu, a tática evoluiu junto e jogar futebol bem começou a ser fortemente relacionado à disciplina — mais especificamente, disciplina espacial. As táticas evoluíam dentro dessa cultura militar e, à medida que ficavam mais complexas, elas criavam uma relação cada vez mais forte com o domínio bem-sucedido dos espaços do campo. Assim como não é possível ter controle absoluto de um território em uma guerra, não é possível ter controle absoluto de toda a extensão de um campo de futebol, então um bom estrategista deve ter uma série de espaços estratégicos que ele julga mais importantes no embate pelo controle espacial. Começam a surgir as posições — o futebol agora não é mais só correr com a bola, é controlar os espaços que o treinador julga como estratégicos. Há aqueles que continuam achando que a superioridade deve ser obtida na linha ofensiva e enchem o time de atacantes; há aqueles que gostam mais de uma superioridade no centro do campo e colocam mais jogadores por ali (nasce assim o 2–3–5 e um pouco depois o 3–2–5) e por aí vai. A escola inglesa dava origem a uma tradição posicional — um treinador deve saber quais posições do campo ele quer dominar e os jogadores devem respeitá-las. 

2.1. Futebol Total

Foto de Johann Cruyff
Rinus Michels e Johann Cruyff.

O tempo passou e a Inglaterra manteve sua tradição posicional sem tantos ajustes. Claro, o jogo foi ficando drasticamente mais complexo e estudado, mas o estilo inglês ainda era muito baseado em passes longos e conduções de bola, com o eventual desenvolvimento de contragolpes letais — sem abrir mão do controle dos espaços, claro. O 4–4–2 virou o sistema mais comum no país com duas linhas de 4 bem definidas e bastante jogo pelos lados do campo a partir dos pontas, muita verticalidade e muitos cruzamentos: a essência do jogo inglês evoluíra, mas continuava lá.

Esquema tático
Um típico 4–4–2 inglês: duas linhas de 4 bem definidas, laterais mais defensivos e pontas bem abertos e agudos. No ataque, um centroavante mais fixo e um atacante mais móvel. O estilo de jogo era muito baseado na verticalidade, nas transições e em cruzamentos dos pontas para os atacantes.

No entanto, apesar do desinteresse geral dos ingleses em expandir o futebol e interagir com outras culturas, um ou outro aventureiro se arriscou a deixar a Inglaterra para desbravar outros países, levar a eles a tradição inglesa e, quem sabe, aprender uma coisa ou outra. Foi o caso, por exemplo, de Jack Reynolds, que deixou a Grã-Bretanha para trabalhar na Holanda e, assim, treinou o Ajax em 3 ocasiões: de 1915 a 1925, de 1928 a 1940 e de 1945 a 1947. Nessa última passagem, Jack comandou um jovem atacante de 18 anos chamado Rinus Michels. Outro inglês teria uma forte ligação com o futebol holandês e com Rinus Michels: Vic Buckingham. Vic treinou o Ajax duas vezes (de 1959 a 1961 e de 1964 a 1965) e, ao deixar o clube holandês pela segunda vez, foi substituído por Rinus Michels, agora treinador. Anos mais tarde, Vic também passou pelo Barcelona (entre 1969 e 1971) e também foi substituído por Rinus Michels.

Antes de falarmos de Michels, precisamos falar sobre a forte influência inglesa no futebol holandês. Não há como superestimar a importância de Jack Reynolds aqui: ele era um fiel seguidor da escola tradicional inglesa, muito ligada à verticalidade e ao domínio dos espaços, mas que começava a explorar a ideia de contragolpes mais trabalhados, com passes mais curtos ao invés das bolas longas. Jack chegou à Holanda e viu um futebol semi-amador, uma tela em branco para ele pintar, e seus quase 30 anos no Ajax criaram uma base muito bem definida. Alguns anos depois, Vic Buckingham também deixaria sua marca, agregando ao jogo inglês tradicional de Jack uma visão mais ligada ao futebol húngaro que goleara a Inglaterra por 6 a 3 dentro de Wembley com um estilo mais estruturado em passes e jogadas trabalhadas não muito tempo antes. 

Em paralelo a isso, surgia o estilo artístico-arquitetônico “Cidade Total”: o arquiteto Michel de Klerk afirmava que a cidade industrializada moderna deveria crescer como uma obra de arte e que cada prédio, rua e espaço público de uma cidade deveria seguir um conceito integrado, transformando a cidade em uma expressão de seus moradores. Isso inspirou o designer Wim Crouwel a criar o “Design Total”, que rechaçava a ideia de espaços lineares do modernismo e defendia que os espaços deveriam ser manipulados, flexíveis, para que todos pudessem compor um conceito, uma estrutura maior. As ideias de Michel de Klerk e Wim Crouwel galgavam seus respectivos espaços na cultura artística holandesa e se espalhavam rapidamente por toda a sociedade do país. Era questão de tempo até essa filosofia chegar ao futebol: o arquiteto Dan Roodenburgh, que fazia parte da escola da Cidade Total, foi membro da diretoria do Ajax na década de 30.

Foi nesse cenário que Rinus Michels cresceu: dentro do futebol, uma forte influência inglesa que pregava o domínio dos espaços como o caminho para o domínio do tempo e a disciplina espacial como uma grande qualidade do futebolista moderno. Fora do futebol, um movimento artístico-arquitetônico que valorizava a manipulação dos espaços e entendia o indivíduo, antes de tudo, como parte do todo. Como se isso não bastasse, o próprio Michels era um grande fã de estratégias militares e via como grande valor de um futebolista a disciplina tática e como principal norte para uma boa estratégia o domínio espacial, daí o apelido “O General”. O caminho já estava pavimentado: aquela que se tornaria a maior mente da história do futebol holandês já pensava que o caminho para o bom futebol estava no domínio espacial. Dos mesmos criadores da Cidade Total e do Design Total, vinha aí o Futebol Total.

O Futebol Total de Michels tinha algumas chaves. A primeira dela, claro, era o controle dos espaços, mas ele achava que o estilo inglês tradicional era demasiadamente rudimentar. Para Michels, basear seu jogo em passes longos, cruzamentos e conduções de bola vulgarizava muito a partida, valorizava o físico, desvalorizava a técnica e não dava ao time chances claras de gol. Ele voltou seus olhos à escola húngara (que já inspirara Vic Buckingham) de passes curtos, de posse e de imposição técnica acima da imposição física e viu nela a chave para o domínio mais eficiente dos espaços. A ideia de Michels era traçar espaços estratégicos no campo que deveriam ser dominados pelos jogadores: o jogador deveria adaptar a própria individualidade para respeitar um conceito único e compor a estrutura maior do time. No entanto, esses espaços eram colaborativos, interativos, e estabeleciam relações entre eles através dos passes – o estilo de Michels se baseava em passes curtos, mas a bola era trabalhada entre as posições, isto é, a bola ia de uma posição a outra sem que os jogadores fossem atrás dela, de modo a não comprometer o tão precioso domínio dos espaços. Michels também criaria a ideia de trocas de posição, e a palavra chave aqui é “troca”. Ele traçaria os espaços do campo que ele queria que seus jogadores ocupassem, mas o importante aqui era que tais espaços fossem ocupados, não necessariamente quem o ocupava. Na verdade, Michels via na polivalência uma qualidade tão importante para um jogador quanto a disciplina: se um jogador conseguisse atuar em várias posições, melhor ainda, pois os espaços ficariam ainda mais colaborativos. Desse modo, Michels encorajava e muito os movimentos e trocas de posição dos jogadores, mas com uma condição: que todos os espaços determinados por ele estivessem preenchidos. Essa se tornaria a característica mais chamativa de seus times: os jogadores trocavam constantemente de posição, mas sempre que alguém deixava sua posição, outro imediatamente a ocupava. Nenhum espaço ficava vazio.

A filosofia estava traçada, e o passo seguinte foi dado pelo melhor jogador de Rinus Michels: Johan Cruyff. Além de talentoso como pouquíssimos, Cruyff tinha uma inteligência tática incomparável e assimilara os conceitos de Michels melhor que ninguém. Ele era a voz de Michels em campo, e quem o via jogar sabia que sua carreira como treinador — e um treinador de sucesso — era certa. Quando Cruyff finalmente assumiu seu destino e começou a treinar o Ajax na década de 1980, ele estava pronto para pegar a filosofia de Michels e transformá-la em um método.

2.2. Jogo de Posição

Foto de Cruyff e Guardiola.
Johann Cruyff e Pep Guardiola.

“Não é um jogo de posse, é um jogo de posição” — Domènec Torrent

As passagens de Cruyff treinando o Ajax (de 1985 a 1988) e o Barcelona (de 1988 a 1996) foram muito além de simplesmente ajustar a filosofia de jogo de Rinus Michels para as novas demandas e desafios que um futebol de duas décadas — ele era o maior expoente de uma larga linha de treinadores influenciados pelo Futebol Total de Michels (que tinha algumas figuras holandesas, como Louis van Gaal, outras de fora do país mas que foram igualmente inspirados por Michels, como Juanma Lillo ou Marcelo Bielsa) que buscavam não apenas replicar ou ajustar essa filosofia, mas expandi-la, modernizá-la, sistematizá-la, materializá-la e transformá-la em um método.

Os anos de Cruyff à frente do Ajax não foram tão marcantes como os que viriam a seguir em sua carreira (principalmente por falta de tempo; o treinador dessa nova escola que mais marcou o Ajax foi Louis van Gaal, que cuja passagem treinando o clube foi duas vezes mais longa que a de Cruyff), mas seus primeiros 3 anos como treinador em Amsterdam foram mais que suficientes para que ele deixasse sua marca: em um cenário onde todos jogavam em um 4–4–2, Cruyff não entendia a necessidade de defender 2 atacantes adversários com 4 defensores, e resolveu abrir mão de um dos jogadores da linha defensiva para ter um atacante a mais. Seu Ajax, portanto, jogava com três zagueiros, um volante, dois meio-campistas, um meia-atacante, dois pontas e um centroavante: era um 3–4–3, com um meio-campo em losango. Na década seguinte, o Ajax tricampeão nacional e campeão da Champions League sob a tutela de Louis van Gaal jogava exatamente nesse 3–4–3. Em 1988, Cruyff deixaria o Ajax rumo ao Barcelona e, levando consigo seu 3–4–3, teve tempo de sobra (8 anos) para ser de fato consagrado não apenas como um grande treinador, mas como uma grande mente do futebol. O Barcelona era uma terra tão fértil para suas ideias como era o Ajax: além de ter sido treinado por ambos Vic Buckingham e Rinus Michels, o Barcelona ainda teve a figura de Laureano Ruiz, que treinou a base do clube na década de 70 e foi muito responsável por levar essa filosofia a outros setores que não o time principal. 

Cruyff tinha um norte muito claro: inspirado pela mente quase militar de Rinus Michels, Cruyff também achava que o caminho para dominar a bola era primeiro dominar os espaços do campo, para só então dominar o tempo das interações entre os jogadores. Assim como Michels, ele também acreditava que esse domínio dos espaços não deveria vir com passes longos e contragolpes, mas a partir de um jogo de passes curtos que trabalhasse a bola entre as posições. Formava-se, assim, a base de seus triunfos, triunfos esses que vão muito além do tetracampeonato de LaLiga ou do primeiro título da Champions da história do Barcelona — Cruyff criou uma identidade, um método que dava rosto ao Fútbol Club Barcelona e que inspiraria inúmeros treinadores nas décadas seguintes. Nascia, assim, o Jogo de Posição, algo que se nasceu de uma cultura, mas que ganhou cara, ganhou forma e se estruturou a partir de conceitos bem determinados.

Ataque posicional ou ataque por zona: é razoavelmente comum acharem que o ataque posicional e o Jogo de Posição são sinônimos, mas na verdade o ataque posicional nada mais é que um dos conceitos que dão vida ao Jogo de Posição. Ele é importante, sim, provavelmente um dos mais importantes, mas não é o único e também não é exclusivo ao Jogo de Posição. Segundo o próprio Pep Guardiola, “a maioria das pessoas crê que a zona é apenas defensiva, mas isso não é correto: também existe o ataque por zona. Quando seus atacantes estão longe da bola, esperando que ela chegue após uma série de jogadas e ações, isso é o ataque por zona. Chamamos de ataque posicional, mas na realidade é um ataque por zona. O ponto não é buscar a bola para atacar, mas esperar que ela chegue a uma determinada zona”.

O ataque posicional (ou ataque por zona, como Guardiola prefere chamar) é a aplicação material do conceito de dominar os espaços para dominar o tempo, ou seja, é um ataque que parte do espaço para o tempo. Como explicado antes, é impossível dominar absolutamente todos os espaços de um campo de futebol, então o treinador deve saber onde no campo ele quer buscar a superioridade e, a partir disso, distribuir seus jogadores nos espaços que ele julga estratégicos. Portanto, um treinador divide o ataque em zonas e distribui seus jogadores nelas; assim, cada jogador tem uma posição específica que ele deve dominar antes de interagir com os outros jogadores. É aí que a disciplina espacial se torna extremamente importante: o treinador tem apenas 11 jogadores (ou 10, se excluirmos o goleiro) para dominar toda a extensão de um campo de futebol. Por isso, cada zona atribuída aos jogadores é de extrema importância, pois o treinador julga que o domínio daquele determinado espaço é algo extremamente estratégico no embate pelos espaços do campo. Se o jogador daquele determinado espaço resolver deixá-lo para se aproximar da bola, aquele espaço ficará vazio e o domínio espacial do campo será radicalmente comprometido. Por isso, é de extrema importância que os jogadores respeitem as zonas determinadas pelo treinador: os jogadores não devem buscar a bola, pois ao sair de sua posição, ir em direção à bola e interagir, um jogador coloca o tempo de suas ações como algo mais importante que o espaço que ele ocupa, e a lógica de um ataque posicional não é essa. Dentro de um ataque posicional, os jogadores não vão até a bola, a bola vai até os jogadores. Nessa lógica, um jogador pode participar do jogo mesmo quando está distante da bola: quando um ponta esquerda, por exemplo, fica preso no flanco esquerdo quando a jogada se desenrola pela direita, ele pode não estar em contato direto com a bola, mas por estar parado no lado oposto, ele “prende” um defensor adversário, que não pode deixar sua zona defensiva para ajudar a defender a jogada para não deixar esse ponta sozinho. Desse modo, há um defensor a menos onde a jogada está e, portanto, há mais espaço para os jogadores atacarem. É a ideia de que um jogador cria espaços para outro, mesmo sem ambos interagirem diretamente.

“Fazer os jogadores entenderem o ataque posicional é o mais importante na minha opinião”, disse Guardiola. “Fazê-los entender que ao não interferir, ele está ajudando. E isso é muito difícil de entender, até nos jogadores de alto nível. Os jogadores querem ser protagonistas. Falar para um jogador: ‘agora você fica aberto e não tocará na bola por 3 minutos, mas eventualmente ela chegará até você, ou talvez não e você terá que esperar mais, mas você deve esperar aqui porque isso significa que você está abrindo espaços em outros lugares do campo’. O ataque posicional é muito complicado, é ficar parado e esperar a bola chegar até você”.

A bola vai até as posições no Manchester City de Guardiola: os jogadores estão espalhados em campo e esperam em suas zonas até que a bola chegue nelas. Dominar o espaço vem antes de interagir.

Para um jogador interagir com os outros, ele antes deve ser o senhor do espaço que ocupa. Primeiro gerar espaço para que então o jogador tenha tempo para agir. Portanto, um jogador não pegará na bola a não ser que ele tenha espaço — esperar na posição é importante para a) gerar espaços em outros lugares do campo e b) esperar o momento certo de receber a bola, que é quando o jogador tem espaço para agir. A ideia é mover a bola pelas zonas ofensivas, pois ao fazer isso você move o adversário: se a bola vai para a direita, o adversário precisa se mover em direção a ela e, portanto, o lado esquerdo do campo estará vazio. Existe aqui uma objetividade muito grande dentro do conceito do passe: o passe existe para encontrar superioridade. Segundo Xavi, passar só faz sentido se eu deixar meu companheiro em uma situação melhor que a minha. Caso contrário, é inútil. Passar a bola para um outro jogador é passar a ele o tempo, e como o espaço aqui vem antes do tempo, esse jogador deve ser o dono de seu espaço. Isso pode significar que ele está sozinho em sua posição ou que, por exemplo, sua superioridade seja posicional, isto é, ele esteja melhor posicionado que o adversário e, portanto, é o senhor daquele espaço. Ou, então, que haja uma superioridade técnica, onde um jogador consegue facilmente bater o outro no 1×1 e dominar aquele espaço.

“Fique aí, não venha buscar a bola, fique aí que levaremos a bola até você” — Xavi Hernández.

Isso não significa, no entanto, que o time que pratica ataque posicional é constantemente estático, e há dois tipos de movimentação muito importantes a serem ressaltadas. A primeira é quando um treinador traça as zonas a serem dominadas, ele as traça de acordo com a bola. Se a bola está no campo de defesa, há uma série de espaços a serem dominados; quando ela chega no ataque, outros espaços passam a ser mais importantes. Desse modo, as posições dentro de um ataque posicional são marcadas de acordo com a posição da bola; à medida que a bola avança em campo, as zonas a serem dominadas mudam, e os jogadores mudam de acordo com elas. A segunda já foi explicada aqui: o mais importante é que as zonas estejam ocupadas, não necessariamente quem as ocupa. Segundo Domènec Torrent, ex-auxiliar de Guardiola, o papel do treinador é determinar quais espaços os jogadores devem ocupar, mas quem ocupa cada um deve ser determinado pelos próprios jogadores em campo. Desse modo, desde que não haja nenhum espaço que o treinador traçou vazio, pouco importa quem ocupa cada um: os jogadores podem trocar de posição livremente, desde que essa troca ocorra dentro da lógica posicional. Uma implicação disso é diferentes zonas do campo apresentam diferentes dinâmicas de dominação: receber a bola na ponta é diferente de recebê-la no meio, pois os espaços são diferentes, os adversários que você encontrará em cada espaço também são diferentes e, portanto, os movimentos e interações para aquela zona são diferentes. Tomemos de exemplo o Manchester City de Guardiola: Grealish, o ponta-esquerda, e De Bruyne, o meia, podem trocar de posição quando quiserem contanto que ambos os espaços que eles ocupam continuem preenchidos. No entanto, quando De Bruyne deixa sua posição no centro do campo e vai para a ponta, ele passa a ocupar um espaço com uma dinâmica radicalmente diferente. Ele provavelmente terá menos defensores ao redor dele e mais espaço para o 1×1, mas menos companheiros ao seu redor. Significa que ele terá que mudar seu jogo para aquele de um ponta: apesar de De Bruyne ser meia, dominar um espaço na ponta exige que um jogador se comporte como um ponta. Assim, apesar de ser meio-campista de origem, quando De Bruyne está na ponta ele deve adaptar sua função para ser um ponta, e a mesma lógica acontece quando Grealish deixa a ponta para ficar no meio-campo. Isso quer dizer que, aqui, as funções dos jogadores são secundárias em relação às posições: pouco importa o que o jogador faz naturalmente, seus movimentos, suas interações e seu tempo deve sempre responder à posição que ele ocupa.

É importante lembrar que o ataque posicional não é algo próprio do Jogo de Posição, é uma ferramenta usada pelos praticantes do Jogo de Posição para dominar os espaços do campo, obter superioridade numérica, técnica e/ou posicional e escalonar os jogadores em linhas para facilitar o avanço compacto e sincronizado do time em campo. Todos os times que praticam Jogo de Posição praticam ataque posicional, mas nem todos os times que praticam ataque posicional necessariamente praticam o Jogo de Posição (como o estilo inglês tradicional, por exemplo) que, como dito antes, envolve mais uma série de outros métodos e conceitos.

O Real Madrid de Mourinho praticava ataque posicional sem necessariamente praticar Jogo de Posição. Observe como os jogadores ficam espalhados em campo, respeitam suas zonas e esperam em suas posições.

O ataque posicional do Jogo de Posição apresenta algumas particularidades que não necessariamente são vistas em todos os estilos de ataque posicional: os mais óbvios são a ocupação racional e simétrica dos espaços, isto é, espalhar os jogadores em campo seguindo uma lógica de simetria para que um lado do campo não tenha mais jogadores que outro e os espaços, assim, sejam ocupados racionalmente, e a amplitude máxima, onde os pontas ficam bem próximos à linha lateral para esticar a linha defensiva adversária o máximo possível e abrir espaços por dentro.

O Jogo de Posição da Espanha de Luis Enrique: estrutura simétrica (não há mais jogadores de um lado que de outro), jogadores racionalmente espalhados em campo para formar triângulos e losangos e os pontas (Ferrán e Olmo) em amplitude máxima para alargar a linha defensiva adversária e abrir espaços por dentro.

Movimentos curtos: mais uma consequência do ataque posicional do que um conceito por si só, os movimentos curtos são algo de extrema importância para que o Jogo de Posição funcione. Quando o Manchester City contratou o volante argentino Máximo Perrone em janeiro de 2023, Guardiola foi enfático ao ressaltar o que lhe chamou a atenção no jovem jogador: “ele se move muito bem. Procuramos jogadores que saibam se mover em espaços curtos, e ele faz isso muito bem”.

Um dos principais pilares não só do Jogo de Posição, mas do ataque posicional como um todo, é que a bola deve ir até as posições. “Aguenta dentro do quadrado”, diz Abel Ferreira, técnico do Palmeiras, a seus jogadores. “Espere aí que te levaremos a bola, não venha até aqui”, diz Xavi. Os jogadores não vão até a bola, a bola vai até os jogadores. Ou melhor, a bola vai até as posições, até as zonas que o treinador quer dominar, e os jogadores devem estar nessas posições, ocupando essas zonas. A chave aqui é a seguinte: se movimentar até a bola, romper as posições para estar sempre próximo da bola, exige que um jogador faça movimentos longos. “No meu time, os atacantes só devem correr 15 metros, a não ser que sejam burros ou estejam dormindo” , disse  Johan Cruyff. “Eu quero jogadores que possam fazer movimentos decisivos em pequenos espaços, quero que eles trabalhem o mínimo possível para economizar energia para aquela ação decisiva” – essa é a alma, a essência da movimentação dos jogadores no Jogo de Posição.

Henry disse em uma entrevista à Sky Sports que quando jogava no Barcelona, Guardiola o colocou como ponta e falava para ele manter sua posição. Em um jogo específico, Henry se irritou de ficar longos períodos sem tocar na bola, pois ela não chegava até ele, e resolveu deixar sua posição, atravessar o campo e tabelar com Messi, o ponta do lado oposto. A partir dessa jogada, Henry marcou um gol, mas Guardiola o tirou no intervalo, pois Henry não respeitou as posições, não esperou a bola chegar até sua zona e comprometeu o domínio dos espaços do time. Henry fez um movimento longo: ao cruzar o campo para se aproximar da bola, ele correu, no mínimo, 40 metros. Quando um ponta se comporta como Henry nesse lance e cruza o campo para se posicionar perto da bola, quando um meia passa a bola e imediatamente faz uma ultrapassagem para recebê-la de volta mais à frente em uma tabela ou quando um centroavante recua para receber um passe nas costas dos volantes ou se movimenta pelo campo de ataque e cobre muito espaço ao invés de manter sua posição entre os zagueiros, esses jogadores se movem por espaços longos. O famoso “toco y me voy”, que falaremos mais a frente, se baseia nisso: um jogador passa a bola e automaticamente se move para receber a bola de volta em outro lugar. Movimentos longos, que rompem a ideia de posições marcadas, de zonas específicas atribuídas a cada jogador. A lógica da movimentação em um Jogo de Posição se parece mais com um “toco y me quedo”: um jogador nunca ficará estático, claro, mas seus movimentos devem acontecer dentro da zona que o treinador demarcou para ele. Todo tipo de movimento dos jogadores dentro do Jogo de Posição deve acontecer em espaços curtos, sempre dentro das zonas que um treinador determina.

“O que ganhamos em jogar no 3–4–3 contra o 4–4–2 é que jogamos sem correr. Tem aquela famosa frase ‘toco y me voy, passo e me vou’. Passo e me vou para onde? Para onde? Futebol é ocupar racionalmente o espaço e a bola vai até o espaço. Claro que um jogador tem que se mover quando ele recebe a bola, claro que ele se move. Quando ele faz um movimento de aproximação ou quando ele ataca um espaço, nesse momento ele se move. Mas ele se move dentro do espaço determinado” — Pep Guardiola.

A manipulação dos espaços a partir da posse de bola tem fundamentos claros: se a bola vai até as posições, o que se move é a bola, e não as posições, pois, ao mover a bola, o oponente precisará se mover de acordo com ela para tapar os espaços e se defender enquanto o time que tem a bola se move muito menos e, consequentemente, se cansa muito menos. Claro, as posições mudam de acordo com a posição da bola no campo, mas até dentro disso os movimentos são curtos: um lateral que começou aberto na saída de bola pode fechar quando a bola avança, ou um meia que começa mais recuado dá um passo à frente e fica mais perto do centroavante, mas movimentos como um ponta cruzando o campo, um lateral trocando de lado ou um centroavante passeando pelo campo de ataque não acontecem. Cada fase do jogo tem um leque de posições específico para ela: as posições podem mudar se a bola estiver no primeiro, segundo ou último terço do campo, mas enquanto uma fase determinada se desenrola, as posições são muito bem demarcadas e os jogadores devem respeitá-las. Quando um jogador recua para receber a bola no pé ou avança para atacar um espaço, esses movimentos são sempre curtos, respeitando a zona que o treinador demarcou para ele. A disciplina espacial se mostra um fundamento importantíssimo para que um jogador se adapte ao Jogo de Posição: seus movimentos devem sempre acontecer dentro de sua zona e jamais devem romper com a lógica das posições e criar diversas ranhuras em campo. Os movimentos, o tempo dos jogadores é sempre secundário em relação ao espaço que ele ocupa. Por isso Guardiola sempre se deu muito bem com volantes como Busquets ou Rodri, pois eles são jogadores muito acostumados com a ideia do “toco y me quedo” — eles interpretam os espaços muito bem e sabem se movimentar por espaços curtos. A partir disso, eles leem o jogo, passam a bola imediatamente após recebê-la e não buscam uma ultrapassagem, uma tabela: eles continuam em suas posições e se movem sempre dentro de suas zonas. Pelo mesmo motivo, Yaya Touré não se deu bem com Guardiola: seu estilo de jogo é muito fundamentado em arrancadas, ultrapassagens e tabelas. Touré gosta de se mover em espaços mais largos, sempre estar perto da bola e criar inúmeras ranhuras pelo campo.

“O que se move é a bola. Parece que os jogadores se movimentam, mas o que se move é a bola. As pessoas acreditam, ‘nossa, eles se movimentam muito’. Não. O que se move é a bola. Todos têm que ficar em suas posições. Quando você se move muito, isso não é bom. A bola vem até onde estamos, nós não vamos até onde ela está para pegar a bola” — Pep Guardiola.

Observe essa sequência de posse de bola do Barcelona de Guardiola contra o Real Madrid. Os jogadores se movimentam, mas esses movimentos são curtos, sempre dentro das zonas de cada jogador, respeitando as posições. Não há um movimento mais longo como uma ultrapassagem, um ponta que atravessa o campo em direção à bola etc. Tudo ocorre dentro da lógica das posições.

Por causa disso, há uma confusão muito grande sobre o papel de um falso 9 dentro do Jogo de Posição. O que chamamos de falso 9, no Jogo de Posição, é quando o jogador que deveria ocupar a posição do centroavante não a ocupa e sua posição passa a ser mais recuada, como Messi no Barcelona de 2010/2011. Quando Guardiola resolveu trazer Messi para o centro do ataque, Messi não começava como centroavante e recuava para receber mais atrás e circulava por todo o ataque — ele, na verdade, já começava as jogadas logo atrás dos volantes adversários e não entre os zagueiros como um 9 típico. A zona atribuída a ele, a posição que ele devia respeitar, era nas costas dos volantes (também conhecida como entrelinhas), e toda a sua movimentação deveria acontecer por ali. A posição de centroavante, portanto, ficava vazia e nunca era preenchida — a função de Messi era receber livre nas costas dos volantes, atrair a atenção de algum zagueiro e, assim, criar um rombo na defesa adversária e abrir espaço para a infiltração de alguém. A posição do “9” ficava vazia até que alguém infiltrasse, pois Messi não ficava lá, ficava mais recuado — por isso o nome “falso 9”, porque apesar de começar no centro do ataque, ele deixava a zona do 9 vazia e atuava um pouco mais recuado.

Nesse lance, Messi recebe a bola em sua posição: ao redor dos volantes do Real Madrid. Observe que no início da jogada, a posição de 9 está vazia: Messi e Pedro são meias ofensivos que circulam ao redor dos volantes do Real Madrid, não há ninguém entre os zagueiros. Messi, então, se movimentando pela sua zona, troca passes com Xavi e depois passa para Iniesta. A movimentação de Messi atraiu a atenção dos volantes e de um dos zagueiros do Real Madrid, que acaba abrindo um espaço na posição que normalmente seria ocupada por um 9, mas que está vazia porque Messi não a ocupa. Portanto, Xavi infiltra no espaço que se abriu, recebe o passe de Iniesta e marca o gol do Barcelona. Perceba como todo o lance acontece a partir de movimentos curtos: Messi, o jogador que mais se movimenta no lance, espera a bola chegar até ele e, no desenrolar do lance, só se move ao redor dos volantes do Real Madrid.

Isso mudaria na temporada 2011/2012. Guardiola frequentemente diz em entrevistas e ao longo de seus dois livros que seu trabalho no Barcelona se resumia em levar a bola a Messi e deixá-lo na melhor situação possível para ele finalizar. Guardiola acreditava que Messi deveria sempre estar na posição ideal para finalizar a jogada, pois ele era o melhor goleador e passador do mundo à época; para tirar o máximo disso, portanto, era melhor que Messi pegue na bola na melhor situação possível para finalizar, isto é, mais perto do gol. Assim, Guardiola passou a automatizar mais as jogadas do time e a especializar ao máximo seus jogadores, ou seja, dar a cada um tarefas muito específicas para que o time todo funcionasse como uma engrenagem voltada para deixar Messi na melhor situação para finalizar uma jogada. Assim, Guardiola mudou o time para um 3–4–3 com o meio-campo em losango bem definido com Piqué, Puyol e Abidal na zaga, Busquets como volante, Xavi e Iniesta nos lados do losango, Fábregas como meia-atacante, Dani Alves na ponta-direita, Pedro ou Thiago na ponta-esquerda e Messi pelo meio. Nessa formação, a zona do “falso 9”, nas costas dos volantes, era ocupada por Fábregas, o meia-atacante, e também por Iniesta. Portanto, Messi teve que atuar mais adiantado, na zona do 9 – mais próximo do gol, mas mais afastado da zona de construção.

Esquema tático.
O Barcelona da temporada 2011/2012 se estruturava em um 3–4–3 com o meio-campo em losango quando tinha a bola.

Como dentro de um Jogo de Posição as funções de cada jogador são secundárias em relação às posições que eles ocupam, Messi atuou como um camisa 9 na temporada 11/12. Não um falso 9, um camisa 9. Claro, um 9 mais associativo, que trocava de posição com Fábregas muitas vezes durante o jogo, mas era um 9 pois a zona que ele deveria atuar era a zona de um 9. A ideia de movimentos curtos dentro de um Jogo de Posição não permitia que Messi recuasse a bel-prazer para ficar mais próximo de Xavi e Iniesta e se movimentar por ali, portanto, Messi se movimentava na zona do camisa 9 e se portava como um camisa 9. Por causa disso, Messi marcou incríveis 73 gols na temporada, mas tinha muito menos impacto na construção das jogadas em relação aos anos anteriores. 

Observe esse gol de Xavi contra o Santos no Mundial de Clubes de 2011: Dani Alves e Thiago são os pontas e Fábregas, Iniesta e Xavi chegam na área por trás. Messi não está com eles; na verdade, está mais alinhado aos pontas e se movimenta ao redor dos zagueiros, deixando a zona dos volantes para Xavi, Iniesta e Fábregas. Messi, portanto, atuava como um 9, não como um falso 9.

Essa polêmica do falso 9 foi revivida em 2022, quando a Espanha de Luis Enrique levou para a Copa do Mundo 3 opções para o centro do ataque — Álvaro Morata, centroavante clássico, Marco Asensio e Dani Olmo, dois meias ofensivos. Quando Luis Enrique escalava Asensio ou Olmo, a imprensa e os torcedores diziam que a Espanha tinha um falso 9, mas Luis Enrique os corrigiu em uma live: “a Espanha nunca jogou com falso 9! Eles (Morata, Asensio ou Olmo) sempre ocupam o mesmo espaço, o que muda são as características de cada jogador. Enquanto Morata, um 9 puro, gera essa primeira superioridade, Olmo gira mais. Mas, no final das contas, ocupam o mesmo espaço”. Escalar jogadores diferentes na mesma posição pode dar novas características àquela posição, mas a posição continua a mesma. Quando um meia como Messi, Asensio ou Olmo são escalados na posição do camisa 9, os movimentos deles devem sempre acontecer dentro daquela posição. Movimentos curtos realizados dentro das zonas determinadas, sempre.

Posse de bola e terceiro homem: em todas as oportunidades que tem, Guardiola declara seu ódio ao tiki taka. Quando seu Barcelona arrasou a Europa e se transformou no melhor time do mundo em um Jogo de Posição extremamente ortodoxo e bem executado, o estilo do time foi rapidamente apelidado de “tiki taka” por ser fundamentado em passes curtos e na posse de bola. O meio-campo formado por Busquets, Xavi e Iniesta tornava a tarefa de recuperar a bola do Barcelona algo quase impossível, e o time tinha posses quase infinitas e sequências de passes intermináveis. O termo tiki taka, no entanto, dava a entender que o Barcelona passava a bola por passar, quando a realidade era exatamente o contrário — dentro do Jogo de Posição, a posse de bola e o passe são conceitos tão objetivos que são quase burocráticos.

No livro Pep Guardiola: a Evolução, o autor Martí Perarnau enumera, dentro dos conceitos que definem o Jogo de Posição, a posse de bola, mas também lista a superioridade numérica e/ou posicional, a proteção defensiva a partir da posse de bola, a excelência no gesto técnico e a posição corporal na recepção e no passe, a busca de passes que melhorem a posição do companheiro e a busca pelo terceiro homem como conceitos igualmente importantes. Focando na parte de obter proteção defensiva a partir da posse de bola, quando Cruyff diz que “quando você tem a bola, o rival não a tem”, a premissa aqui é que ter a bola é o melhor jeito de se defender, pois se a bola está com você, o rival não pode te atacar. Guardiola disse repetidas vezes que ter a bola é mais que uma questão de atacar, é também de se manter seguro. O catalão é obcecado por controle, e quanto mais longe a bola estiver do gol de seu time, melhor para ele. Salta aos olhos como, ao longo das últimas temporadas, Pep vem simplificando as decisões dos jogadores a possibilidades reduzidas pelas relações dentro da estrutura que ele monta, onde a prioridade é sempre reduzir o risco ao máximo para que a posse de bola seja conservada. Houve inúmeros confrontos entre Guardiola e Klopp onde o time de Guardiola teve números altíssimos de posse de bola e passes trocados e, na verdade, estava se defendendo, pois Guardiola sabe que perder a bola para um time de Klopp é sinônimo de enfrentar um dos contragolpes mais poderosos e intensos do mundo que oferece um risco incalculável.

Indo além da posse de bola como método para defesa, temos os outros objetivos que Perarnau enumera em sua lista. Apesar da posse de bola ser o elemento que mais salta aos olhos dentro de um time que pratica Jogo de Posição, é importante ressaltar que ter a bola não é o principal objetivo dos treinadores dessa escola — o principal objetivo é dominar os espaços. O que diferencia esses treinadores de treinadores como, por exemplo, José Mourinho (que também vem de uma escola posicional e inclusive passou parte de sua formação como treinador sendo assistente de Louis van Gaal no Barcelona) é que enquanto alguns treinadores preferem controlar os espaços sem a bola (como Mourinho e sua inigualável marcação por zona), os treinadores do Jogo de Posição acham que o jeito mais eficiente e mais seguro de controlar os espaços é controlá-lo a partir da posse de bola. Ter a bola, segundo essa escola de treinadores, te permite ter mais controle sobre as ações do jogo (pois, ao abrir mão da posse, mesmo que você defenda excepcionalmente bem e faça o adversário ter a bola em zonas inofensivas, você limita suas ações pois sempre depende que o outro time perca a bola para poder agir), te dá mais segurança (pois você deixa a bola longe do seu gol e, como dito antes, se você tem a bola o rival não tem) e facilita acelerar ou desacelerar o ritmo do jogo de acordo com a necessidade do seu time. Portanto, mais que uma questão filosófica ou estética, os treinadores do Jogo de Posição querem a bola por uma questão prática. 

Como dito antes, Xavi afirma que o passe só faz sentido se ele deixar o companheiro de time em uma situação melhor que aquela de quem passou, e é isso que trabalharemos aqui. Dentro do Jogo de Posição, há uma ultraobjetividade quase burocrática no passe — ele só serve para progredir, para obter superioridade, para deixar outro jogador em uma situação melhor. Caso contrário, passar não faz sentido e é contraproducente. Juanma Lillo, espanhol que foi o último treinador que Guardiola teve em sua carreira como jogador e um dos principais nomes no processo de transformar o Jogo de Posição em método, afirma que o Jogo de Posição deveria se chamar Jogo de Localização, pois o objetivo dele vai além de posicionar os jogadores bem em campo; ele deve buscar também posicionar os jogadores da melhor forma possível dentro das posições, ou seja, otimizar a postura e o posicionamento dos jogadores dentro de suas zonas para que o gesto técnico que ele execute ao receber seja o melhor possível — a excelência no gesto técnico e a posição corporal na recepção e no passe e a busca de passes que melhorem a posição do companheiro que descreve Martí Perarnau. Dentro do Jogo de Posição, tudo — a posição dos jogadores, o posicionamento deles dentro de suas zonas, o passe, o domínio do jogador que recebeu o passe — deve ser moldado para ter a maior objetividade possível. Não existe passar por passar dentro do Jogo de Posição (já foi relatado inúmeras vezes que Guardiola odeia que um lateral passe para um ponta, pois esse tipo de passe não faz o time progredir), tudo deve ter um sentido, um propósito, um objetivo. É aí que entra o conceito do “terceiro homem”.

Se um time usa o goleiro na saída de bola, ele terá 11 jogadores que participam da fase ofensiva; no entanto, o adversário terá 10 jogadores na fase defensiva, pois não pode usar o próprio goleiro como um zagueiro a mais. Nesse sentido, sempre haverá um jogador livre no campo — como os jogadores estão espalhados em suas respectivas posições, a ideia é trabalhar a bola a partir dessas posições (movendo sempre a bola e nunca as posições) para, a cada jogada, encontrar o homem livre e progredir a partir disso. A bola deve se mover entre as posições e o adversário precisará se mover com ela para defender, portanto, espaços se abrirão pelo campo e um jogador sempre ficará livre. Quando trabalharam juntos no Barcelona, Cruyff dizia para Guardiola (que jogava como primeiro volante) que, quando ele pegasse a bola, a primeira coisa que ele devia fazer era olhar o mais longe possível, para Romário, o centroavante do time. Se Romário estivesse livre, a bola deveria ir para ele, pois ele ofereceria muito perigo. Se ele não estivesse livre, o passe deveria ser curto. Há aqui o conceito da ultraobjetividade do passe — se há espaço, use-o. Se Romário tem espaço, é perigosíssimo, então use-o. Se ele não tiver espaço, tentar acioná-lo é praticamente sinônimo de abrir mão da posse, então é melhor jogar curto, mas sempre que houver espaço, o melhor a se fazer é usá-lo. Para sistematizar e automatizar esse mecanismo de encontrar o homem livre, o Jogo de Posição desenvolveu o conceito do terceiro homem — como o time que ataca sempre terá um jogador livre e o objetivo é fazer a bola se mover e o oponente se mover com ela para abrir espaços, o Jogo de Posição desenvolveu um método para encontrar um homem livre a cada jogada (já que passar só faz sentido se quem receber o passe tiver espaço para agir).

Foto de jogo do Barcelona.
O Barcelona de Guardiola se posiciona em campo formando triângulos entre seus jogadores — essa é a base para o terceiro homem.

É muito comum ver imagens como a acima em times que praticam o Jogo de Posição, seja o Barcelona, o Manchester City, a Espanha ou qualquer outro — os jogadores espalhados racional e simetricamente pelo campo e formando triângulos de linhas de passe, onde cada jogador possui duas ou mais opções de passe curtos. Essa é a base para o terceiro homem. Dando um exemplo do próprio Barcelona de Guardiola: Busquets recebe a bola dos zagueiros, e todos os jogadores à sua frente estão marcados. Busquets, então, carrega a bola e atrai a atenção do defensor que marcava Iniesta. Agora, Iniesta tem espaço e pode receber a bola de Busquets. Ao receber, Iniesta atrai a atenção de outro defensor, que marcava Messi — Iniesta, agora, pode acionar Messi nas costas da defesa e, consequentemente, com espaço e tempo para agir. Nesse exemplo, Busquets é o primeiro homem, é quem dá início à jogada, atrai a atenção do primeiro marcador e começa o efeito dominó de abrir espaços pelo campo. Iniesta é o segundo homem, é a ponte entre o primeiro e o terceiro, é quem faz a ligação. Messi é o terceiro homem, é quem recebe a bola nas costas da defesa e tem tempo e espaço para tomar a melhor decisão possível. Van Gaal afirmava que quando o primeiro homem inicia a jogada, o segundo já deve ficar atento para receber a bola e o terceiro já deve iniciar o movimento de desmarque para receber nas costas da defesa. Nesse exemplo, quando Messi recebe a bola, ele se transforma no primeiro homem na jogada seguinte, que deve contar com outros dois jogadores como segundo e terceiro homem.

Nesse lance, Lahm (primeiro homem) recebe a bola e atrai a marcação de dois volantes. Esse movimento deixa Schweinsteiger (segundo homem) disponível e Lahm passa para ele. Assim que ele recebe a bola, Robben (terceiro homem) ataca o espaço formado e recebe a bola por trás dos volantes, livre, com espaço para agir.

3. A visão relacionista

“No futebol, os espaços são formados se movendo” — Carlo Ancelotti

Por outro lado, há aqueles que acham que um jogador só terá controle sobre o espaço se ele tiver controle sobre seu tempo. Se um jogador souber fazer as coisas no tempo certo, ele consequentemente terá controle sobre os espaços, logo, o caminho para o controle dos espaços é o controle do tempo. Aqui, o mais importante é que todos os jogadores em campo tenham total controle de suas ações e do tempo de suas ações e, a partir da interação entre eles, o time controlará os espaços e, portanto, a bola. Se um time tiver total controle sobre as relações entre seus jogadores, ele terá controle sobre os espaços do campo — daí o nome “relacionismo”.

3.1. A tradição europeia

“Jogamos futebol como Jimmy Hogan nos ensinou. Quando a história do nosso futebol for contada, o nome dele deve ser escrito em letras douradas” — Gusztáv Sebes

Enquanto os ingleses acreditavam que espalhar os jogadores em determinadas posições e acioná-los através de passes longos para que eles carregassem a bola em direção ao gol adversário, seus vizinhos da Escócia tinham uma ideia diferente. Eles acreditavam que o melhor jeito de obter superioridade no campo não era basear seu jogo em passes longos e conduções de bola, mas sim trabalhar a posse a partir de passes curtos. Segundo os primeiros teóricos desse estilo, o jogo não devia se basear em buscar passes longos e conduções de bola a todo momento, e que a atenção deveria ser voltada ao tempo das ações dos jogadores. A tese era a seguinte: a jogada iniciava quando um jogador dominava a bola; então, ele deveria parar, analisar o jogo, decidir o que fazer para, então, tomar a melhor decisão possível (dominar seu tempo); em seguida, ele passaria a bola para o companheiro melhor posicionado, e então se deslocaria para receber a bola de volta mais à frente para dar sequência à jogada, mesmo que a bola passasse por 2 ou 3 jogadores antes de voltar a ele. O time avançaria em campo assim: sempre a partir de passes mais curtos, que valorizassem mais a técnica dos jogadores e que permitissem jogadas mais elaboradas e bem trabalhadas. O mais importante aqui era que os jogadores desenvolvessem relações de mobilidade entre eles, sem dar tanta importância para as posições.

Curiosamente, foi um inglês o responsável por difundir esse estilo. Jimmy Hogan era filho de irlandeses, mas nasceu e cresceu na Inglaterra e construiu toda a sua carreira de jogador no país. Hogan era um jogador inquieto: não era exatamente um craque (Jonathan Wilson o descreve em seu livro “A Pirâmide Invertida” como “um meia-direita útil e dedicado), mas era profundamente incomodado pelo conformismo que reinava no futebol inglês, que insistia no jogo rudimentar e excessivamente físico dos passes longos e conduções de bola, diminuía a importância dos treinos com a bola e com a evolução individual dos jogadores e acreditava piamente que a superioridade técnica natural entre jogadores era algo insuperável e, por isso, treinos individuais que não fossem 100% voltados para trabalhar o físico eram inúteis. 

Acabou que Hogan não foi até a Escócia, a Escócia foi até Hogan. O jovem jogador se incomodava com o estilo de jogo rudimentar e excessivamente físico do Burnley, time em que jogava, e uma discussão sobre dinheiro foi a gota d’água para que ele rumasse em direção ao Fulham. O Fulham era comandado por Harry Bradshaw, um homem de negócios que tinha uma profunda aversão ao jogo de passes longos e conduções de bola da Inglaterra e, por isso, montou uma comissão técnica e um elenco recheado de escoceses para que eles conseguissem replicar o jogo de passes que já conquistara os gramados — e os corações — da Escócia. Ainda como jogador, Hogan conheceria James Howcroft, um engenheiro que também trabalhava como juiz em partidas de futebol, em uma viagem de pré-temporada pela Holanda, e alguns anos mais tarde Howcroft indicaria Hogan para ser treinador do FC Dordrecht — Hogan, frustrado com suas recentes lesões no joelho, deixou sua carreira como jogador de lado, aceitou a proposta, passou 2 anos treinando o FC Dordrecht e foi tão bem que chegou a comandar a Seleção Holandesa em uma partida contra a Alemanha. Ele tinha jogadores semiamadores em mãos, mas decidiu que iria treiná-los “como se treina um britânico” — melhorou a condição física de todos, mas focou mesmo os treinamentos na parte técnica de modo a desenvolver um método de jogo muito claro e fundamentado no velho jogo escocês de passes. Pouco depois, Hogan ainda tentaria recomeçar sua carreira como jogador, mas logo desistiu e aceitou seu destino como treinador.

O caminho de Hogan logo se cruzaria com o de Hugo Meisl, um austríaco aficionado por futebol que tomara a tarefa de transformar o futebol de seu país como missão de vida e, pouco a pouco, acumulava cargos e poderes na Federação Austríaca de Futebol até se tornar, de fato, o homem forte da organização. Meisl conheceria Hogan através de Howcroft que, após apitar um empate de 1 a 1 entre Áustria e Hungria, ouviu as reclamações de Meisl sobre o futebol da Áustria no jogo e sugeriu que ele conversasse com seu amigo Jimmy Hogan. Os dois se entenderam rapidamente e Meisl não demorou para oferecer a Hogan um contrato de 6 semanas que, na teoria, era para trabalhar junto dos melhores clubes de futebol da Áustria, mas na prática era para organizar a Seleção Austríaca para os Jogos Olímpicos de 1912. A Áustria acabaria eliminada nas quartas-de-final do torneio para a Holanda, mas Meisl estava completamente conhecido — o austríaco tinha uma visão razoavelmente romântica do futebol (diferente de Hogan, que preferia o jogo de passes escocês puramente porque achava o mais eficiente) e se encantou com o futebol que sua Seleção mostrara sob o comando do inglês. Meisl já começava a planejar um ciclo inteiro com Hogan para preparar a Áustria para os Jogos Olímpicos de 1916, mas a Primeira Guerra Mundial frustrou os planos — Hogan seria preso como cidadão estrangeiro apenas um dia depois da Guerra ser oficialmente declarada. Ele ficaria quase 2 anos em um campo de concentração na Alemanha até que o vice-presidente do MTK Budapeste, da Hungria, se solidarizasse com sua situação e articulasse politicamente para que ele fosse solto e treinasse seu time. Hogan seria campeão do Campeonato Húngaro de 1916/1917, mas deixaria a Hungria logo depois do fim da Guerra para voltar à sua terra natal — seu substituto no cargo de treinador do MTK Budapeste seria um de seus jogadores, o defensor Izidor “Dori” Kürschner. Não demoraria para que Hogan se desencantasse (de novo) com a Inglaterra e teve passagens relevantes pela Suíça (comandando tanto o Young Boys como, mais tarde, a Seleção da Suíça nos Jogos Olímpicos de 1924 ao lado de Dori Kürschner) e pela Alemanha (no Dresdner SC) antes de voltar a trabalhar com Hugo Meisl, agora treinador da Seleção Austríaca, no começo da década de 1930.

Jimmy Hogan não foi um treinador particularmente vencedor no sentido de colecionar muitos títulos, mas foi extremamente vitorioso ao conseguir não apenas moldar um estilo de jogo, mas sistematizá-lo, transformá-lo em método e difundi-lo por toda a Europa Central. Seus trabalhos na Suíça, na Alemanha e principalmente na Hungria e na Áustria criariam uma identidade de jogo extremamente bem definida, e a proximidade desses países ao Rio Danúbio acabou popularizando essa identidade como Escola Danubiana.

A Escola Danubiana, Escola do Danúbio, Jogo Danubiano ou qualquer outra variação desse tipo de nome teve raízes fortíssimas no velho jogo escocês de passes, mas ia muito além disso. Os escoceses criaram a semente, sim, ao construir a ideia de que o futebol poderia valorizar mais a técnica que o físico e que o melhor jeito de avançar em campo não era necessariamente respeitando as posições de forma quase religiosa e buscando sempre passes longos, disputas físicas e conduções de bola, mas talvez abrindo mão de ideias rígidas de posições em prol de uma aproximação maior dos jogadores para que eles possam trocar passes curtos, se movimentar e chegar ao gol a partir disso. Hogan, então, a semeou — ele não era um inimigo jurado dos passes longos e acreditava que eles eram úteis se usados com parcimônia e não a todo momento como no estilo inglês, mas para ele o método mais eficiente para se avançar em campo era a partir de passes curtos que privilegiassem a técnica de seus jogadores e que dessem a eles a capacidade de interpretar a jogada e buscar dominar o tempo de suas ações, mesmo que em detrimento de uma maior vantagem espacial. Os países danubianos — especialmente Áustria e Hungria em um primeiro momento e a Alemanha em um segundo — germinaram essa semente, deram a ela corpo, nome, identidade e até toques pessoais.

O pilar desse jogo era claro: os jogadores deveriam se aproximar uns dos outros para facilitar toques curtos e em progressão ao criar linhas de passe mais curtas e mais numerosas — se, no jogo inglês, um jogador pegava a bola, não tinha ninguém a seu redor e a única opção era conduzi-la, agora, quando um jogador pegava a bola, teria 4, 5, 6 companheiros próximos a ele oferecendo inúmeras linhas de passe curtas que permitiam que o time trabalhasse a bola através de toques curtos. A prioridade era que os jogadores estabelecessem interações e relações de mobilidade entre eles, que eles tivessem mais liberdade para interpretar a jogada e decidir, por eles mesmos, qual era a melhor decisão a ser tomada: os jogadores, agora, eram senhores de seus próprios tempos. O Jogo Danubiano permitia que eles se deslocassem por espaços mais longos, que todos se aproximassem da bola para criar mais linhas de passe, mais possibilidades de interações e mais relações de mobilidade entre eles. As funções dos jogadores começavam a ser as protagonistas do jogo, e as posições tiveram que responder a elas — agora, dominar o tempo era mais importante que dominar os espaços. A posse era baseada em passes curtos, sim, mas, diferentemente do Futebol Total que a Escola Danubiana mais tarde inspiraria, a bola não era trabalhada entre as posições, mas a partir das funções individuais dos jogadores: a lógica era passá-la a partir das movimentações naturais dos jogadores, e não entre zonas pré-definidas. Os jogadores se moviam com a bola, seguiam seu curso, se juntavam ao redor dela e trabalhavam-na a partir de seus movimentos, da execução de suas funções particulares. 

O primeiro grande time da Escola Danubiana seria o Wunderteam austríaco comandado por Hugo Meisl (e por Jimmy Hogan em alguns períodos) entre o final dos anos 20 e o começo dos anos 30 ao apresentar dinâmicas belíssimas de movimentação e aproximação tendo Sindelar como uma arma surpresa, atuando como um centroavante que deixava a referência do ataque e circulava por todo o campo. Pouco depois, a Itália bicampeã mundial de Vittorio Pozzo (um grande amigo e rival de Hugo Meisl) já assimilava alguns conceitos do Jogo Danubiano e começava a dar mais importância às relações estabelecidas entre os jogadores que os espaços que eles ocupavam. As décadas passaram, o futebol danubiano se desenvolveu, e a Iugoslávia só não foi a grande sensação da Copa de 1954 com seus pontas invertidos e seu centroavante móvel porque os Mágicos Magiares, a geração de ouro da Hungria guiada por Ferenc Puskás e treinada por Gusztáv Sebes, escreveria a mais bela e mais trágica página de sua história ao fazer um torneio que só não foi impecável pela polêmica derrota para a Alemanha Ocidental na final (Alemanha esta que também fora influenciada pela Escola Danubiana, mais sobre isso mais tarde). Rompendo a lógica de posições, aproximando seus jogadores, privilegiando a técnica ao dar a eles o poder de interpretar, intuir e agir e dominando o próprio tempo antes de qualquer coisa, o relacionismo tomava sua primeira forma nas margens do Rio Danúbio.

A Hungria de Gusztáv Sebes aproximava seus jogadores com pouco ou nenhum respeito às posições originais de cada um. O foco do time era estabelecer interações e relações de mobilidade entre os jogadores para que a qualidade técnica deles fosse privilegiada. A lógica de movimentação do time segue a ideia de estabelecer essas relações e não de dominar os espaços, portanto, há uma maior liberdade para movimentos mais longos.

3.2. A tradição sul-americana

“Como o tango, o futebol floresceu nas favelas. Nas canchas de Montevidéu e Buenos Aires, nascia um estilo. Uma maneira própria de jogar o futebol ia abrindo caminho, enquanto uma maneira própria de dançar se afirmava nos pátios milongueiros. Os bailarinos desenhavam filigranas, fazendo floreios num tijolo só, e os futebolistas inventavam sua linguagem no minúsculo espaço onde a bola não era chutada, mas retida e possuída, como se os pés fossem mãos trançando o couro. E nos pés dos primeiros virtuosos nativos nasceu o toque: a bola tocada como se fosse violão, fonte de música” — Eduardo Galeano

Do outro lado do Atlântico, havia um outro grupo de países que abraçou efusivamente o novo esporte criado pelos ingleses, mas que rejeitou de forma ainda mais efusiva o jeito que os ingleses o praticavam. Quando o futebol chegou na América do Sul, ele carregava um status de um jogo elitista, praticado apenas por aqueles que tinham contato com a cultura inglesa, sejam membros de famílias ricas que estudavam em escolas britânicas na América do Sul, descendentes de britânicos ou até mesmo britânicos que viviam por lá. Por causa disso, o estilo inglês de passes longos e conduções de bola se estruturaria rapidamente entre essa elite, que se importava mais em fazer as coisas de forma eficiente e correta do que qualquer outra coisa. Havia uma obsessão pela objetividade, pelos planos de jogo e pela abordagem metódica e disciplinada dos ingleses, voltado mais para a valorização da virilidade, masculinidade e fisicalidade do que para a valorização da técnica. Dentro daquela elite, não havia espaço para o romantismo no futebol.

Isso não duraria muito tempo: a semente do futebol veio da Inglaterra e chegou até as elites, mas, como disse Galeano, ela só floresceria nas favelas. O processo foi gradual, claro, mas o futebol começaria a se livrar da forte influência inglesa para ser abraçada pelo povo sul-americano (mais especificamente, pelo Uruguai, pela Argentina e pelo Brasil). Os sinais desse processo eram tão tímidos quanto eram claros: as associações de futebol da Argentina e do Uruguai substituíram o inglês pelo espanhol como a língua oficial de seus negócios em 1903 e 1905 respectivamente, e em 1912 a Associação de Futebol da Argentina (AFA) substituiria seu nome em inglês (Argentinian Football Association) por um nome mais nacional (Asociación de Football Argentina — o Football só seria substituído por Fútbol em 1934). O Brasil demorou um pouco mais para desenvolver uma abordagem mais natural ao futebol, mas quando a população brasileira começou a assistir um esporte muito mais fácil de ser replicado que o críquete, logo o abraçou e começou a replicá-lo.

“Nosso futebol mulato […] é uma expressão de nossa formação social, […] rebelde a excessos de ordenação interna e externa; a excessos de uniformização, de geometrização, de estandardização; a totalitarismos que façam desaparecer a variação individual ou a espontaneidade pessoal” — Gilberto Freyre

Não há como superestimar a importância do futebol de rua na formação cultural do esporte na América do Sul. À medida que as classes mais baixas tinham contato com o mais novo esporte das elites, elas se afeiçoavam a ele na mesma medida que rejeitavam a abordagem que as elites lhe davam. A facilidade de replicar o futebol foi, com certeza, um dos principais fatores que o tornou tão popular na América do Sul: não era preciso um instrumento específico como o beisebol ou o críquete, não era preciso montar uma estrutura engenhosa como o vôlei ou o basquete, era preciso apenas uma bola (ou simplesmente algo que rolasse ao ser chutado) e algo para demarcar o gol; mais nada. O futebol rapidamente se tornaria um esporte das ruas, do povo, e que crescia no mesmo lugar que cresciam o tango na Argentina e no Uruguai e o samba no Brasil. Esses países começaram a mesclar a própria cultura no jeito de jogar futebol: a miscigenação, a resistência às rígidas normas europeias, a flexibilidade, a plasticidade artística tão valorizada na música e na dança, tudo isso dava corpo ao esporte que se praticava na América do Sul. Em seu texto sobre o futebol brasileiro, József Bózsik, o Húngaro, afirma que “o nosso jogo, as nossas características, as nossas escolhas são parte de nossa cultura. O futebol é parte integrante da vida material, afetiva e simbólica do povo. O nosso jogo foi forjado pelas características do povo brasileiro. […] A miscigenação “deseuropeizou” o futebol brasileiro. O nosso estilo de jogo era um reflexo da formação social brasileira. O nosso futebol seria dionisíaco […], e não apolíneo”.

Se o processo de romper a influência inglesa no futebol foi gradual, a popularização do novo futebol sul-americano foi avassaladora. A facilidade com que o esporte poderia ser replicado, não em quadras ou campos específicos, mas na rua, na porta de casa, no gramado ao lado da igreja, em qualquer área minimamente reta, rapidamente conquistou todo o continente. Dentro desse novo futebol, a rigidez metódica do jogo inglês, que só se preocupava com a objetividade do jogo, não encontrou lugar e foi substituída, como dito antes, pelas mesmas flexibilidade e plasticidade que originaram o samba e o tango. Povos com históricos violentos de escravidão e colonização aprenderam rapidamente a resistir à ordem externa imposta por colonizadores que se preocupavam apenas em impor a própria cultura sobre os outros; aprenderam a confiar em si mesmos, a dar mais valor ao individual e a flexibilizar a ordem. Assim, o futebol nesses países nasceu a partir da desordem que reinava no jogo de rua: não havia posições determinadas, regras rígidas ou uma valorização da objetividade, mas sim habilidades individuais, a criatividade disruptiva, a liberdade de movimentação e a valorização da técnica, da beleza subjetiva. A verdade é que o estilo inglês não tinha nenhuma chance na América do Sul, e não demoraria até que a elite “europeizada” ficasse em menor número e o estilo sul-americano galgasse seu caminho até os clubes de futebol.

Uns demoraram mais que outros; o Uruguai abraçou de vez o estilo do país no final dos anos 1910 e a Argentina, no começo dos anos 1920. O Brasil demoraria mais, mas o futebol brasileiro dos anos 1930 já tinha uma personalidade e uma autenticidade muito fortes. A valorização da técnica se tornara um fundamento muito importante nesses países que, ao dominarem a técnica individual, começaram a trabalhá-la melhor através da tática. Francisco Varallo, meia-direita da Argentina na final da primeira Copa do Mundo, disse que “Times sul-americanos tratavam melhor a bola e tinham uma perspectiva mais tática”. Surgia aqui uma noção de que planejar o jogo taticamente não era apenas moldar o time para ser ultraobjetivo como os ingleses, mas que tornar um conjunto de 11 indivíduos em um time também podia ser conectar os talentos, sincronizar os jogadores e aperfeiçoar a técnica. Enquanto a Inglaterra pensava na tática como um modo de dominar os espaços do campo, a América do Sul trabalhava-a com o objetivo de dominar o tempo dos jogadores. Os times sul-americanos se organizavam a partir dos indivíduos que os formavam: o pensamento não era mais achar uma estrutura e encaixar os jogadores nela, mas sim criar uma estrutura a partir do que cada indivíduo do time pode oferecer a ela. A tática era um método para enriquecer o indivíduo pois, ao enriquecer o indivíduo, o coletivo também seria enriquecido. 

É muito comum encontrar discursos por aí que afirmam de peito aberto que o Jogo Danubiano da Hungria deu a base tática para o futebol sul-americano, principalmente por causa de uma excursão do time húngaro Ferencváros em 1922 na Argentina e pelas passagens pelo Brasil dos húngaros Dori Kürschner (sim, o mesmo que fora jogador de Jimmy Hogan) no Flamengo, de 1937 a 1938, e no Botafogo, de 1939 a 1941, e Béla Guttmann, que deixou o Honvéd de Puskás para treinar o São Paulo entre 1957 e 1958. Porém, quando os húngaros resolveram desbravar as terras sul-americanas, descobriram que o futebol por lá ia muito bem, obrigado. O estilo próprio desses países de valorização da técnica individual já estava muito enraizado, e eles já começavam a explorar a tática como meio para aperfeiçoar a técnica.

O que aconteceu foi um caso de convergência evolutiva. Na biologia, a convergência evolutiva é um fenômeno em que indivíduos sem grau de parentesco acabam, de forma independente, desenvolvendo soluções parecidas para o mesmo problema.Por exemplo, como os mamíferos aquáticos, como baleias e golfinhos, e os peixes desenvolveram de forma independente barbatanas com estruturas muito parecidas; como não há grau de parentesco próximo entre eles, não há um ancestral comum que tinha uma barbatana daquele jeito – eles a desenvolveram de forma independente. 

Os países danubianos e sul-americanos foram expostos, de forma independente, a problemas parecidos, e os resolveram de modo parecido. Apesar das razões serem razoavelmente diferentes, ambos rejeitaram o estilo excessivamente físico e rígido da Inglaterra, abraçaram a técnica individual e desenvolveram métodos que rompiam com a ideia de posições fixas para que os jogadores tivessem mais liberdade para se aproximar, criar interações e relações entre eles e trabalhar a bola a partir dos movimentos individuais e singulares dos jogadores. O Jogo Danubiano valorizava mais o passe e o sul-americano, as jogadas individuais, mas com o devido respeito às diferenças culturais, a base ideológica de ambos era razoavelmente parecida. A passagem dos húngaros pela América do Sul certamente fez muito bem ao futebol do continente, mas não substituiu uma coisa por outra: os sul-americanos apenas assimilaram o que eles julgavam mais interessante e adaptaram esses conceitos à cultura já existente, em um processo de antropofagia. Por exemplo: o WM (esquema que lembra o 3–4–3 ou o 3–2–5 atual) já existia na América do Sul, mas somente a partir da ótica inglesa e, por isso, não fazia sucesso. Dori Kürschner chegou ao Brasil como um grande admirador do WM, mas seus times o praticavam à maneira húngara, com maior flexibilidade de posições, passes curtos, aproximações e assimetrias. Kürschner não trouxe o WM ao Brasil, mas ofereceu ao país uma nova visão sobre o sistema que, a partir daí, começou a ser mais aceito.

Esquema tático
 O esquema WM.

Flávio Costa, que jogou no Flamengo sob Dori Kürschner e, mais tarde, se tornaria auxiliar do húngaro, acabou sendo seu sucessor no comando do Flamengo e começou a trabalhar a base tática do WM danubiano de Kürschner. Flávio manteve os 3 defensores e os 3 atacantes, mas alterou profundamente a estrutura do meio-campo. Ele puxaria o volante mais à direita para baixo, mais próximo dos zagueiros, e o transformaria no primeiro volante; o outro ficaria levemente mais avançado, como um segundo volante, ou um meio-campista de ligação. O meia mais à direita também recuava, enquanto o meia mais à esquerda avançava para se tornar o clássico ponta de lança. Assim, o quadrado no meio-campo do WM se tornaria algo mais parecido com um paralelogramo, criando uma espécie de diagonal da esquerda para a direita (que poderia ser invertida se, ao invés de recuar os jogadores do lado direito, recuar os jogadores do lado esquerdo). A partir disso, Flávio montou um esquema impossível de ser numerado, pois seus times se organizavam a partir da função individual de cada jogador. Cada um dos jogadores ficava em uma altura específica do campo, sem formar linhas, e o time se organizava ao redor dos movimentos naturais dos jogadores — a tática enquanto maneira de organizar o time a partir dos talentos individuais. O esquema de Flávio era assimétrico e não seguia a lógica de linhas, pois procurava escalonar os jogadores em diferentes alturas, criando “escadinhas” para o time avançar e uma diagonal para que a bola fosse de um lado do campo para outro.

A diagonal da esquerda para a direita de Flávio Costa, derivada do WM danubiano de Kürschner.
A diagonal da esquerda para a direita de Flávio Costa, derivada do WM danubiano de Kürschner.

Ao longo das décadas de 1940 e 1950, o primeiro volante recuado por Flávio Costa recuaria ainda mais até se tornar um quarto defensor, e o ponta de lança viraria efetivamente mais um atacante; assim, lentamente, o renovado WM brasileiro baseado nas assimetrias e nas diagonais se tornava um 4–2–4.

 O processo de formação do 4–2–4 brasileiro.
 O processo de formação do 4–2–4 brasileiro.

Quando Béla Guttmann chegou ao Brasil, mais um processo de convergência evolutiva já unira as duas culturas e a Hungria também já tinha desenvolvido seu 4–2–4, mas a partir de mecanismos diferentes. A Seleção Húngara de Gusztáv Sebes também transformara um dos volantes do WM em um defensor a mais, mas os dois meias-atacantes se tornariam de fato atacantes e o centroavante recuaria com tanta força que não era mais um falso 9, como Sindelar no Wunderteam austríaco, mas sim um meio-campista. De qualquer maneira, tanto a Hungria como o Brasil voltariam a encontrar soluções parecidas de forma independente, e o 4–2–4 já estava bem estruturado no Brasil quando Béla Guttmann chegou com o 4–2–4 húngaro em mente. Mais uma vez, os brasileiros assimilariam movimentações e métodos específicos e os adaptariam para o que já existia no país.

O 4–2–4 húngaro surgiu a partir do recuo de um dos volantes para ser um defensor a mais e o recuo do centroavante para virar um meia a mais.
O 4–2–4 húngaro surgiu a partir do recuo de um dos volantes para ser um defensor a mais e o recuo do centroavante para virar um meia a mais.

Desde seus respectivos surgimentos, a Escola Danubiana e o futebol sul-americano estavam destinados a um casamento perfeito. Pouco a pouco, ambos iam se fundindo, um assimilava características dos outros e, a partir das ideias relacionistas que os fundamentavam, rompiam com a lógica posicional inglesa e davam maior ênfase ao tempo dos jogadores, ou seja, se organizavam do tempo para o espaço. Esse processo teve inúmeros desdobramentos — o jogo de passes curtos da Hungria de 1954 encantou Rinus Michels que transportou essa ideia para a lógica posicional e, a partir disso, criar o Futebol Total holandês. No entanto, o desdobramento mais relevante foi bem mais autoral: tanto no Danúbio como na América do Sul, os estilos andavam juntos e davam corpo ao conceito do relacionismo. Nascia, assim, o ataque funcional.

3.3. O ataque funcional

Carlo Ancelotti e Luciano Spalletti
Os italianos Carlo Ancelotti e Luciano Spalletti foram os representantes mais relevantes do ataque funcional na temporada europeia 2022/2023 comandando Real Madrid e Napoli, respectivamente.

“Futebol é um jogo, e deve ser jogado com liberdade” – Jürgen Klopp.

O ataque funcional nada mais é que o conceito do relacionismo aplicado de forma concreta em um jogo de futebol. Se o relacionismo diz que um time só controlará os espaços do campo se antes tiver total controle sobre o tempo dos jogadores, isso significa que cada jogador deve ter controle tanto sobre sua percepção individual sobre o jogo quanto sobre as ações que se originam dessa percepção. Cada jogador é um indivíduo único, que possui percepções únicas, intui e interpreta de jeitos únicos e, consequentemente, age de um jeito único. A execução disso em campo é o que chamamos de função — se o espaço ocupado por um jogador é sua posição, quando chega a hora de agir e ele põe suas percepções, interpretações e intuições em prática, transformando-as em ações concretas, ele exerce sua função. No ataque posicional, as funções são secundárias e devem responder às posições — como explicado antes, no Jogo de Posição, as funções mudam de acordo com as posições, e quando um jogador sai de uma posição para atuar em outra, ele deve mudar sua função para aquela que corresponde à nova posição que ele ocupa. No ataque funcional, a lógica é inversa: quem reina aqui são as funções. Cada jogador tem sua própria função, ou seja, tem uma relação particular com o próprio tempo, pensa e faz de um jeito singular — o time, então, se organiza ao redor dessas funções. É um jogo de funções, não de posições — daí o nome ataque funcional.

O conceito de controlar o tempo, que tomou forma na primeira metade do século XX nos times danubianos e sul-americanos que buscavam aglomerar jogadores na zona da bola e construir equipes a partir de movimentos individuais, foi se materializando e se desenvolvendo com o tempo. O resultado é um estilo de jogo que busca avançar em campo a partir dos movimentos e das relações de mobilidade que os jogadores estabelecem em campo. A bola não vai até os jogadores, que esperam em suas posições; os jogadores vão até a bola, pois são seus movimentos que ordenam o time, e não suas posições. Um ponta cruza o campo para se aproximar da zona da bola; um meia faz uma compensação lateral como resposta ao movimento do ponta; um jogador passa a bola e imediatamente se desloca para recebê-la de volta; um jogador recebe a bola e um companheiro faz um desmarque de apoio, isto é, se aproxima do portador da bola para oferecer uma opção de passe mais curta, enquanto outro companheiro faz um desmarque de ruptura, isto é, se movimenta para frente, buscando oferecer uma opção de passe mais aguda e vertical; são com esses movimentos constantes, jogadores apoiando e rompendo, passando e fazendo a ultrapassagem, recuando, cruzando o campo etc. que a organização ofensiva do time toma forma. Os jogadores viajam com a bola, e o time a trabalha a partir dos movimentos e relações de mobilidade estabelecida pelos jogadores.

Se organizar ao redor da bola e se movimentar junto dela: parece pleonasmo dizer que um time se movimenta de acordo com a bola. Afinal, todos os movimentos de um time, sejam eles para atacar ou para se defender, têm como norte a posição da bola. Como dito antes, no Jogo de Posição, um treinador determina quais zonas do campo seus jogadores devem ocupar de acordo com a posição da bola; à medida que a bola avança, as zonas a serem dominadas mudam, e os jogadores se movem para deixar as zonas antigas e ocupar as novas. Por que, então, isso seria um diferencial em um ataque funcional?

Porque um time que pratica ataque funcional vai além de se movimentar de acordo com os movimentos da bola e se organizar a partir deles, ele se organiza ao redor da bola e de seus movimentos. Já que o objetivo do ataque funcional é organizar o time a partir das relações que os jogadores, enquanto cada um exerce sua função particular, estabelecem entre eles, é muito comum (embora não obrigatório, veremos isso mais à frente) que os times que praticam o ataque funcional se desvencilhem da maioria das noções de posição e domínio dos espaços (para não dizer de todas) e aglomerem jogadores ao redor da bola, pois não é interessante para o ataque funcional que um jogador fique longe de onde os outros estão apenas para assegurar que aquele espaço esteja ocupado – é muito mais vantajoso que esse jogador se aproxime dos outros para que ele ofereça ao time mais possibilidades de movimentação, interação e relações de mobilidade. Ter jogadores mais próximos uns dos outros, como visto antes, cria linhas de passe mais numerosas e mais curtas e, portanto, oferece aos jogadores mais possibilidades de interação progressivas, facilita o desenvolvimento de um jogo de imposição técnica e toques curtos e privilegia o talento individual além de, claro, criar uma poderosa vantagem numérica ao redor da bola. Para impulsionar isso, quando a bola vai para alguma faixa do campo – seja a faixa da esquerda, da direita ou central – um time que pratica ataque funcional aglomera seus jogadores naquela faixa para que todos estejam próximos uns dos outros. Por exemplo: quando a bola vai para um dos lados do campo, é muito comum ver o lateral do lado oposto fazendo um movimento em diagonal para se aproximar da zona da bola e servir tanto como opção de passe curto como uma ajuda defensiva para quando o time perder a bola – chamamos isso de diagonal defensiva.


O Real Madrid de Ancelotti
O Real Madrid de Ancelotti era um time que abraçava efusivamente a ideia de agrupar jogadores ao redor da bola. Nessa imagem, 9 jogadores do Real Madrid ficam do lado esquerdo do campo, e 7 desses 9 se espremem em uma faixa ainda menor.
Fluminense de Fernando Diniz
O Fluminense de Fernando Diniz talvez seja o time mais radical e ortodoxo ao aproximar seus jogadores para criar linhas de passe mais numerosas e mais curtas e superioridade numérica ao redor da bola. Nesse lance, todos os jogadores de linha estão aglomerados no lado esquerdo do campo ao redor da bola; Guga, o lateral direito, faz uma diagonal defensiva para se aproximar da zona da bola.
Bayern de Munique de Julian Nagelsmann
O Bayern de Munique de Julian Nagelsmann, durante boa parte da temporada 2022/2023, foi um exímio representante do ataque funcional mais ortodoxo. Observe que o Bayern junta 7 jogadores no lado esquerdo ao redor da bola, incluindo Gnabry, o ponta-direita. Mané está livre para atacar o lado oposto esvaziado. Pavard, lateral-direito, faz uma diagonal defensiva para se aproximar da zona da bola.

Os jogadores próximos uns dos outros, organizados ao redor da zona da bola, é o terreno fértil que o ataque funcional precisa para florescer. A partir daí, o “desrespeito” às posições só fica maior: quando o ataque funcional é posto em prática, o time começa a trabalhar a posse de bola não entre as posições, como no Jogo de Posição, mas a partir das funções. Os jogadores não esperam a bola chegar até eles, mas se movem junto com a bola, e cada um exerce sua própria função ao desenvolver a própria percepção, intuir a partir dela e agir de acordo com o que intuiu. Por causa disso, a posse de bola dá um ar de inquietude: enquanto o Jogo de Posição imprime uma maior sensação de calma, pois os movimentos dos jogadores são mais limitados e a bola vai até as posições, até os ataques funcionais mais cadenciados possuem sequências alucinantes. Os jogadores se movem constantemente, vão até a bola, recebem um passe e, ao passar a bola adiante, imediatamente se deslocam para receber a bola de volta em outro lugar. Se o Jogo de Posição busca ocupar os espaços e trabalhar a bola a partir deles, o ataque funcional busca esvaziar os espaços – um jogador recebe a bola no espaço, passa para um companheiro e imediatamente se desloca, esvaziando o espaço que antes ocupava para infiltrar em um novo espaço vazio e dar sequência à jogada. É assim que um time se organiza ao redor dos movimentos dos jogadores: a posse é trabalhada a partir das funções dos jogadores, que sempre se movimentam ao redor da bola e buscam esvaziar os espaços para manter essa dinâmica. Isso cria um ar de imprevisibilidade dentro do ataque funcional: não há como mecanizar as jogadas como em um Jogo de Posição, onde um treinador determina as zonas a serem dominadas, o modo que essas zonas serão dominadas e como a bola chegará aos jogadores. Se o time se organiza pelos jogadores e o coletivo se forma a partir das individualidades, criar mecanismos pré-definidos, determinar como a bola será trabalhada, como ela chegará aos jogadores e como os jogadores se movimentarão se torna uma tarefa exponencialmente mais difícil e, por isso, os ataques funcionais costumam ser mais imprevisíveis, menos sujeitos ao controle externo e mais adequados para cenários caóticos. A cada nova jogada, algo nunca visto antes pode surgir, pois as jogadas se desenrolam a partir das percepções, intuições e ações individuais de cada jogador.

O Fluminense de Fernando Diniz aglomerando seus jogadores ao redor da bola, trabalhando a posse a partir das funções, dos passes curtos e dos toques em progressão.

A tarefa de um treinador passa a ser organizar os movimentos dos jogadores, para que o jogo não vire um bate-cabeça generalizado, e trabalhar esses movimentos para que o encaixe entre eles passe a ser mais natural. Sobre isso, Klopp afirma que “quando um jogador novo chega, eu não dou nenhuma informação para ele. É tipo, deixe-o jogar, vamos aprender sobre ele, o que ele faz naturalmente, o que queremos ajustar, o que queremos deixar com ele e o que queremos que ele pare de fazer” – a ideia de, antes de tudo, entender como o jogador se move naturalmente para só então polir esses movimentos para que ele se encaixe melhor no time. Ancelotti descreve sua metodologia de treinamentos como “tarefas individuais” – ele, assim como Klopp, busca primeiro identificar como um jogador se move naturalmente para, a partir disso, atribuir-lhe uma tarefa individual que corresponda a esses movimentos – Ancelotti prefere lapidar os movimentos dos jogadores para construir um time a partir disso que escolher um sistema pré-definido e treinar seus jogadores para que eles se encaixem nele. “As tarefas individuais estão muito ligadas às características físicas dos jogadores. Na atribuição de tarefas individuais, são levadas em conta não só as características e a função do jogador específico, mas também as particularidades técnicas e físicas do parceiro mais próximo. O treinador vê o todo, combina qualidades individuais e compõe a equipe”, explica o italiano. Desenvolver uma identidade tática funcional leva tempo e exige um método de treinamento muito próprio que permita que o treinador consiga entender as qualidades individuais dos seus jogadores em um primeiro momento e sincronize essas qualidades para formar a equipe em um segundo momento. Essa abordagem nem sempre dá certo: quando Ancelotti chegou ao Bayern, os jogadores estavam acostumados à abordagem mais rígida e metódica do Jogo de Posição de Guardiola, e reclamavam dos treinos “longos e sem especificação” que Ancelotti usava para explorar os movimentos dos jogadores e atribuir a eles pequenas tarefas individuais, sem impor um sistema antes. Porém, mesmo que tudo dê certo e o treinador tenha total conhecimento das características de cada jogador e tenha conseguido combiná-las perfeitamente, o time ainda se organiza a partir de percepções e movimentos individuais e, por isso, o treinador do ataque funcional deve sempre se acostumar com a ideia de que o caos será parte das partidas uma hora ou outra.

Movimentos longos, tabelas e toco y me voy: embora se organizar ao redor da bola e empilhar jogadores ao redor dela seja um princípio único do ataque funcional, ele não é aquilo que define se um time é ou não funcional – na verdade, eu não acredito nem que seja algo determinante. Juntar jogadores ao redor da bola é, sem sombra de dúvidas, um jeito muito eficiente de potencializar as interações entre os jogadores, mas devemos olhar além das aproximações e entender o princípio por trás delas: organizar o time a partir das funções e fazer o time avançar a partir dos movimentos individuais dos jogadores implica que eles realizem movimentos longos que rompem com a ideia de posições.

Expliquei antes que a movimentação dentro do Jogo de Posição deve seguir a lógica das zonas que o treinador atribui a cada jogador e, portanto, quando um jogador se movimenta, ele deve fazê-lo a partir de movimentos curtos, que respeitem a zona que o treinador lhe atribuiu para que ele espere a bola chegar até ele. No ataque funcional, a lógica é inversa: o jogador se move em direção à zona da bola, deixando sua posição original. Ao chegar perto da bola, chega a hora de interagir – mais uma vez, o jogador não espera a bola chegar até ele para passá-la adiante, mas se desloca para perto dela. A sequência da jogada também é diferente: no Jogo de Posição, o jogador precisa permanecer em sua zona depois de passar a bola para que aquele espaço continue ocupado; no ataque funcional, após passar a bola, o jogador se desloca para atacar um espaço que esteja vazio e ficar disponível para receber a bola de volta – é a lógica do “toco y me voy”, passo e me vou. Os movimentos dos jogadores é o que faz a bola avançar em campo, é o que dita as dinâmicas de posse da equipe, e esses movimentos – sair de sua posição para se aproximar da bola, se movimentar em direção dela para receber, tocar e ultrapassar para receber a bola de volta mais à frente etc. – requerem que os jogadores rompam com a lógica de posições para que eles exerçam sua função, sempre interajam com a jogada e que eles se movam por espaços longos. Se Cruyff quer que seus atacantes corram 15 metros, o ataque funcional quer mais é que seus atacantes cruzem o campo, fazendo movimentos de 40, às vezes 50 metros; ao invés de esperar a bola, os jogadores a buscam, se movem em direção a ela para interagir com os outros e colocar em prática sua percepção do jogo, seu tempo. Os jogadores podem sair da esquerda para a direita e vice-versa, fazer uma ultrapassagem para receber a bola mais à frente ou recuar para recebê-la em um passe mais curto – o que importa é que eles estejam sempre em movimento, sempre interagindo com a jogada, para o time avançar a partir disso. Eles têm a liberdade de fazer movimentos longos, deslocamentos extensos e intermináveis, sempre um seguido do outro – movimentos constantes de apoio e ruptura. Os jogadores não se limitam a mover a bola, eles se movem com ela.

O Brasil de 1982 era um time muito sedimentado no ataque funcional. Nesse lance, Sócrates carrega a bola enquanto Zico cruza o campo, saindo da direita até chegar no lado esquerdo do campo, onde está a bola. Sócrates, então, passa para Zico e se desloca. Zico carrega a bola e passa para Éder, que fazia uma ultrapassagem pelo lado do campo, e também se desloca. Passo e me movo, passo e me movo.

Tomemos o Napoli de Luciano Spalletti como exemplo. O Napoli não era um time que buscava juntar jogadores ao redor da bola e, na verdade, começava as jogadas com um 4-3-3 bem definido, com todos os jogadores em suas posições. No entanto, quando o time tinha a bola, sua lógica de movimentação estava muito mais interessada em criar relações de mobilidade entre os jogadores do que dominar os espaços do campo. Mesmo com os jogadores mais espaçados, as posições iniciais deles não ditam como eles se comportam, e todo o time se movimenta por espaços longos. É muito comum ver, no Napoli, um ponta atravessando o campo para interagir, um jogador passando e imediatamente se movimentando para receber mais à frente, coisas que rompem com a lógica de um jogo posicional para que os jogadores possam interagir e se movimentar – isso é relacionismo, isso é ataque funcional, mesmo que não em sua forma mais ortodoxa. A Alemanha de Hansi Flick possui uma lógica parecida. “Não existem mais sistemas no futebol. É tudo sobre os espaços deixados pelo oponente. Você precisa ser rápido para notá-los e saber o momento certo para atacá-los”, diz Luciano Spalletti – esvaziar os espaços para sempre invadir o espaço vazio e manter a lógica de movimentação intensa, sempre de acordo com a bola.

Nesse lance, Kvaratskhelia pega a bola na esquerda, se movimenta para dentro, passa para Zambo Anguissa e continua se deslocando para receber a bola de volta mais à frente; no final, Kvaratskhelia dá uma assistência para Di Lorenzo do lado direito do campo. Kvaratskhelia cruzou o campo, se deslocou por um espaço longo, passou e imediatamente se deslocou e terminou a jogada do lado oposto de onde começou. Ele rompe a noção de posições para estabelecer relações em campo.
Outro exemplo de movimentos longos, agora no Real Madrid de Ancelotti. Vinícius Júnior pega a bola e carrega-a para dentro. Ele passa para Benzema e imediatamente se desloca para receber de volta para frente; ao receber, ele passa para Carvajal, lateral-direito, que cruzou o campo para se aproximar da bola. Carvajal passa de primeira para Benzema que, ao passar para Vinícius Júnior, já iniciara seu deslocamento para invadir um espaço vazio que se formou. Créditos: @paride_pasta.
O Real Madrid está aglomerado do lado esquerdo do campo. Bellingham recebe a bola, passa para Valverde e imediatamente faz um movimento de ultrapassagem: toco y me voy. Valverde passa para Brahim, que devolve a bola para Bellingham quase na entrada da área.
Os jogadores do Fluminense, aglomerados do lado direito do campo, também buscam sempre se movimentar após passar a bola, fazendo constantes ultrapassagens para atacar espaços vazios que se formaram e rapidamente esvaziá-los de novo.
Um exemplo clássico: no Real Madrid de 1962, Di Stéfano passa a bola e imediatamente se desloca para recebê-la mais à frente em um espaço vazio e, então, toca de primeira para Puskás fazer o gol. Perceba que, mesmo após tocar para Puskás, Di Stéfano continuou se movimentando para frente, esvaziando o espaço que ocupava para atacar o novo espaço que se formou.

4. Homogenia, fordismo, cultura e Juanma Lillo

“Tudo é dois toques. Todos treinam com dois toques, então todos jogam com dois toques. Nós criamos o ‘doistoquismo’. […] Sou como um pai arrependido” – Juanma Lillo

O impacto que o Barcelona de Guardiola teve no futebol foi algo de proporções poucas vezes vistas na história do esporte. O tamanho do controle que aquele time tinha durante as partidas, a forma categórica que ele superava adversário após adversário; aquele Barcelona parecia jogar alheio a tudo que acontecia em campo, como se a presença de um time adversário fosse algo tão relevante quanto a intensidade do vento – algo que se notava, claro, mas que dificilmente mudaria alguma coisa no desenrolar e no resultado da partida. O Jogo de Posição de Cruyff renovado por Guardiola era tão dominante quanto era bonito: as posses de bola infinitas, os toques curtos, a maneira como o time levava a bola às posições, era tudo de encher os olhos. Mas, mas importante que isso, era um jogo moderno, científico, que criava mecanismos claros capazes de ser replicados se fossem exaustiva e obsessivamente praticados em treinos. O Barcelona era lindo, sim, mas era eficiente como uma máquina bem lubrificada. Sabia sempre onde levar a bola, como levar a bola, como trabalhar a posse e como manipular os espaços, pois tudo havia sido previamente treinado. O treinador tinha controle de tudo, e podia mexer nas posições e nas interações dos jogadores como quisesse. A palavra chave é essa: controle. Controle sobre os espaços, sim, mas sobre as situações de jogo, sobre os próprios jogadores. Um futebol quase como xadrez.

A escola de treinadores do Jogo de Posição estava tão ávida para espalhar sua ideia pelo mundo como o mundo estava para recebê-las. Aquilo parecia o rosto do futebol moderno, de uma era de números, de métodos, de controle. Não mais o caos, a imprevisibilidade rudimentar do futebol antigo. Do mesmo jeito que sociólogos como Karl Marx acreditavam em uma teoria evolucionista da história humana, onde a sociedade teria um ponto de partida e evoluiria até um ponto de chegada, muitos teóricos do futebol também tinham visões evolucionistas: o jogo evoluiu linearmente, começando no 2-3-5, passando pelo 3-2-5, pelo 4-2-4, pelo Catennacio, pelo Futebol Total, pelo 4-4-2, pelo 3-5-2 até chegar no 5-4-1, onde a pirâmide supostamente se inverteu. Dentro dessa visão, popularizou-se a ideia de que o Jogo de Posição era a evolução final do futebol, o ápice da tática, o modo de jogo perfeito, o cúmulo de décadas de evolução tática no esporte. A eficiência, a beleza e a dominância do Barcelona de Guardiola fizeram com que esse discurso parecesse bem factível: ele juntava a disciplina tática, o domínio dos espaços, o jogo de toques curtos, o método científico atual. O Jogo de Posição, então, passou a ser replicado de uma maneira quase fordista. Seu método era transplantado para diversas outras culturas sem que ninguém se preocupasse com adaptação; afinal, aquele era o estilo de jogo mais moderno, não precisaria de mudanças. 12 anos depois do Barcelona ganhar sua segunda (e última) Champions com Pep Guardiola no comando, é difícil encontrar times que não pratiquem variações incompletas do Jogo de Posição. Todos os times se organizam do espaço para o tempo; atacam por zona, em ataque posicional; levam a bola até as posições e nunca as posições até a bola; os jogadores se movimentam por espaços curtos… Até no Brasil, lugar onde floresceu o futebol funcional disruptivo da América do Sul, praticamente todos os times da Série A, até a Seleção Brasileira, apresentam estilos de jogo que buscam replicar os princípios do Jogo de Posição.

Brasil de Tite
O Brasil de Tite jogou a Copa do Mundo de 2022 em um ataque posicional muito tradicional. O time se organizava em um 3-2-5 claro, com pontas em amplitude máxima para alargar a linha de defesa adversária, jogadores afastados uns dos outros e se movendo em espaços curtos, dentro das zonas determinadas pelo treinador, esperando a bola chegar até eles. Essa Seleção em nada lembra o time de 82 que, como mostrado anteriormente, provavelmente foi o mais fiel intérprete do ataque funcional sul-americano clássico, que visava organizar o time a partir das funções dos jogadores e permiti-los que se movessem por espaços longos, rejeitando a ordem externa e valorizando o individual.

Acontece que, como expliquei aqui, futebol é cultura. O jogo posicional inglês só conseguiu criar raízes em terras holandesas porque o país desenvolvia em paralelo uma cultura artístico-arquitetônica baseada na manipulação dos espaços para compor o todo. E, mesmo assim, enquanto formulava o Futebol Total que seria o norte da cultura futebolística holandesa pelas próximas décadas, Rinus Michels assimilou e adaptou conceitos da escola danubiana, de modo a manipular os espaços do campo a partir de toques curtos. O futebol húngaro só conseguiu exercer influência sobre o futebol brasileiro porque a filosofia de romper com as posições e aproximar jogadores para extrair o máximo da técnica individual de cada um casava perfeitamente com o futebol rebelde, disruptivo e construído a partir das individualidades e da liberdade de movimentação que se desenvolvia no Brasil. E, mesmo assim, o futebol brasileiro não ficou igual ao húngaro, apenas adaptou os conceitos que melhor lhe serviam para o próprio cenário. Antropofagia, não homogeneização. Na hora de levar o Jogo de Posição para outros países, se esqueceram do aspecto cultural do futebol. Impor o Jogo de Posição no Brasil seria tão nocivo como impor o ataque funcional na Holanda: são povos diferentes, com culturas diferentes que deram origem a estilos diferentes. “Guardiola fez muito mal ao futebol. Parecia tão fácil que todo mundo queria copiar”, disse Messi em entrevista ao canal espanhol Movistar.

Juanma Lillo, um dos principais responsáveis por estruturar o método do Jogo de Posição e levá-lo ao mundo, recentemente reclamou desse processo em um artigo no jornal inglês The Athletic. “Tudo é globalizado agora”, disse ele. “Nos clubes, se você visitar um treino na Noruega e um na África do Sul, eles serão iguais. ‘Procure pelos espaços por fora’. ‘Passe aqui, passe ali’. […] Nós globalizamos uma metodologia ao ponto de isso chegar à Copa do Mundo: se você trocasse as camisas dos jogadores de Brasil e de Camarões no intervalo, ninguém perceberia. Talvez pelas tatuagens e cabelos descoloridos, mas não pelo futebol jogado. Tudo é dois toques. Todos treinam com dois toques, então todos jogam com dois toques. Nós criamos o ‘doistoquismo’. […] Sou como um pai arrependido”.

“A gente tem aquela mania de assim que a bola chega, a gente começa a correr com ela. Ele (Guardiola) chega e fala: primeiro domina, depois você vai. […] O único atrito que eu tive com o Guardiola foi esse de esperar, de ficar mais, de não se importar de não pegar na bola, jogar, participar do jogo. Ele sempre pedia isso e isso me incomodava. […] Eu fico maluco, eu quero aproveitar, eu quero jogar, quero estar envolvido. Eu ficava maluco com ele” – Gabriel Jesus.

O problema não é o Jogo de Posição ou o ataque posicional, mas a imposição desses conceitos e métodos de forma universal, globalizada e sistematizada que tem pouca ou nenhuma consideração às diferenças culturais de cada país. Quando Vitor Pereira ou Sampaoli, treinadores posicionais que constroem a movimentação de seus times a partir de espaços curtos e que gostam de buscar superioridade espacial em cima da linha defensiva adversária e, portanto, colocam mais jogadores na linha de atacantes que na linha de meio-campistas treinam o Flamengo, um time com meio-campistas extremamente talentosos (Éverton Ribeiro, Arrascaeta, Gerson) que querem sempre estar em contato com a bola, trabalhá-la pelo meio campo e se mover por espaços longos, o choque fica claro. O mesmo acontece quando Tite, treinando a Seleção Brasileira, muda radicalmente seu estilo para voltá-lo à dominação dos espaços sem se preocupar com os jogadores que teria à sua disposição e, por causa disso, limita a zona de atuação de Vinícius Júnior ao lado do campo sem permitir que ele se mova por espaços longos, interaja com os jogadores de dentro e circule pelo campo de ataque no estilo que o tornou o melhor jogador do Real Madrid. Dentro dessa lógica, há algumas tragédias anunciadas: os favoritos para substituir Ancelotti no cargo de treinador do Real madrid são Raúl e Xabi Alonso, treinadores com estilos posicionais irredutíveis e ortodoxos, mesmo o time do Real Madrid sendo recheado de jogadores que precisam de liberdade posicional para se movimentar constantemente por espaços mais longos e sempre interagir com a jogada, como Camavinga, Rodrygo, Tchouaméni, Valverde e o próprio Vinícius Júnior. Há pouca preocupação com as características dos jogadores e com a cultura particular de cada cenário. Pouco importa como os jogadores do Flamengo, do Brasil ou do Real Madrid jogam; aliás, pouco importa que esses times tenham construído seus respectivos passados gloriosos exclusivamente a partir de times funcionais – eles têm que se adaptar ao Jogo de Posição ou ao ataque posicional. As prioridades do futebol moderno acabam virando primeiro o que o treinador quer e só depois o que o time precisa.

O oposto também pode acontecer: jogadores acostumados a sistemas posicionais, a performar movimentos mais curtos e a esperar a bola chegar até eles podem ter dificuldades em se adaptar a sistemas funcionais. Xavi descreve que, quando ele jogou sob Aragonés na Seleção Espanhola (um treinador que gostava do estilo de toques curtos, mas que preferia trabalhá-los a partir das funções e não entre as posições), houve um choque inicial entre ambos: “Luis Aragonés falava para mim, ‘você vai para onde a bola vai e você é o senhor do jogo’”. Xavi, que estava acostumado ao Jogo de Posição do Barcelona onde ele esperava que a bola chegasse até ele para agir em poucos toques e continuar em sua posição após passar a bola, teve uma dificuldade inicial de assimilar o que Aragonés pedia para ele.

Alguns treinadores, no entanto, buscam abrir mão de alguns conceitos prévios para encaixar jogadores diferentes em seus sistemas. O próprio Xavi cita o episódio com Aragonés para explicar sua relação com Frenkie de Jong no Barcelona: “Tive muitas conversas com Frenkie. No Ajax, ele costumava ir até onde a bola estava; um pouco como Aragonés era comigo, então tenho tentado entender Frenkie. Pedimos para que Frenkie jogue mais posicional, para ser paciente, para receber nas costas dos volantes. Achamos um sistema onde o meio-campista pode descer até a base, o ponta vem para dentro e o lateral é quem abre o campo. Então, Frenkie está em seu lugar natural”

No entanto, o melhor exemplo disso é o que aconteceu entre Messi e Guardiola. Messi, assim como Rivaldo, foi formado dentro da cultura de futebol sul-americana. Ele queria sempre estar em contato com a bola, se movimentar intensamente ao redor dela, fazer movimentos longos, arrancar, infiltrar, driblar, mostrar seu talento individual. Quando ficava muito tempo sem tocar na bola, Messi se desligava do jogo. “Quando cheguei ao Barcelona, um treinador me disse: ‘aqui, você tem que soltar a bola, vamos jogar a dois toques. Não drible tanto. Eu não lhe dava bola e nos primeiros anos não jogava nunca”, disse ele. Quando Guardiola chegou ao Barcelona, Messi ainda era um ponta com uma arrancada poderosa, dribles indefensáveis e o mesmo ímpeto sul-americano de sempre estar participando do jogo. “Eu acho que nós treinadores mais novos temos muito a aprender com os mais velhos”, disse Guardiola. “E os mais velhos sempre diziam: ‘coloque os bons. E os bons sempre devem pegar na bola’. Há muito disso aqui. Na ponta, um jogador participa menos do jogo que no meio, porque mesmo que a bola não passe no meio, se participa mais. E se um time coloca muitos meio-campistas bons pelo meio, eles acabam pegando mais na bola. E nós queríamos que Messi tocasse na bola o máximo possível, e se tivéssemos outro jogador como ele nós sempre vamos nos preocupar para que ele participe o máximo possível. Essa foi a principal ideia: trazê-lo para o meio para que ele participasse mais, para que não fosse algo esporádico como era na ponta, que exige que a bola chegue”.

Mais uma vez, a recíproca é verdadeira. À medida que Toni Kroos evoluía como jogador, ele se tornava cada vez menos o meia aberto inventivo que era quando surgiu no Bayern e cada vez mais um volante especialista no Jogo de Posição – o ano que ele passou sendo treinado por Guardiola com certeza influenciou isso. Assim, quando Kroos chegou ao Real Madrid, ele já era um jogador que não buscava sempre se movimentar, mas que preferia interpretar os espaços, esperar a bola chegar até ele, escolher o melhor passe e se manter em sua posição. Ancelotti, treinador do Real Madrid à época, o escalou como primeiro volante, deixava ele responsável pela saída de bola e transferia toda a movimentação intensa que seu ataque funcional exige para Modric e James Rodríguez. Quando Ancelotti retornou ao Real Madrid 7 anos depois, Kroos era ainda mais posicional e ainda menos móvel, muito por causa da idade. O resultado foi o mesmo: Kroos sempre jogava como volante, seja em uma dupla com Casemiro ou Tchouaméni ou como o primeiro volante de fato. Seus movimentos eram mais restritos à base da jogada, sempre por trás da linha da bola, já que ele não buscava se aproximar dela a todo momento. Seu estilo mais posicional o faz passar a bola e manter sua posição, e não passar e se deslocar. Ancelotti abraçou isso, o colocou na base da jogada e compensou sua falta de movimentação com Camavinga, Modric, Tchouaméni, Valverde e até Rodrygo circulando incansavelmente pelo meio-campo.

Não há estilo universal. Cada escola futebolística nasceu em um contexto diferente, foi moldada a partir de uma cultura diferente. Algumas podem até ter algumas afinidades, como a danubiana e a sul-americana, mas elas devem ser vistas somente como parecidas, que compartilham princípios, não como iguais. Futebol é ciência, sim, sem dúvidas, mas também é cultura, é identidade, é personalidade. Espanha e Itália, países tão próximos, podem ter estilos de jogo radicalmente diferentes, tanto com a bola quanto sem ela. Clubes do mesmo país, como Real Madrid e Barcelona, apresentam culturas antagônicas, e culturas que já duram várias décadas. Estilos diferentes não só podem, mas devem dialogar entre si – mas dialogar. Assimilar. Trocar. Não impor, homogeneizar, apagar. O mais bonito do futebol, como diria Diego Simeone, é que todos têm uma resposta e nenhuma está errada.

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