Em 2015, no começo da ascensão exponencial da importância da internet dentro da comunicação, Ana Paola Amorim escreveu no Observatório da Imprensa que “a repercussão da fala pública não vem de um conjunto desconexo de frases soltas, valorizadas em um pretenso mercado que confere peso comercial às ideias. […] O movimento da Internet valoriza o movimento espontâneo, que tem, inclusive, capacidade de interferir no fluxo de comunicação tradicional. Muitos jornais e revistas se pautaram por isso. Mas o espontaneísmo é uma fábula. Perigosa pelo fato de ocultar as articulações que sustentam a formação de sentidos de falas públicas”. A capacidade que a Internet tem de pautar debates sobre um conjunto desconexo de frases soltas, sempre em prol de uma massificação do discurso e de um suposto espontaneísmo, acaba por impedir a fala pública que o originou. O discurso no princípio da discussão é sucessivamente reduzido, simplificado e, consequentemente, desvirtuado para que possa ser reproduzido dentro da lógica das redes sociais. A ideia central, portanto, acaba se tornando uma sombra do que já foi, e o debate aprofundado sobre ela fica inviável.
É exatamente essa lógica das redes que desvirtuou a pauta e simplificou os discursos sobre ataque funcional e a cultura brasileira futebolística. Quando @jozsefbozsik, ainda em 2018, identificou outras formas de organização ofensiva que não a posicional, dando forma e nome ao conceito de ataque funcional, todo o debate girava em torno de equipes que se organizavam a partir do tempo e de ataques que funcionavam a partir das relações de mobilidade e movimentos estabelecidos pelos jogadores em campo. Times que moviam seus jogadores com a bola, e que trabalhavam a bola justamente pelos movimentos dos jogadores, juntando-os na zona da bola através de desmarques de apoio e ruptura e diagonais ofensivas e defensivas. Um conceito amplo, que abraçava times húngaros, austríacos, italianos, alemães, brasileiros, argentinos e muitos outros, cada um com suas particularidades e sua maneira singular de reproduzir tal conceito, que buscava expandir o debate sobre organizações ofensivas, trazendo um aspecto cultural para ele e rompendo com o tradicional paradigma de times de posse de bola x times reativos. Passou o tempo e agora o debate foi simplificado a ponto de virar uma briga sobre aproximações no campo. A própria ideia de um futebol culturalmente identificado com o Brasil, também levantada por @jozsefbozsik e por nós aqui do Ponto Futuro, foi simplificada e desvirtuada para que aqueles que discordam dessa tese possam atacar espantalhos a partir de argumentos rasos e simplórios. Por isso, peço um minuto de calma para que nós, os interessados em agregar algo substancioso a tais debates, possamos revisar algumas ideias, conceitos e princípios e devolver ao debate a profundidade e a sinceridade que ele tinha em seu princípio.
O futebol brasileiro
Quando levantamos o debate sobre uma cultura futebolística própria do Brasil, apontando inúmeras afinidades conceituais entre os grandes times da história do nosso futebol (dos clubes e da Seleção) e traçando uma linha do tempo do desenvolvimento do futebol brasileiro, a primeira resposta (praticamente automática) que aparece é: “mas não há só um Brasil! Não há uma cultura brasileira única, quem dirá uma cultura futebolística unificada exclusiva do Brasil!”. O famoso discurso dos vários “Brasis”, que seria um questionamento interessantíssimo se, mais uma vez, não fosse completamente esvaziado de conteúdo pela lógica das redes sociais.
Endereçando isso da forma adequada: José Murilo de Carvalho, cientista político e ex-professor da UFMG e da UFRJ que lamentavelmente nos deixou no ano passado, aponta que a formação da identidade brasileira foi marcada por um alijamento do povo, isso é, o conceito de identidade brasileira, modelada e remodelada ao longo dos séculos, sempre foi concebido sem a participação do povo, a partir apenas de uma elite restrita. José Murilo de Carvalho aponta 3 momentos nesse processo: o primeiro, que passa por uma negação do povo e uma valorização apenas das belezas naturais do país e do indígena não como uma pessoa, mas como parte da paisagem tropical brasileira; o segundo, que passa por uma visão negativa do povo, princípios positivistas e afinidade com a América do Norte; e o terceiro, que passa por uma visão paternalista do povo, um rompimento com a afinidade com a América do Norte e um resgate de tradições monarquistas. Em todos esses processos, o povo era apenas um instrumento da elite, e nunca um participante ativo na formação do Brasil como conhecemos. É preciso compreender até que ponto aquilo que entendemos como Brasil é influenciado pela cultura artificial manufaturada por uma elite secular e a partir de onde é o que nós, enquanto povo, construímos por nós mesmos, em paralelo a esse movimento elitista. Por quais motivos um gaúcho do sul do Rio Grande do Sul se identifica mais com alguém do norte de Roraima, a milhares de quilômetros de distância, do que com um uruguaio da cidade vizinha logo após a fronteira, que consome a mesma comida, ouve as mesmas músicas etc. A formação de uma cultura nacional é algo muito mais sutil do que pode parecer: uso de exemplo o interminável conflito nos Balcãs e o famoso vídeo de, salvo engano, soldados sérvios e bósnios onde se diz: “brincamos nas mesmas ruas, fomos às mesmas escolas, namoramos as mesmas garotas, mas eu fumo charutos sérvios e eles fumam charutos bósnios, portanto, estamos em guerra”. Apontar as diferenças entre as regiões do Brasil é tão importante quanto identificar aquilo que as une.
Acontece que, como brilhantemente apontou Felipe Lemos em seu texto “O óbvio precisa ser dito“, a discussão dos vários “Brasis” não surgiu para valorizar a pluralidade cultural do Brasil nem para combater o apagamento das culturas do Nordeste e do Norte e a importância delas para o futebol brasileiro, mas sim para negar que exista algo que nos una como nação. “Confunde-se o fato de nossa cultura ser heterogênea e diversa”, diz Felipe, “com ausência de identidade. É dizer que não posso me reconhecer enquanto brasileiro para além do local de nascimento. É dizer que não tenho nada em comum com meu amigo paraense para além da língua falada”. Felipe sintetiza o real propósito por trás desse tipo de argumento ao dizer “em outras palavras, enfraquecer nossos laços e abrir caminho para o atropelamento pela cultura europeia”.
O que eu acho curioso é que, as mesmas pessoas que dizem que o que defendemos como cultura do futebol brasileiro não existe e não representa o Brasil, nada falam quando alguém do quilate de Matthias Sammer vai a público dizer que o futebol alemão perdeu sua identidade, ou quando Hansi Flick diz que a Alemanha não forma mais o perfil tradicional do futebol alemão. Ora, dizer que a cultura alemã estava sintetizada no futebol praticado pela Seleção Alemã e pelo Bayern na década de 70 não seria renegar os diferentes estilos que existem no país, inclusive o jogo mais fixo e de marcações individuais que deu à Alemanha o título da Copa de 90? Tuchel, um treinador de identidade mais posicional, não seria alemão, já que a cultura alemã só é aquela dos anos 70, fundada por Hermut Schon e Udo Lattek? E quando tratam o Jogo de Posição como a cultura do futebol holandês? Não há um apagamento do pragmatismo holandês? E quando a Argentina reivindica “La Nuestra” como sua cultura de futebol? O bilardismo e o bielsismo deixam de ser identificados com a cultura do país? E quando falam do Jogo de Posição como algo culturalmente identificado com a Espanha, – para deixar claro, não é – a tradição de La Fúria e a influência sul-americana no Real Madrid são automaticamente descartadas?
Pluralidade cultural, dentro e fora do futebol, existe em todos os lugares do mundo, o que não significa que não possa existir uma unidade nacional nos países – mais uma vez, dentro e fora do futebol. Quando se pensa na Holanda, se pensa em Jogo de Posição – o que não significa dizer que o pragmatismo futebolístico não seja uma escola válida, identificada e própria do país. Dizer que o futebol argentino tem sua base em La Nuestra não é recusar a identificação com a cultura argentina das outras perspectivas apresentadas pelo bilardismo e pelo bielsismo. Defender que o futebol alemão deve voltar às suas raízes não quer dizer erradicar a influência guardiolista no país nem expulsar aqueles mais adeptos do futebol alemão mais cético dos anos 90. Reconhecer certa ligação entre a Espanha (na verdade, a Catalunha) e o Jogo de Posição não é apagar a importância da Fúria, cultura futebolística basca, e do movimento contracultural puxado pelo Real Madrid nos anos 50. Apontar uma unidade nacional, um ponto em comum dentro da cultura de um país, não é apagar suas nuances e contradições – pelo contrário, é ressaltá-las, valorizá-las.
Quando defendemos a existência de uma escola brasileira de futebol, não estamos dizendo que há um único estilo jogado por todo o Brasil, durante toda a história, e que só ele deve ser praticado e reproduzido – estamos apontando que houve a construção de uma linha conceitual no futebol, sedimentada no futebol de rua, cultivada no Rio de Janeiro e que se diversificaria para todo o Sul-Sudeste entre os anos 30 e 60, se desenvolvendo entre os anos 70 e 90. A partir disso é que começamos a apontar semelhanças e diferenças. É muito comum associar a escola carioca à ludicidade e técnica e a escola gaúcha a fisicalidade – então, apontar que times como o Internacional de Ênio Andrade e o Grêmio de Renato Portaluppi, como lembrou Felipe Lemos, jogavam mais a partir da superioridade técnica que física é negar a existência da escola gaúcha? Ou é celebrar a pluralidade do nosso futebol? Luiz Felipe Scolari, um treinador profundamente identificado com a escola gaúcha de transição e jogo físico, disse, em sua homenagem a Zagallo, que “perdemos nosso professor”. Tratar Zagallo, um treinador importantíssimo no desenvolvimento do ataque funcional a partir da técnica, como diz @jozsefbozsik em seu texto “Zagallo fundou o futebol brasileiro“, como o “professor” de todo o futebol praticado no país, não é apagar outras culturas, como a cultura futebolística do próprio Felipão – é reconhecer a importância de Zagallo na criação de um cerne conceitual (ataque funcional, movimentos, diagonais ofensivas e defensivas etc.) que, por sua vez, originou manifestações diversas e expressões muito únicas e vinculadas a regiões específicas. Treinadores mais céticos, menos românticos e ligados ao jogo de toque curto e imposição física, como Felipão, Joel, Abel Braga etc. trabalham diversos conceitos desenvolvidos por Zagallo: todos praticam ataque funcional, trabalhavam a bola pelo movimento dos jogadores, construíam times assimétricos e cheios de diagonais, mas o faziam a partir de passes longos e imposição física, e não por toques curtos e imposição técnica. O princípio é o mesmo – a identidade nacional – mas, a partir desse princípio, cada região desenvolve seu próprio estilo. Tais diferenças podem existir dentro de um mesmo clube: o São Paulo, por exemplo, lida com a diferença entre a tradição mais identificada com Cilinho e Telê, de jogo mais alegre, leve, lúdico, estético e técnico, e a tradição mais identificada com Poy e Muricy, sedimentada na virilidade, jogo físico, valorização da vitória acima de tudo etc. Celebrar um não é apagar outro.
Fernando Diniz e o novo-velho futebol brasileiro
Centro de debates intermináveis, Fernando Diniz, de um jeito ou de outro, mudou o jeito que se discute futebol no Brasil, começando a trazer alguma profundidade para o debate construído aqui. Quando Diniz alcançou uma certa relevância dentro do futebol brasileiro, principalmente após sua primeira passagem no Fluminense e seu trabalho no São Paulo, a discussão começou rasa como costumava ser. O debate construído na imprensa ainda era muito pautado na dialética jogo curto, lento e pausado x jogo vertical, físico e alongado. Desconsiderava-se as nuances das organizações a partir do espaço e do tempo, do verdadeiro significado de verticalidade, e tudo se organizava como uma divisão entre guardiolistas, aqueles que gostam da bola e trocam passes curtos, e kloppistas, aqueles que contra-atacam com velocidade, verticalidade e intensidade. Guardiola x Klopp. Zidane x Simeone. Telê x Felipão. Menotti x Bilardo. Pode haver mais ou menos iniciativa em um ou outro, mas, no todo, o treinador sempre caía em uma das caixinhas. Isso cria aberrações como colocar numa mesma caixa Telê e Cruyff, como se houvesse uma forte afinidade conceitual entre os dois, já que ambos os treinadores gostam de trabalhar a posse de bola com toques curtos. Nesse cenário, as comparações entre Diniz e Guardiola floresceram – num lugar onde só se debate gostar ou não da bola, parece automático aproximar os dois treinadores. A discussão sobre Diniz se reduzia a debates sobre a “saidinha” – uma saída de bola muito curta, sempre de pé em pé, nunca usando o chutão, e os perigos que ela traz. Felizmente, Diniz não demoraria para mudar o foco do debate para uma questão mais profunda.
“Por conta de gostar de ter a bola, obviamente as pessoas me associam ao jeito do Guardiola jogar, mas para aí. Porque a maneira dele ter a bola é quase o oposto da maneira que eu tenho a bola. (A maneira do Guardiola) É um jogo posicional, que se chama hoje, os jogadores respeitam muito a posição e a bola vai no espaço. […] Os jogadores obedecem um determinado espaço pra ficar. Quem tá do lado direito, tá do lado direito e quem tá do lado esquerdo, tá do lado esquerdo, e eles movimentam dentro daquele espaço e a bola chega naqueles espaços. […] E o jeito que eu vejo o futebol nesse momento é quase que aposicional. Os jogadores conseguem migrar mais de posição, o campo fica mais aberto e o jogo fica mais livre. Em determinado momento, a gente pega e se aproxima em determinados setores do campo, e mesmo naquele setor do campo tem troca posicional” – Fernando Diniz.
Diniz incendiava um debate ainda incipiente no cenário nacional: há mais de um jeito de ter a bola, de trabalhar a bola. Dois times podem gostar de ter a bola, mas trabalhá-la de maneiras opostas. Um time posiciona seus jogadores em determinadas zonas e move a bola entre essas zonas, movendo mais a bola do que seus jogadores: é o ataque posicional ou ataque por zona, pois os times atacam a partir das posições dos jogadores, das zonas ofensivas que eles ocupam. Aqui, a prioridade é a posição, e a função, isto é, o que o jogador faz com a bola, é algo secundário em relação ao espaço que ele ocupa.
“O que se move é a bola. Parece que os jogadores se movem, mas o que se move é a bola. As pessoas acreditam, ‘olha, como eles se movem’. Não. O que se move é a bola. Todo mundo tem que estar nas posições. Quando nos movemos muito, não é bom. A bola vem até onde estamos, nós não vamos até onde está a bola para buscá-la. É completamente diferente” – Pep Guardiola.
O outro time, por sua vez, trabalha a bola a partir das funções dos jogadores, isto é, o que eles fazem em campo. Seus movimentos, suas relações de mobilidade. Mais importante que onde o jogador está é o que o jogador está fazendo, como está se movendo, porque aqui as posições são secundárias em relação aos movimentos do jogador. Se um lateral faz uma diagonal defensiva quando está do lado oposto da bola, mas passa no corredor quando está do lado da bola; se o volante recua para receber a bola dos zagueiros e depois passa adiante depois de tocar a bola para alguém, infiltrando; se um ponta faz uma diagonal para se aproximar da zona da bola; se um jogador se desmarca para apoiar o homem da bola e outro se desmarca para romper a linha defensiva; o que importa aqui são os movimentos, o que os jogadores fazem ao redor da bola. Trabalhar a posse pelos movimentos.
Agora, jogar futebol vai além de ter ou não a bola, mas também como ela é trabalhada – @jozsefbozsik sugeriu uma divisão em 4 macrotipos de treinadores. Primeiro, há os treinadores de movimento, funcionais, isto é, criar espaços a partir dos movimentos e explorar tais espaços a partir da qualidade técnica de seus jogadores. Então, há outros treinadores que criam espaços pelos movimentos, mas que exploram tais espaços a partir da força e da capacidade física. Do outro lado do espectro, há treinadores de posições, isto é, que racionalizam os espaços para então aproveitá-los a partir da qualidade técnica. Por fim, há outros treinadores de posições, mas que racionalizam os espaços para aproveitá-los a partir da força e capacidade física. Entre os treinadores funcionais de qualidade técnica, há Diniz, Telê Santana, Zagallo, Luxemburgo, Ancelotti e Jorge Jesus. Entre os treinadores funcionais de força física, estão Felipão, Simeone, Klopp, Flick, Lattek e Bilardo. Entre os treinadores posicionais de qualidade técnica, estão Guardiola, Cruyff, Van Gaal, Luis Enrique e Xabi Alonso. Entre os treinadores posicionais de força física, estão Mourinho, Abel Ferreira, Vítor Pereira, Southgate e Arrigo Sacchi.
Acho que está claro que, entre os treinadores que enumerei em uma mesma categoria, há um oceano de diferenças. Por exemplo: Klopp, Flick e Lattek são treinadores muito mais proativos que Felipão, Simeone e Bilardo, são mais ofensivos, muitas vezes têm maiores números de posse de bola e até preferem jogadores mais talentosos em seus times, vide Klopp e Flick com Thiago Alcântara e Lattek e Lattek com Breitner e Beckenbauer. Mas o jogo de futebol é composto de uma série de fatores e variáveis, e estamos falando aqui estritamente de organização ofensiva. Claro que, como os treinadores alemães gostam de pressionar mais do que os sul-americanos, os times alemães terão mais a bola, mas isso não significa que eles buscarão trabalhar a bola a partir da qualidade técnica. Felipão e Klopp são muito diferentes, mas, quando se analisa o modo que os times de ambos trabalham a bola, percebe-se que tanto Felipão como Klopp preferem organizar seus times a partir dos movimentos e explorar os espaços pela força física. É uma semelhança conceitual da organização ofensiva, não quer dizer que são treinadores idênticos. O mesmo pode acontecer no inverso: será que Diniz é mais próximo de Cruyff ou de Felipão? Os times de Diniz tocam curto, privilegiam a qualidade técnica e abominam passes longos e disputas físicas como Cruyff, mas movem seus jogadores e criam espaços por movimentos como Felipão. Não há uma resposta pronta: a graça é justamente ver como treinadores são próximos em certos conceitos e distantes em outros.
Com essa distinção feita, começa outra confusão – o que significa, exatamente, ser um time de qualidade técnica, toque curto e bola no pé e o que significa, de fato, ser vertical. Depois de dividir os treinadores entre os que atacam por posição e por movimento e aqueles que exploram espaços por qualidade técnica ou capacidade física, é fácil perceber que a maioria dos treinadores do futebol brasileiro – e os mais identificados com nossa cultura – estão na categoria de treinadores funcionais por qualidade técnica. Flávio Costa, Zezé Moreira, Aymoré Moreira, Vicente Feola, Zagallo, Telê Santana, Ênio Andrade, Carlos Alberto Parreira, Vanderlei Luxemburgo, Rubens Minelli, Cláudio Coutinho etc. são todos treinadores (uns mais, outros menos) identificados com uma forma de jogar que abre espaços em campo pelos movimentos e os explora pela qualidade e refino técnico de seus jogadores. Na prática, isso significa que os times desses treinadores buscavam aproximar mais os jogadores, reduzir as distâncias entre eles, jogar com toques curtos e tabelas por dentro, sem forçar bolas longas, passes esticados e jogadas pelas pontas que exigiriam que a capacidade física dos jogadores fosse mais determinante que a qualidade técnica. E é aí que começa a confusão: muito por causa da influência dos times de Guardiola, associa-se muito um jogo mais técnico, curto e refinado a uma posse de bola lenta, embora a história do nosso futebol nos mostre o contrário.
O vídeo acima mostra uma partida da Seleção Brasileira de Luxemburgo contra a Argentina em 1999. Observe como, na maioria das jogadas, o Brasil cruza o campo muito rapidamente. Não são contragolpes, mas jogadas de pé em pé que começam do meio-campo para trás, mas que chegam ao gol com muita velocidade. No entanto, não são lances de passes longos ou bolas esticadas, mas sim de tabelas em progressão a partir de toques muito curtos. A velocidade é imprimida no jogo a partir de um dinamismo elétrico na troca de passes: um jogador passa e imediatamente se desloca para receber; os jogadores ao redor temporizam os desmarques de apoio e ruptura; e os passes sempre iam para frente, buscando o jogador que se deslocou para receber. Um jogo vertical, mas completamente sedimentado em toques curtos e tabelas em progressão: essa era o paradigma do futebol brasileiro nos anos 90. Verticalidade não significa necessariamente um jogo físico e alongado; claro, Felipão e Klopp são verticais desse modo, mas os times de Luxemburgo são verticais sem abrir mão de um jogo curto e técnico. A verticalidade é construída a partir das conduções de bola, das tabelas em progressão e da ótima temporização dos desmarques, incentivando o time a sempre passar a bola para frente. Ancelotti, Jorge Jesus e Renato Portaluppi são bons exemplos de treinadores que usam um conceito similar de verticalidade. Ao ver o espaço, ataque-o, mas ataque-o pela técnica, pelo toque curto e pela tabela. Renato, inclusive, parece um treinador que veio diretamente dos anos 90 para os dias atuais: seu uso das tabelas e dos passes para frente para verticalizar as jogadas é muito similar à maioria dos treinadores brasileiros dos anos 90.
A Seleção Brasileira de 1982 era outro time que jogava em toques curtos e jogadas de qualidade técnica, mas que, a partir do uso dos desmarques, do toco y me voy, das ultrapassagens e dos movimentos de apoio e ruptura, sempre oferecia ao portador da bola várias possibilidades de passes para frente. Assim, o time sempre passava a bola para frente, porque os jogadores sempre se apresentavam como opções de passe para frente, permitindo que a equipe ganhasse vários metros em poucos segundos. Vertical, sim, mas sem abandonar a qualidade técnica e os toques curtos.
Por fim, a Seleção Brasileira de 70, a maior expressão do futebol brasileiro como conhecemos, também buscava acelerar as jogadas por toques curtos e tabelas em progressão. Os toques sempre visavam chegar na área, ganhar metros, avançar o time e buscar o jogador mais avançado, mas sem forçar bolas longas e jogadas físicas, sempre de pé em pé. “Quem pede, recebe; quem se desloca, tem preferência” é a síntese do futebol brasileiro: um jogador toca, se desloca e recebe de volta mais à frente e, medindo os desmarques de apoio e ruptura, o time vai sempre buscando o passe para frente. Por isso, há muita confusão quando, por exemplo, Zagallo afirma que a Seleção de 70 jogava com contra-ataque e jogadas ofensivas mais velozes – porque é inconcebível que um jogo de “protagonismo com a bola e muita posse, toque curto e tentativa de atacar” também possa ser rápido e vertical. Daí, também, vem um uso indevido do conceito de “pausa”. Expliquei no Twitter que a pausa não diz respeito necessariamente à velocidade da jogada como um todo, mas sim do ritmo que os jogadores imprimem dentro da duração da jogada. A pausa tem mais a ver com baixar a velocidade da circulação da bola entre posses de bola para entender o tempo de cada jogada, dar mais toques na bola, frear por alguns segundos para interpretar o jogo, e não buscar concluir e dar sequência às jogadas a todo momento. Pode haver pausa em um contragolpe de 15 segundos e nada de pausa em uma longa sequência de posse de bola. Um exemplo: como explicado antes, os times posicionais movem pouco seus jogadores. Para compensar a falta de movimento dos jogadores, a movimentação da bola precisa ser ainda mais rápida; por isso, os times posicionais buscam sempre jogar a dois toques. Um jogador domina e imediatamente passa a bola, sem tempo para pausar, porque frear a velocidade de circulação da bola compromete muito a lógica de trabalhar a posse desses times. Por isso, os times posicionais mais recentes jogam com pouquíssima pausa, embora troquem muitos passes e prolonguem as jogadas: não há pausa entre uma sequência e outra. Em contrapartida, um contra-ataque pode ter pausa quando um treinador permite que seus jogadores toquem mais vezes na bola, controlem o ritmo do contragolpe, façam conduções maiores e soltem a bola no momento certo.
E é daí que vem outra confusão com Fernando Diniz. Como é possível que Diniz, um treinador tão marcado por posses de bola mais longas, muitas trocas de passe, jogadas pausadas e cadenciadas ser identificado com o futebol brasileiro, que é rico em jogadas rápidas e verticais a partir de tabelas velozes e passes curtos para frente? Mais uma vez, há uma confusão ao analisar o conceito por lentes anacronistas. Usarei de exemplo dois times que compartilham uma mesma filosofia, mas que viveram em períodos históricos muito distintos: a Holanda de Rinus Michels e o Manchester City de Pep Guardiola.
Na jogada acima, a Holanda forma uma linha ofensiva de 5 jogadores. Suurbier, o lateral do lado da bola, constrói na base da jogada e forma um triângulo com Rep, o ponta pelo setor, e com o meia mais próximo (Cruyff troca de posição com Neeskens). Então, o time inverte a jogada para o lado oposto menos congestionado, acionando o ponta Rensenbrink. Van Hanegem, o meia mais próximo de Rensenbrink, ameaça a ruptura e a jogada termina num cruzamento rasteiro para o 9, Neeskens. Esses conceitos – linha de 5 atacantes, troca de posição entre os meias, inversão de bola para o ponta aberto, ruptura do meia em profundidade e cruzamento rasteiro para o centro da área – estão presentes em todos os jogos do Manchester City do Guardiola. Remodelados, adaptados, corrigidos para que possam ser reproduzidos no futebol atual, sim, mas a alma desses conceitos ainda está lá. Ninguém questiona que o Manchester City é um time que ataca de forma mais lenta e menos incisiva que a Holanda de Michels, principalmente por questões físicas, mas ambos os times trabalham princípios e conceitos muito próximos – cada um à sua maneira, claro, mas os princípios existem nos dois times.
O mesmo acontece com Fernando Diniz e a cultura brasileira. Diniz não é um treinador transportado diretamente dos anos 90 como Renato Portaluppi e, portanto, a associação dos times históricos do futebol brasileiro com os times de Diniz pode ser menos automática do que a associação com os times de Renato. Renato é de outra época; viveu intensamente o futebol brasileiro dos anos 80 e 90 e começou efetivamente sua carreira de treinador no começo dos anos 2000, nos resquícios finais daquela cultura brasileira, carregando consigo todas as experiências e influências que absorveu durante essa época para toda a sua vida como treinador. Diniz parte de outro lugar: mais de uma década mais novo que Renato, Diniz começou a treinar já nos anos 2010, e seu interesse no futebol brasileiro floresceu menos de ter vivido a era de ouro do nosso futebol e mais por sua capacidade criativa e de identificação da expressão da identidade do povo brasileiro através do futebol.
“Aqui no Brasil a gente tinha, no passado, espaços públicos abundantes, muitos jogadores jogando futebol. O futebol, que tem sua origem na nobreza, aqui no Brasil se popularizou muito, então virou um esporte do povo e um traço muito forte da cultura do país. De alguma maneira, os europeus foram criando condições físicas e táticas para poderem ganhar do brasileiro. Eles começaram a estudar o futebol muito antes da gente, e eles desenvolveram algo pra poder vencer, que sistematicamente era a marcação. Os sistemas defensivos europeus acabaram dificultando muito para que o brasileiro conseguisse ganhar com a facilidade que ganhava. E eu acredito que o erro que a gente cometeu foi beber na fonte do europeu achando que ia resolver o problema do brasileiro, e não é. A gente tem que criar, como foi no passado de uma maneira empírica, agora tem que ser uma coisa mais pensada, como é que a gente vai aproveitar melhor as características dos nossos jogadores e, de maneira mais profunda, do nosso povo” – Fernando Diniz.
Diniz se volta para a cultura brasileira, futebolística ou não, e a estuda de modo a identificar como ele pode, a partir dos seus métodos de trabalho, do seu estilo de jogo e da relação que ele constrói com seus jogadores, tirar o máximo do jogador enquanto jogador brasileiro e cidadão brasileiro. Não inventar um modelo fixo e aplicá-lo com pouca ou nenhuma adaptação ou flexibilidade, mas compreender a cultura do seu povo como um todo e as maneiras que ela encontra para se expressar e, a partir disso, entender o jogador como atleta e como pessoa. Construir um time sedimentado nas raízes culturais, sentimentais, amorosas das pessoas em volta dele.
“Essa pseudo-modernidade que está aí eu não acho um grande avanço para o futebol. Em termos de metodologia, são quase sempre treinos muito curtos e muito intensos, enquanto eu faço treinos intensos, mas longos. Alguns dos meus treinos não têm tanta intensidade e são mais longos ainda. Muita gente trabalha só em espaço reduzido, enquanto eu uso o campo todo em muitos trabalhos. E trabalho muito nessa vertente do contato com o jogador, que acho que hoje em dia está cada vez menor. De saber como melhorar o jogador, o que acontecia muito mais no passado do que hoje. A gente ainda produz muitos bons jogadores, mas menos do que poderia. Hoje tudo se resume ao tático, à superficialidade do jogo. É linha de quatro, bloco baixo, bloco médio… As pessoas aprendem meia dúzia de termos específicos, que vão mudando conforme as publicações a respeito do futebol vão saindo, e vamos perdendo o coração do futebol. O futebol, para mim, tem muito a ver com a vida. Então, quando a gente só analisa a parte tática, é difícil. As relações humanas que se estabelecem em um time de futebol estão muito à frente da parte tática. As pessoas são o coração do futebol, não a tática.” – Fernando Diniz.
Na prática, Diniz bebe da fonte do futebol brasileiro das décadas passadas. O treinador mais próximo conceitualmente de Diniz talvez seja Telê Santana, artífice de times como a Seleção de 82 e o São Paulo bicampeão mundial, expressões máximas da nossa cultura futebolística. Diniz entende o valor do que foi construído antigamente – como ele mesmo disse, de uma forma empírica, a partir dos espaços públicos abundantes – principalmente pelo sucesso que o futebol brasileiro teve, entre 1958 e 2002, de ser absolutamente vencedor a partir das características do jogador e do povo brasileiro. Mas, ao mesmo tempo, Diniz entende que o futebol mudou e já não é mais o que era antes. Obstáculos que antes eram determinantes não existem mais, e obstáculos que antes inexistiam agora são determinantes. O futebol moderno tem outras exigências, apresenta outros desafios – não necessariamente melhores, piores, mais ou menos complexos ou difíceis, apenas diferentes – e exige outras ferramentas para o triunfo. Desse modo, mais importante que copiar os métodos de antigamente, Diniz busca entender de onde eles vieram, qual os conceitos por trás deles, para que ele possa remodelá-los e adaptá-los para o futebol de hoje, e não absorver cegamente a influência que vem da Europa. Do mesmo jeito que o Manchester City de Guardiola executa de jeito diferente os mesmos conceitos da Holanda de Rinus Michels, Diniz busca modernizar e adaptar conceitos que sempre existiram no futebol brasileiro. É fácil identificar os conceitos que sempre reinaram no futebol brasileiro nos times de Diniz: o ataque funcional a partir da qualidade técnica, jogadores próximos da zona da bola, diagonais longas do ponta do lado oposto, lateral do lado oposto em diagonal defensiva, os desmarques constantes de apoio e ruptura, as diagonais ofensivas, os toques curtos, as conduções de bola, as tabelas em progressão etc.
Mas Diniz promove alguns ajustes em tais conceitos. Seus times fazem movimentos muito longos, mas medem mais as explosões e a velocidade das tabelas, buscando um jogo mais lento e trabalhado e que demora mais até chegar às zonas mais perigosas do campo. Se figuras como Zagallo e Dunga iam a público abominar o toque para trás ou para o lado, Diniz não se importa em recomeçar as jogadas com mais calma se for necessário – contudo, sem abrir mão do dinamismo das tabelas em progressão. Além disso, Diniz provavelmente é um dos treinadores mais radicais da história do Brasil no uso de aproximações, radicalismo esse mais identificado com o futebol argentino do que propriamente com o brasileiro. Diniz aproxima muito mais que Telê ou Luxemburgo, seus jogadores fazem diagonais mais longas e atravessam espaços maiores para reduzir ao máximo a distância até a bola, usando muito as aproximações na linha lateral. Como consequência, os times de Diniz jogam ainda mais curto que a tradição do futebol brasileiro. Do mesmo jeito que Zagallo pegou a tradição das diagonais de Flávio Costa e construiu o ataque funcional à brasileira, e nomes como Luxemburgo e Telê Santana desenvolveram o ataque funcional de Zagallo ao ampliar a complexidade dos movimentos, Diniz resgata as tradições, entende de onde elas vieram, reconhece o valor de cada uma e as assimila de modo a construir um futebol tão brasileiro quanto moderno.