Assistindo Le Samourai (1967), nós mal vemos Alain Delon abrir a boca. O que existe de mais humano no personagem é justamente essa aparente ausência de vida num homem aprisionado pelo método e pelo objetivo, que existe para produzir e que segue em frente dessa forma. Esse aprisionamento e essa ausência de vida são referenciados, claro, pelo paralelo traçado entre ele e o pássaro na gaiola, mas também aparecem, principalmente, na estética e na forma. Delon aqui é uma criatura quase invisível, ele surge e desaparece em meio à fumaça e às sombras como se fosse um fantasma. Silencioso, meticuloso, frio, mas letal. Ele fala e se expressa pouco porque não lhe é permitido muito além da execução de tarefas. Em tudo que ele faz parece haver um preocupação primeiro com a eficiência. A forma como isso é mostrado não se trata apenas de uma construção visual, na verdade, toda a estruturação parece querer evocar essas idéias. Essa prisão do mundo de Delon, para além da representação, é transportada pro estilo. A rigidez, o distanciamento, o ritmo deliberadamente lento. As locações sim frias, cinzentas, distantes, mas que só o são porque denunciam a impessoalidade ali presente. Como na cena de interrogação onde todos aqueles homens parecem iguais e esvaziados de personalidade. A impossibilidade de escapar dessa prisão.
O que Melville faz é pegar o Noir clássico e lhe conferir uma nova assinatura. Talvez esse tipo de filme, principalmente em contraste com a tendência experimentalista do cinema francês da época, possa soar como “mais do mesmo”. E temos o fato de que são filmes teoricamente mais rentáveis e principalmente mais exportáveis. Mas parte do que está sendo feito aqui é justamente a interrogação de que tipo de cinema se pode fazer diante dessa estrutura. E o que Melville faz é justamente subverter a estrutura a ponto de ser inconfundível com qualquer outro diretor que faça esse tipo de filme. Ou seja, apesar de estar trabalhando em algo supostamente “genérico”, a linguagem e a forma dos seus filmes não eram de forma alguma, genéricas ou superficiais. Ele adentra nessa estrutura e, operando nelas, cria algo novo. Que aqui parece ser a própria reflexão crítica a cerca da estrutura em que ele opera.
Por que me interessa conectar o camisa 10 a Melville e Le Samourai? Vou explicar, mas primeiro precisamos tentar entender o que é o camisa 10. Hoje, quando falamos em camisa 10, ou “camisa 10 clássico” normalmente associamos a uma posição; o meio campista que atua por trás do ataque tendo como principal características o desequilíbrio a partir da técnica e a responsabilidade criativa da equipe. Mas penso que a mística do 10 é um conceito também estético, de como relacionamos o número 10 a um determinado tipo de jogador. A mística da 10 começa com Pelé, mas não somente pelo que Pelé produzia, mas por como ele jogava. A forma com que Pelé tratava a bola, a forma com que fazia gols, a forma com que driblava e passava, a forma como Pelé existia pro jogo. Isso também aconteceu com outros números que passaram a ser associados a determinadas posições, funções, e estilos de jogo. Mas com a 10 a mística é totalmente diferente. O 10 é o craque da equipe, o que joga bonito, o que mais desequilibra. Então precisamos ter a compreensão de que o 10 é uma concepção estética, e que a estética não existe como algo separado da técnica ou da qualidade, não existe só como algo pra agradar nossos sentidos, mas que é também esse canal de recepção pra nós. Isso é fundamental na nossa formação enquanto apreciadores ou pesquisadores de futebol, e até no formação do jogador em si.
Beleza e técnica
A técnica no futebol nada mais é do que a capacidade do jogador na execução dos gestos motores com e sem bola somados a atenção e capacidade de interpretação do que fazer de acordo com os diferentes momentos do jogo. Por se tratar de um esporte acíclico, o futebol tem inúmeras possibilidades diferentes se tratando do que ele vai exigir do jogador em determinado momento de acordo com as fases do jogo. São 90 minutos de defesa, construção, e ataque. E das variantes complexas dessas 3 fases. Dentro disso, temos os fundamentos técnicos que todo jogador deve dominar. E com maior ou menor ênfase em alguns de acordo com a função que cada jogador vai exercer e a fase do jogo em que ele vai atuar majoritariamente. Isso normalmente é escolhido por pré disposições naturais baseadas no corpo e em outras características particulares do atleta. Ou seja, a técnica e seus fundamentos não são algo puramente reproduzíveis e treinaveis. É óbvio que o seu amplo domínio vai vir do treino e da repetição, mas não importa o quanto treine, uma pessoa sem os indicadores e o talento necessários para tal não vai conseguir jogar futebol. E mesmo entre os que tem condições de ser jogadores, questões como função e posição fogem do nosso controle de escolha, não vamos jogar aonde achamos mais legal por assim dizer, mas onde nossas características vão ser mais úteis e vão estar melhores colocadas.
Ou seja, no jogo em si a idéia de “liberdade” já sofre certas limitações que são inerentes das suas dinâmicas. Que liberdade individual é de fato possível dentre de um jogo coletivo com tantas regras e uma organização formal e sistêmica que muitas vezes é rígida? A liberdade pode ser entendida aqui como o sistema, o esquema, o modelo de jogo; e suas dinâmicas vão trabalhar pra encontrar, dentro de um 11, as relações mais complementares e confortáveis pra cada jogador. O camisa 10 se destacava justamente por ser desequilibrante o bastante pra quebrar algumas dessas barreiras. Era um jogador que quando tivesse a bola, resolvia os problemas da equipe. Por isso os treinadores escolhiam não dar maiores obrigações defensivas, e por consequência maior desgaste pra esses jogadores para que focassem no jogo com bola. Por que normalmente associamos a figura do 10 a um meio campista ou alguém que joga por dentro? Porque o 10 normalmente é um jogador de diferentes facetas. Ele constrói, mas também faz gols. Ele passa muito bem se precisar dar poucos toques, mas também consegue manter a bola nos próprios pés por mais tempo que os demais se necessário. Ele é excelente olhando o lance de frente, mas também joga de costas. Joga mais curto, como é capaz de lançar companheiros com passes mais longos. Diferentes indicadores, o domínio de diversos fundamentos, em um só jogador.
Mas o 10 não é 10 porque é o mais técnico ou o que mais produz, é 10 pois é o que mais imagina. Quando falamos do jogador mais imaginativo e mais desequilibrante, falamos do jogador que concentra em si a maior capacidade do futebol; a de desafiar a sua própria estrutura. Que transforma uma baixa possibilidade de gol em uma pintura, que transformando a bola numa espécie de prisioneira conformada dos seus próprios pés, consegue desbloquear as defesas mais fechadas as encarando de frente como um homem atravessando um exército, de colocar não o ritmo mais frenético mas o mais adequado ao jogo da equipe. Ainda que tudo isso ainda esteja regrado no formalismo do jogo, da competição, é um tipo de jogador que inevitavelmente faz o jogo ser um pouco sobre ele. Por isso é também o jogador que mais nos inspira, que mais nos chama atenção, e que sim, molda nossa percepção estética de futebol. Então o 10 quase sempre é o mais técnico, mas o que faz dele um jogador apaixonante é que ele é o jogador que desafia as exigências e limitações do jogo pra criar algo que foge de uma concepção formal de técnica e de execução. Que transcende os termos banais do jogo. Ele é a solução, mas também é o showman. Assim o 10 existe dentro dessa estrutura limitante, atuando na fronteira do possível. Mas por mais que nem tudo seja possível, que exista um limite, o que os gênios fazem é esticar essa fronteira até onde sua imaginação os permitir.
De onde vem o 10?
Se assumimos que não dá pra compreender o 10 simplesmente como um jogador que domina mais fundamentos técnicos, podemos entender também que não são os treinamentos formais de futebol que entregam a ele esse dom com uma bola que os “mortais” não vão conseguir entender. Penso que o talento de improvisar e imaginar parte também de ter passado seus anos de formação enquanto ser humano tendo tido isso como uma necessidade. O futebol permite diversas adaptações para ser jogado pois não exige muito mais do que um objeto esférico e se for jogado como competição, qualquer coisa que sirva como trave. Por esse e por outros motivos o jogo é um fenômeno nas periferias de todo o Brasil. É um esporte excitante, prazeroso, e também um dos poucos caminhos visualizados pela classe mais baixa de conseguir um dia fugir de uma realidade pobre. Quando jogamos futebol, este serve como “intervalo” meio ao caos do nosso dia a dia, e pra muitos é um sonho de futuro. Quando nos inspiramos nos ídolos do futebol durante nossas peladas de terra batida ou em campinhos e quadras dos bairros, até mesmo o asfalto e o paralelepípedo servem de campo, não importa, fazemos sim por eles em sua maioria terem uma história de vida de superação, não atoa o filme mais repetido do futebol, mas também por que queremos jogar futebol como eles jogam. E os jogadores que mais inspiram nesse aspecto são os camisas 10. A forma como recebemos o jogo desses jogadores se torna também a forma como gostaríamos de jogar, e muitas vezes essa idéia consegue sair apenas da nossa imaginação e ser transportada pros nossos pés.
Ou seja, os craques não são um produto dos campos sintéticos de treinamento nem das regras formais do jogo, mas são fruto da capacidade humana de buscar inspiração, de improvisar, de tentar superar os próprios limites e os limites que lhe são impostos pela realidade a sua volta. Então, se precisarmos definir um local pro nascimento do 10, esse local não seria o mundo profissional, mas o mundo “aqui fora”. As ruas, a várzea, as peladas, as favelas, os subúrbios, etc. Mas quando ele entra nesse jogo, nessa competição profissional, que também é uma indústria e um espetáculo, o que ele faz é subverter as estruturas rígidas do jogo criando algo novo e inesperado. Gostamos mais do 10 porque ele é o homem responsável por transformar o jogar futebol em algo que não conseguimos prever.
Quem matou o 10?
O que mais mudou no futebol talvez tenha sido a relação do jogo com o espaço e com o tempo. A maneira de se defender e pressionar, principalmente, influenciam muito na ausência desse “10 clássico” na maioria das equipes. Hoje, o jogo ocorre em um ritmo muito elevado, os jogadores passam cada vez menos tempo com a bola e existe cada vez menos espaço. Para além disso, individualmente a figura do 10 mudou. Se antes os principais camisas 10 do mundo se destacavam por sua capacidade de criar e desequilibrar através da sua imaginação, enquanto as equipes fariam ajustes pra que esse jogador se concentrasse majoritariamente nisso, hoje o leque de responsabilidades é muito maior. Então o 10 exigido pela maioria dos técnicos deixou de ser um especialista, um gênio, para se tornar o que muitos chamam de “jogador completo”. Um jogador que consegue antender todas as demandas necessárias no decorrer do jogo. Por isso jogadores como James, que não são tão físicos e que não correm muito, tem dificuldades em encontrar clubes. E quando encontram, têm dificuldades de jogar. O fato é que na maioria dos casos, o “jogador completo” não é necessariamente genial, mas consegue ser um ótimo cumpridor de funções. Como dito antes, o futebol como todas as profissões sempre carregou elementos que restringem o que entendemos como “liberdade individual”. Mas hoje, é um esporte que pertence cada vez mais ao “jogador completo” e menos aos gênios.
Então o que matou o 10 foi o “Futebol moderno?” Talvez, em partes. Mas o que levou a essa morte são as mudanças sociais que sempre impactam o mundo e impactam principalmente o nosso desejo de transcender enquanto indivíduos. O 10 no futebol profissional “morreu” porque a profissão gradativamente foi passando a prezar mais o automatismo que a excepcionalidade. A profissão relegou esse jogador, que também é portanto um trabalhador, a processos que estão além de seu próprio controle. Mas esses limites, essas barreiras, não existem só no futebol. Melville buscou através do seu cinema, principalmente no filme Le Samourai, refletir sobre essa alienação e esse aprisionamento pelo objetivismo, pelas barreiras materiais, que aparecem na figura da profissão. Que às vezes, dentro da realidade de mundo na qual estamos inseridos, passa a engolir o indivíduo a ponto dele se tornar essa profissão. O que o “10 clássico” encontra é uma dificuldade de existir diante dessa realidade.
É claro que temos Messi que talvez seja o segundo grande camisa 10 da história, e é o grande jogador do século 21. Mas se o conceito de 10 é muito amplo e a identificação como “o 10” vai um pouco além da posição/função, com jogadores como Messi isso fica ainda mais difícil de definir. porque ele é muito bom em diversas situações e de maneira geral, não pode ser colocado em uma caixinha e definido por ela. Ele é bom demais pra isso. Mas o fato é que o 10 enquanto essa figura especializada na criatividade, que não é dotada de muita força e velocidade, e que ainda assim está acima dos demais na relação com bola e na visão panorâmica, no enxergar o jogo, encontra mais dificuldades em jogar o futebol atual do que encontraria há 15, 20, 25 anos atrás. Alguns são mais radicais na colocação. Riquelme, por exemplo, já afirmou que não jogaria no futebol atual pois este não tem espaço pra ele. Eu penso que jogaria, mas não jogaria como jogava naquela época. O que poderia comprometer muito do que fazia de um jogador como Riquelme especial. Mas o 10 não morre só no mundo profissional, às vezes ele nem chega lá. São muitos limites, muitas barreiras, que podemos não conseguir quebrar. Figurativamente, o 10 pode morrer no sonho de jogar futebol que nunca se realiza, trabalhando até a exaustão em outra profissão na figura do homem que quando garoto não teve a oportunidade que gostaria no futebol. Mas se a má notícia é que o 10 morreu e morre, a boa é que ele pode renascer a qualquer momento enquanto essa relação homem e bola seguir sendo tão íntima. Ou mesmo no limitante profissionalismo, seguir nos inspirando como fazem James Rodriguez e Juanfer Quintero em locais onde a inspiração não é proibida.