Quando Arda Güler desafiou Descartes

Arda Güler vs Holanda. Quartas de Final Eurocopa 2024.
Arda Güler vs Holanda. Quartas de Final Eurocopa 2024.

No vasto contexto do futebol moderno, a globalização emerge como uma força aparentemente benigna, um movimento que, ao estender-se a todos os cantos do planeta, promete uma conexão universal através do esporte mais popular do mundo. Contudo, ao iluminarmos os fios transparentes que tecem essa rede global, se revela um panorama muito menos romântico, de uniformidade, perda de identidade, e de uma padronização que ameaça arruinar a enorme diversidade cultural, própria do futebol.

Há muito tempo que se sabe que, em muitos lugares, a formação das características individuais do jogador deixou de ser realizada em espaços informais, onde os sonhos nasciam e cresciam. Na verdade, a tendência atual é a da submissão precoce dos futuros atletas a centros de treinamento meticulosamente desenhados para polir talentos, que, uma vez refinados, são absorvidos pelo mercado global, que os concebe como um conjunto de atributos destinados a serem encaixados em papéis específicos – e portanto limitantes. Quem não cumpre com esses requisitos, que constituem a realidade atual da formação de atletas, parece já não ser de grande serventia.

Também não se pode deixar de mencionar o redirecionamento dos processos cognitivos do futebolista, manifestado em campo, e marcado, a depender do jogador, em maior ou menor escala. O seguinte tweet traz uma reflexão de Alejandro Arroyo (no X: @Arroyer) acerca de um gol do Manchester City na UEFA Champions League passada(2023-2024), que exemplifica como o ser humano responde a determinadas situações a partir de guias mentais, que formam parte da intuição, mas não são simplesmente uma reação instintiva, senão que o resultado de extensas horas de prática e experiência, que convertem sequências complexas do pensamento em um mapa cognitivo de funcionamento azeitado.

Contudo, não são apenas os formadores de máquinas que são culpados disso tudo. Também o são os formadores de imaginários. “Se o futebol fosse lógico, apenas 1% dos que falam sobre futebol, seguiram falando”, disse o futebolista e sábio Pablo Aimar. Tanto os treinadores, como os analistas(mais ou menos torcedores) e torcedores(mais ou menos analistas) detectam, trabalham e “proclamam um fenómeno que, no final das contas, deve ser realizado pelas pessoas”, voltando à questão anterior.

Frente a esse panorama cheio de sobreanálise e “overthinker”, perceptível também na vida cotidiana, Carlo Ancelotti trouxe, antes de uma partida de La Liga contra o Alavés, a melhor reflexão possível, quando fora perguntado sobre o turco Arda Guler: “A bola está apaixonada por ele”. Fim da intervenção. Seis palavras que contêm uma dimensão única e inteira, e só a partir dessa ideia, caracterizadora do jogador. Como já sabemos, Güler é talentosíssimo, porém, o grande barato é perceber como seu talento se destaca pela autenticidade infinita em um futebol cada vez mais automatizado.

Arda Güler(Altındağ, Ankara) encara, do alto de seus 19 anos, sua quarta temporada como profissional. Debutou pelo Fenerbahçe em 2021, aos 16. Na temporada seguinte à sua estreia pelo clube turco, assumiu a camisa 10, que fora envergada por seu ídolo, Alex. Fez seus primeiros jogos pela seleção nacional, e, após 51 partidas no ano, foi vendido ao Real Madrid por 20 milhões de euros.

O início de sua passagem pelo clube merengue esteve marcado por uma série de lesões, e um sem fim de jornalistas desacreditando sua compra conforme o tempo ia passando. Como se pudessem julgar de maneira justa um jogador que sequer entra em campo. Não é nem o primeiro, nem o último caso, nem o mais extremo nem o mais leve; mas, assim que as pessoas começaram a acompanhar regularmente seu futebol, até o mais cético achava impossível desviar o olhar da tela. Basicamente porque Güler é um jogador que, deixando de lado suas enormes qualidades, e seu impacto ainda maior no jogo, possui um magnetismo intrínseco em cada um de seus domínios. Cada vez que a bola chega aos seus pés, e independentemente do que ocorre depois, o turco catalisa um deleite tão grande no espectador, que este só pode esperar pela próxima vez que o jovem pegue na bola.  

O que foi mostrado em sua primeira temporada no Madrid não foi nem sequer um prelúdio de sua obra: era apenas um esboço, e a edição recente da Eurocopa pulou diretamente para o primeiro ato. E que primeiro ato. Na era da romantização dos eventos, por mais que a monotonia dos times do torneio a tornasse impossível, Arda Güler foi um fragmento de essência atemporal, emaranhando qualquer percepção do presente que o futebol vive durante os minutos em que ele estava em campo.

Jogando como meio-direito, ‘falso 9’ ou onde quer que se quisesse encaixá-lo no ‘esquema’ da Turquia – cuja única utilidade, dadas as tendências funcionais do time, era para que o torcedor não se perdesse. Arda Güler é quem fazia seus companheiros jogarem , e como tal, se dedicava a “correr pra trás” como diria Aimar.  Sua posição em campo era uma mera circunstância (defensiva), e o sistema contava sempre com Güler trotando pelo gramado, Sempre perto da bola, disposto a organizar e combinar com seus companheiros para progredir: desde o círculo central, pelas laterais, na defesa ou na própria área. E tudo isso sendo sempre o condutor, nunca o conduzido. 

Arda Güler vs Holanda. Quartas de Final Eurocopa 2024.
Arda Güler vs Holanda. Quartas de Final Eurocopa 2024.

“Tinha 18 anos quando cheguei (ao Real Madrid), com atletas incríveis. Por isso tive problemas de adaptação. Depois, comecei a trabalhar mais duro. Aqui tenho que ser mais intenso, ter mais resistência, mas creio que posso pensar mais rápido que os demais antes de receber a bola, então às vezes fico me perguntando se devo entrar numa dividida, ou pressionar alto. Posso pensar mais rápido e melhor a equipe com passes mais simples”, declarou Güler ao jornal Kafa Sports. Essa declaração do jogador desmonta numa tacada só duas narrativas que formam parte fundamental dos debates futebolísticos atuais.

Primeiramente: O que é o físico? Existem jogadores mais ou menos físicos? Como definir intensidade? É de maior dominância física fazer 15 desarmes e correr 10 quilômetros por partida, ou mover um rival de um lado a outro do campo, através dos recursos corporais, técnicos e associativos?

“As pessoas idealizam constância, regularidade, participação defensiva e resultado a todo custo, mas se esquecem que a superioridade legítima, verdadeira e massiva, está em tudo aquilo que leve consigo os valores da magia, do artesanal, do excitante, do esplêndido e do maravilhoso.” — Bruno Bardoneschi (X: @algodistinto_3).

E o contraponto que ele dá ao argumento (vox populi) sobre o físico é fascinante. Por mais que tenha usado o termo “pensar”, o turco, debochado como seu jogo, sabe precisamente que o pensar mais rápido consiste verdadeiramente em não pensar. É impossível criar uma definição teórica disso, mas o fato de que a maioria dos gênios que têm cultivado e continuam a cultivar a riqueza do futebol concorda que escapar durante 90 minutos do pensamento rígido e mergulhar no fluxo do jogo, abraçando todas as ações e reações, próprias, dos companheiros e dos rivais, corrobora com Güler. O turco deixa claro que a única coisa em que pensa em uma partida é se deve pressionar ou não, mas com a bola nos pés, a cabeça é uma tela em branco. E assim deveria ser visto o jogador de futebol, como uma tela em branco que rompe constantemente com as rígidas categorizações que se têm sobre ele; como uma figura contemplativa e não completiva, que existe e depois, se acaso, pensa. Quando Arda Güler desafiou Descartes.”

Arda Güler vs Real Sociedad. LaLiga 2023/24.








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