Não morremos, mas estamos quase

E a essência?

Houve um tempo em que gritávamos sozinhos, feito loucos, e ninguém enganchava em nossa loucura. Mas agora somos ouvidos, na frase que cada dia está mais perto do para-choque de caminhão: o futebol brasileiro está se afastando de sua essência.

Bem, inegavelmente se trata de uma ideia de um tipo raro. A que soa bonita a todos, você a jogando para a roda literária cult ou para o barbeiro. Para os colegas acadêmicos ou para o senhor indo comprar o pãozinho da manhã, de ressaca após o novo fiasco da CBF neotatiquizada.

Acontece que essa tal “essência” não é um dispositivo conectado automaticamente a um outro, “Seleção” ou “Futebol Brasileiro”, ao contrário do que se possa inferir. Mas uma noção adjacente, vinda da nossa necessidade do mitológico – uma crença privada que se estende ao coletivo.

Mito, lógico!

Há, ou houve, um futebol brasileiro que ia parar nos sonhos das pessoas (e os sonhos são mitos privados), até que, com passar de algum tempo, essa imaginação gestou o grande mito – ou o sonho coletivo: um futebol dadivoso, com uma conexão fabular aos universos mágicos, representado memorialmente num conjunto de imagens, projeções, vivências conscientes e inconscientes do balanço do Garrincha, do relato áspero do Januário, do assovio do rádio chamando o tempo e o placar, dos nossos velhos coliseus empapuçados com suas gerais tornando-se formigueiros agitados a cada gol, entre longa série destes elementos bonitos que são como figurinhas, coladas em um álbum ou em nossos arquivos mentais, nos dizendo, outra linha, parágrafo, travessão – “somos parte do seu sonho. Sim, tudo foi um sonho, um fenômeno particular seu, pobre ser mítico. Pois o que seria a essência senão, antes, os próprios fenômenos, hã?”.

Certo. E o que temos? O sonho continua conosco, e nosso campeonato nacional também, mas e aí? Assim que incidimos os olhos sobre a pelada de quinta categoria do domingo à tarde, nosso sistema de crenças busca associação àqueles símbolos do mitológico nacional, praticamente todos fabricados pela cultura audiovisual, os filmes, o Canal 100 (e isso nada tem de mal, pelo menos para mim que, por razões de tempo espiritual, não pude levar este corpo carbônico às arquibancadas para testemunhar Garrincha), aquele imaginário maluco e lindo, para ver se, de algum modo, estamos ainda próximos àquela tal essência.

Quando tiramos os óculos, então, a realidade nos é pesada. Equipes engessadas, lado individual com escassez de inventividade, preços abusivos dos ingressos – do que logo trataremos. A elitização completa do jogo em todas suas instâncias, nos praticantes, nos administradores, na plateia e nos valores.

Mesmo assim, ainda temos esse ou aquele camisa 10 dando belos passes, pelo menos um golaço por rodada que não parece vindo do Playstation, uma ou outra notícia destacada de torcida que não seja um cruzamento das páginas do esporte e das policiais, essa ou aquela bela história para ir parar nos almanaques e que poderemos contar empolgadamente às gerações seguintes caso a Terra não acabe antes disso, enfim; essa alegria restante, aplicada em pitadinhas, ainda nos mantém uns sonhadores, teimosos pela essência e pela delícia de pertencer a algo como o Brasil.

Em suma, estamos enxergando o futebol brasileiro como se enxerga uma miragem no deserto: olhamos paisagens opacas ao longe pensando enxergar nelas um oásis. Uma combinação entre a projeção do físico e a ilusão mental da vaga esperança por água num contexto assedilhado e penurioso.

Todos nós sabíamos que o futebol seria, um dia, dominado pelos endinheirados e reconstituído à sua feição, e, portanto, nenhuma estupidez, mais grotesca que fosse, deveria surpreender. Estava, como de costume, acompanhando o jogo pelo rádio, e, quando se anunciou os 26 milhões de reais de renda total em Flamengo x São Paulo, eu, no entanto, juro, fui com toda a inocência que restava imaculada, pensar: “que raios aconteceu? Deixaram entrar trezentos mil torcedores?”.

Em seguida, divulgaram o público pagante da Arena Maracanã: 60 mil. Prendi a respiração e fui fazer a conta: tíquete médio de mais ou menos 430 reais por cabeça.

O jogo do Flamengo (do Flamengo!) estar mais caro do que as apresentações hi-societeiras de música clássica com candle-lights foi o meu viés de confirmação particular: de que deveria ter seguido a intuição e, lá em 2014, depois que o padrão-FIFA sugou o substrato de nossa arte e nos legou as vergonhas e arenas gélidas, ter pulado fora dessa barca, sem televisão, rádio, podcast, e sentando o traseiro nos concretos dos estádios da divisão amadora municipal como meio único de dar vazão à paixão.

Teimei e segui emprestando minha atenção e meu espírito a este espetáculo decadente, e agora o vejo voltar às suas origens anglicanas, mais especificamente aos braços dos abastados industriários, que, enquanto bebilhavam seus chás-das-cinco, se divertiam assistindo àqueles operários levando a sério as brincadeiras de fundo de fábrica.

O futebol era péssimo, protocolar, é claro! Não se esperaria diferente de quem estava acostumado à divisão do trabalho. As elites se deleitam com o futebol previsível porque lhes conforta o subconsciente a percepção de ordem de produção.

E é a essa ordem que o Clube de Regatas Flamengo, de Zico, Geraldão e Zizinho, deseja pertencer, mirando no futuro e espelhando-se no modelo fábrica da Vauxhall de 1876; daí seu projeto de castrar o poder anárquico de seus destaques criativos, investir em ciborgues como treinadores e trocar os geraldinos malucos, trêbados de cerveja, pelos frequentadores de camarotes, que portam guarda-sóis ao lado da poltrona e comem seus temakis ou fish and chips e bebem chás de ceilão, enquanto conferem no aplicativo quantos porcento de passes certos o segundo volante deu – diversão!

Oh, it’s a very exciting time!

Claro, a elite não está nem aí de verdade para o futebol, né? Quem vai a um jogo de bola que custa 400, 500 reais, não vai pelo jogo e nem pelo amor ao time. Direto ao ponto, vai pura e simplesmente para mostrar o próprio poder. Mesmo que o mercado futeboleiro seja de fato decadente, construído por gente cada vez menos preparada, mais fútil, menos sensível, o endinheirado quer estar lá, testemunhar sozinho a diluição daquilo que o popular costumava amar. É preciso estar cada vez mais rico para acompanhar um espetáculo que está cada vez mais pobre.

Essa mesma lógica lá atrás transformou o teatro dionisíaco de uma experiência aberta e conectada ao mundo exterior num cerimonial residente em enormes templos abobadais com assentos acolchoados – já não fosse uma suficiente injustiça técnico-histórica que artes como a pintura, a escultura e a música tenham se restringido por tanto tempo a espaços como a Capela Sistina, as elites ainda sequestram artes que vêm do espaço público, filhas do improviso, para dominá-las em suas formas e escondê-las dentro de seus templos.

O futebol é o próximo, tendo sua linhagem nos espetáculos bestiários, um entretenimento torpe e caótico por natureza, em que humanos lutavam com feras selvagens e a justiça, no fundo, era um ínfimo detalhe, uma insanidade contemplada por milhares de espectadores no pedregoso Anfiteatro Flaviano. Isso é coisa do passado, a mentalidade mudou! Hoje o futebol mora no templo elitista do nosso tempo, as arenas quadradas cinzentas de aço, e seu mote é trabalho. Trabalho, trabalho, trabalho. E produção, produção, produção. De pugnae bestiariorum para arbeit macht frei. Socorro!

Distopia!!!

Então sim, senhor do pão, o senhor está correto, a nossa essência está se esgotando. Isso quer dizer que estamos em plena hemorragia, pois a essência é para a metafísica o mesmo que o coração é para a orgânica. E, um dia, apenas os leões permanecerão nos velhos coliseus.

Os pobres humanos, os humanos pobres, todos devorados; os restantes, escondidos num Maracanã distópico e aveludado, esperando as cortinas se abrirem para um espetáculo de dança proporcionado por robôs que simulam bispos de meia-idade, adornados com seus coletes verdes e calças almofadadas com sininhos.

Sim, isso irá acontecer, cedo ou mais cedo. Espero que eu esteja na essência, quer dizer, no esôfago de uma besta até lá.

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