VISÃO, FÉ E AMOR: O FUTURO PRÓXIMO DA SELEÇÃO BRASILEIRA

Ou: como a aposta na relação do talento, e não na geometria, pode ser do que dependa um futuro efetivamente promissor para a Seleção

Endrick e Vinicius Jr.

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola” – Nelson Rodrigues

O Real, clube de alguns dos nossos craques do passado, do presente e do futuro, acabou de se sagrar finalista de mais uma Champions, com gols no fim do jogo em uma remontada que já não surpreende a mais ninguém. Eu vi, você viu. E a verdade é que tanto você como eu já esperávamos por isso. Não teria Manuel Neuer ou destino adverso que atravancasse o caminho do escrete merengue. O destino, afinal, em matéria de Champions League, é o próprio Madrid: 14 títulos em 17 finais e o provável 15º a caminho. Mas esse texto não é sobre isso – sobre o Real e o seu triunfo: esse texto é sobre a Seleção Brasileira e o dom de ver. O Real Madrid se classificar contra as adversidades mais impossíveis em fases finais de Champions já não é algo difícil de prever, já não constitui uma novidade. Sem visão é quem não acredita. Mas e quando se trata do escrete nacional e do nosso futuro em Copas? O que enxergar? É a projeção que se fará aqui.

1. PRIMEIRA DIGRESSÃO: VISÃO

A ideia que em geral se tem do profeta, essa figura presente nas mais diversas tradições da história e da literatura, é a de alguém que simplesmente sabe e diz o futuro, e que o sabe porque um outro alguém (Deus, ou os deuses) lhe disse. Ainda que nos relatos bíblicos e nos escritos gregos (os representantes maiores das culturas monoteístas e politeístas do Ocidente) o saber o futuro normalmente se dê pela revelação, ou por algo que em geral é externo àquele que sabe, limitar a ideia de profecia a isso é empobrecer a riqueza de um conceito em si mesmo mais amplo.

O profeta (ou o oráculo), de uma perspectiva talvez menos metafísica, mais materialista, não é puramente aquele que conhece o futuro – é, mais do que isso, aquele que o <antevê>, que o vê antes. E o vê não porque alguém lhe tenha mostrado, mas por ele mesmo o enxergar inscrito na história. Ora, esse personagem ganha muito em força simbólica quando imaginado assim, não como alguém que sabe o futuro porque lhe foi contado, mas como alguém que o desvenda por conta própria, enxergando o movimento posterior de uma realidade que está ali, oferecida a todo olho, mas cuja percepção mais apurada não é acessível a todos, é privilégio seu. Nelson Rodrigues naquela crônica sobre a majestade do então apenas Pelé, o garoto de 17 anos? Algo nesse sentido.

Esse profeta, pois, é essencialmente isso: um visionário. Alguém capaz de enxergar o espírito da história e de perceber a direção dos seus movimentos – para que lado os ventos soprarão. E ao contrário do profeta bíblico, que conhece por revelação, ou seja, partindo de um não-saber, esse outro profeta conhece exatamente por saber, por dados da realidade que estão fornecidos e que são acessíveis à sua própria inteligência – conhece por algo que lhe é intrínseco. O que não deixa de por isso constituir um dom: o dom de <ver>.

2. SEGUNDA DIGRESSÃO: AMOR

O amor é certamente a coisa mais fascinante da vida, e aquilo a meu ver que a move. O amor nas suas diferentes acepções: o amor romântico, o amor fraternal, o amor ideativo, etc. – o amor enquanto tudo aquilo que esvazia o homem do seu próprio ego e o faz perceber o outro. Amor: esquecer de si mesmo – seja pelo rosto da mulher amada, seja pelo socorro ao necessitado, seja por perseguir um determinado ideal. Tudo o que te distrai do seu próprio rosto: amor – o motor principal do mundo.

Pois bem, uma das formas mais marcantes do amor é a do amor enquanto fé na possibilidade, ou seja: enquanto a crença no que ainda não é, no que tão somente pode vir a ser, e a paciência, o esforço, o cuidado e o inevitável sofrimento envolvidos no processo de parir essa possibilidade — como no parto, mesmo, em que dor e escuridão (dúvida, apreensão) antecedem o ato da luz. O amor enquanto ver além, enquanto mirar no que ainda não é, no que apenas pode ser, e acreditar nesse algo.

Doar-se por alguém em geral é o que constitui isso. Mirar alguém não principalmente pelo que é, mas pelo que pode ser – e se esforçar (ajudá-lo) para que seja isso. É acreditar no ser humano, no que há de bom nele, mesmo quando invisível, e extrair dele essa bondade. É talhar em alguém o seu melhor, e fazer de uma potência, ato. Daí a beleza da vocação do professor, por exemplo, em que idealmente se pretende isso: fazer brotar numa pessoa possibilidades que estão dentro dela, mas que dependem de um outro alguém para se darem a conhecer. Mas para isso é necessário ver, enxergar para além da aparência, e isso não é faculdade de qualquer um, é faculdade daqueles que veem.

3. O TREINADOR

O profeta, nesse sentido, além de um visionário, é também alguém que ama, porque ver para além da primeira impressão, que não deve ser a que fica, é amar. Ao mesmo tempo em que todo aquele que ama, ao doar-se em favor de um outro, é também em alguma medida um visionário, que enxerga para além da pura aparência, e vê o que está mais ao fundo. Essas duas por assim dizer vocações se encarnam, como nos professores em geral, em um tipo específico deles: o treinador de futebol. Todo treinador deveria ser, em verdade, essas duas coisas: um profeta (um visionário) e alguém que ama. Sem visão e sem amor não é possível a um treinador realizar da melhor forma o seu trabalho. Visão em enxergar o potencial de cada jogador que possui, e de aonde o conjunto deles, relacionados da melhor forma, é capaz de chegar; e amor em se doar – qual pai, mesmo – para talhar em cada um, e no conjunto, o melhor que podem ser. Diniz com John Kennedy, Don Carlo com Vini, Ferguson com Cristiano: visão e amor.

É isso, nesse momento de recomeço e reconstrução, que a Seleção precisa – e parece poder encontrar em Dorival: uma paternidade que aposta no talento. Ao contrário da tendência esmagadora nos comandos técnicos de clubes e seleções ao redor do mundo, que baseia-se na forma geométrica, calculista e controladora de enxergar e pensar o jogo, uma forma que privilegia o sistema em detrimento do homem, Dorival deve, levando em frente uma mentalidade já antes trazida por Diniz – cujo curto legado, para além de um futuro que certamente ainda viverá na Seleção, talvez tenha sido esse –, ser um tipo específico de pai: não o que proíbe, que reprime e que doma – mas o pai que, com responsabilidade, permite, estimula e incentiva. O pai que cria um ambiente que favoreça o florescimento do talento, e não que o tolha, ou em que ele seja um efeito colateral, um se possível. Isso não é o que somos. Jogar, e se divertir, para nós, é tão importante quanto ganhar. E talvez esteja aí a razão de não ganharmos já há tanto tempo.

O treinador da Seleção Brasileira precisa ser, muito mais do que um Wes Anderson, um Wim Wenders. Ao contrário do primeiro, cujo cinema consiste em ter tudo milimetricamente posicionado no lugar correto da tela, num arroubo de geometrismo que eventualmente compromete a dramaticidade da trama, o cinema do segundo tem como pilar a primazia do drama e da imagem. Mais do que posicionar cada jogador em determinado lugar do campo e controlar de forma intervencionista e totalitária os rumos completos do jogo, o treinador da Seleção precisa deixar o jogo acontecer pela primazia do jogador – ele precisa sair de cena e entrar apenas oportunamente. Todo e cada quadro dos filmes de Wes Anderson são construídos de maneira a que ele seja lembrado, de maneira a que se sobressaia a sua digital, enquanto Wim Wenders realiza um cinema que procura dar vazão à força de verdade das imagens e do próprio enredo, e não dele mesmo. É um Wim Wenders que Dorival precisa ser.

A última Data Fifa cumprida pela Seleção – os dois últimos jogos, primeiros de Dorival como treinador, depois de muita confusão envolvendo a questão de quem ocuparia esse posto depois da Copa –, deu sinais positivos. O papel de Dorival deve ser principalmente encontrar um ponto de equilíbrio, como parece já ter tentado nesses primeiros jogos, entre uma segurança necessária e uma liberdade que nos é intrínseca, e sem a qual o fracasso continuará sendo a única certeza. Porque isso, no futebol e em todo o resto, é ser Brasil: não o receio, o calculismo e a desconfiança, não a precaução, mas o afã, a fé e a coragem. E não pode ser em outro lugar, senão aí, que esteja a chave para um recomeço – não no sistema, nem no pensamento, mas no jogador de futebol e no seu poder de parar e desparar o tempo. Porque todos os outros lugares são a negação da nossa identidade, e não pode definitivamente ser por esse norte a porta de saída. Diniz como ninguém sabia disso, e Dorival parece também saber. Isso é bom.

4. O PASSADO E O QUINTETO DO FUTURO

O futuro da Seleção, que parece estar encontrando o seu caminho nessa espécie de ajuntamento de estrelas – que já o são em alguma medida, mas não são ainda tudo o que podem ser –, por enquanto é, por certo, isso: uma possibilidade. Vini, Rodrygo, Paquetá, e o mais notável deles, pelo menos em termos de expectativa: Endrick. A relação desse quarteto, em que pese a importância dos outros setores do campo, pode estar sendo, como se viu nos dois últimos jogos, o despertar para um futuro – um futuro de reencontro com o passado, que nos legou a última Copa já há mais de vinte anos, num também ajuntamento de estrelas.

De lá para cá, a Seleção veio batendo cabeça em ciclos que eventualmente até pareciam promissores, mas que se revelavam vez após vez serem sempre ciclos de fracasso. Depois de 2006, quando houve também um ajuntamento de estrelas, mas estrelas já próximas do fim, a Seleção, no meio e no seu ataque, ficou sempre girando em torno ou de nenhuma estrela mais superlativa, em alguns momentos, ou de uma única, e daí não conseguiu extrair muita coisa. Somando-se a isso a tendência retumbante, ao longo desses últimos mais de 20 anos, nos variados comandos técnicos que passaram pela Seleção, de ao invés de procurar vencer à nossa maneira, eventualmente adaptando a nossa tendência ao assim chamado “jogo moderno”, de procurar copiar e repetir os métodos europeus. Deu no que deu.

Neymar, da sua primeira Copa em 2014 até hoje, ficou sendo o ponto de gravidade de um conjunto de jogadores que, muito infelizmente, por melhores que fossem, não estavam nenhum pouco perto da sua altura. Nessa última Copa, até, já havia alguns desses jogadores que agora despontam como pilares mais sólidos desse novo ciclo, mas seja por naquele momento estarem ainda numa fase mais de adaptação (e não de consolidação, como hoje), ou seja por não se encaixarem na visão muito conservadora e geométrica de um técnico que não soube lidar da melhor forma com eles, acabou por ser também mais um entre tantos ciclos de fracasso.

Agora, depois de um ano pós-Copa um tanto estabanado, a Seleção parece avistar um horizonte promissor nesse ajuntamento de quatro jogadores que, na relação da sua criatividade, força, velocidade, alegria e brasilidade – na relação do seu talento –, podem nos colocar de volta e mais uma vez no topo do mundo. De repente com o retorno de Neymar, e a sua eventual participação em uma derradeira Copa, esse quarteto possua o ornamento definitivo, e possa coroá-lo (ao Neymar, e à sua carreira) com o adorno final. Neymar de 10, Paquetá de 8, Rodrygo de 7, Vini de 11 e Endrick de 9 – estimulados, e não coibidos, pelo comando de Dorival: o quinteto sobre o qual o nosso futuro pode ser escrito. Um quinteto de estrelas que poderiam enfim nos trazer a sexta. Depende deles, depende do Dorival, depende de nós – na paciência e na fé.

Ver é necessário, mas não suficiente – é preciso amar. No caso dos jogadores, amar significa a paixão pelo jogo e pelo Brasil (pelos nossos ídolos, pelo nosso povo e pelo nosso passado), e querer muito intensamente ganhar por eles. No caso do Dorival, significa acreditar na força do talento e procurar fazer o simples para possibilitar que a relação do talento em campo, e não a ação estrita dele enquanto técnico, invente e escreva o futuro. E no nosso caso, amar significa crer e, pacientemente, esperar.

É disso que a Seleção precisa, e o Brasil, o Brasil enquanto povo e enquanto nação, é principalmente isso: amor. Há quem diga que não: que o Brasil é ódio e preconceito e violência. Eu não acredito. Ainda que essas coisas existam e constituam problemas com os quais se deva lidar – como muitos outros, que não devem ser romantizados –, isso não é definitivamente o que somos. Não foi o ódio e a violência principalmente que nos formou: foi a coragem, o desbravamento, a criatividade, a alegria. Foi o amor que fez nascer no mundo um lugar chamado Brasil e foi esse mesmo amor que deu ao Brasil cada uma das suas Copas e o fez o maior campeão do mundo. E é somente o amor o que pode fazê-lo reencontrar-se consigo mesmo e com o seu passado – o amor em ver, em acreditar, em deixar acontecer, e em esperar.

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