GUARDIOLA, VALDANO E A TENTAÇÃO DO DEMIURGO

Butragueño, Guardiola e Valdano
Butragueño, Guardiola e Valdano

Em “The Comedy of Errors”, Shakespeare escreve deliciosamente que “a liberdade indócil é domada pela própria desgraça”. O escritor inglês está estabelecendo um paradoxo entre o inescapável livre-arbítrio e o medo dessa liberdade.

Sabemos que o livre-arbítrio sem restrições legais ou morais logo se converte em tirania. Tenho livre-arbítrio para decidir se vou matar o meu inimigo, mas sem regras que limitam ou punam essa vontade, estamos na “lei do mais forte”.

Por isso, abdicamos da liberdade absoluta para viver em sociedade (ordem). Essa relação entre o livre-arbítrio e a ordem estimulou milhares de questões e de respostas.

Podemos definir essa relação entre liberdade e ordem em dois sentidos: a) o ontológico; b) o histórico-cultural. O argumento ontológico é aquele que não muda com o tempo. O histórico-cultural é aquele que varia com a dimensão do tempo.

A relação entre a liberdade do jogador e a ordem coletiva é um elemento ontológico do jogo, que será encontrado em qualquer lugar e tempo. No entanto, o tipo de relação entre liberdade e ordem varia em cada lugar e tempo — a sua dimensão histórica e não ontológica.

Para entendermos o diálogo entre Valdano e Guardiola, fiz essa introdução. Valdano trabalha na dimensão histórico-cultural ao perguntar se no futebol de hoje o livre-arbítrio do jogador não está sendo negligenciado em prol de uma ordem exasperada e autoritária.

Pep chama a ordem de “método” e o define como todos reconhecerem o que está sendo feito em campo, pois a liberdade absoluta seria o caos (argumento ontológico). No entanto, Valdano fez um questionamento histórico, partindo da premissa socialmente aceita que o futebol de hoje sempre guarda alguma diferença com o de ontem. Inicialmente, Guardiola se protege da pergunta como técnico do futebol atual ao defender a existência da ordem (argumento ontológico), mas como ele ainda precisa atacar a questão, opera a passagem do ontológico ao histórico ao afirmar: “No futebol moderno, jogar assim (sem ordem ou método) seria o caos”.

Ele estabelece uma divisão: a) o futebol moderno; b) o não-moderno. No “moderno”, o método seria necessário; todavia, no “não-moderno” não seria. Logo, a primeira contradição: o método deixa de ser necessário no futebol e passa a ser necessário apenas no “futebol moderno”.

A partir daqui, Pep não para de operar mais na dimensão histórico-cultural e começa a defender o seu ponto de vista: “Players can’t have the freedom to make decisions in each moment without having the collective direction”. (“Os jogadores não podem ter liberdade para tomar decisões a cada momento sem que haja o direcionamento coletivo”).

Para ele, o método seria uma direção coletiva que está acima (Henry que o diga em 2008 ao ser substituído) e orienta a decisão do jogador. O objetivo do método é dar segurança ao jogador diante da incerteza do jogo. Ou seja, é resolver o medo do desconhecido.

Retorno a Shakespeare: para Guardiola, a liberdade é mais medo da autonomia da vontade do que desfrute do livre-arbítrio, é medo de ser livre, pois “a liberdade indócil é domada pela própria desgraça”. No final de seu argumento, Guardiola deixa claro como vê a relação entre o livre-arbítrio e a ordem. No entanto, trata como necessidade e não escolha: “We want to give players the security that what will happen they will be able to solve it”. (“Queremos dar aos jogadores a segurança de que serão capazes de solucionar o que ocorrer”).

Recentemente, Grealish falou que Pep não gosta que percam a bola, então preferia uma jogada mais segura do que arriscar. Eles vão ao campo com uma lista de instruções na cabeça sobre o que fazer, o que não-fazer, como operar, como reconhecer o mecanismo e dar prosseguimento. A visão de ordem de Pep Guardiola possui um fundo histórico-cultural que contorna certo futebol holandês e inglês e que guarda — às vezes de maneira subconsciente — a formação religiosa e cultural do lugar.

Calvino argumentava que, pelo ser humano ter perdido a liberdade com o pecado original, estávamos presos entre as correntes do pecado, e só a graça (pela ação ou movimento de um demiurgo) pode libertar ao escolher os “seus”. A igualdade formal entre os homens é estabelecida, mas esta ordem funciona como um demiurgo que disciplina os corpos e os gestos, hierarquiza a sociedade, e transforma a vida pública em performance social.

O Império Britânico na era vitoriana foi um exemplo desse processo de fundação da liberdade civil por uma ordem hierárquica, disciplinadora e socialmente performática. Nesse mundo anglo-saxão, a ordem não é um limitador de nossos desejos, mas funda a liberdade civil ao conceder direitos e deveres para que o mais forte não impeça o exercício do livre-arbítrio. A ordem que nos bate com a pata do poder seria também uma garantidora de nossa liberdade, limitada — em tese — apenas pelas leis e não pela vontade do soberano (liberdade negativa).

Com o tempo, esse conceito de liberdade será estendido com a ação garantidora do Estado (liberdade positiva). O que importa é que nesse mundo anglo-saxão, a monarquia é a memória e a política é o demiurgo que cria a ordem produtora da liberdade civil.

A maneira como Pep enxerga a relação entre o livre-arbítrio e o método carrega essa visão cultural. O técnico é um demiurgo que salva os seus jogadores da incerteza, e implanta uma imaginação coletiva que deve ser seguida através dos seus mecanismos. É essa ordem implementada pelo demiurgo que SALVA OS SEUS do caos e da desordem, ou seja, da prisão da incerteza do pecado original. Sem saber, a visão da ordem de Pep carrega fortes elementos da ideia de predestinação e da tentação do demiurgo.

Apesar da admiração mútua, a cultura e o subconsciente de Valdano foram formados noutro lugar. Agostinho dizia que o livre-arbítrio em buscar a verdade sobre si e as coisas era o primeiro bem mesmo que incorresse em erro.

Por isso, nas Confissões, Agostinho abraça o erro quase como um processo de autoconsciência e não como um cárcere imóvel. A ordem não é mais um demiurgo moral, mas uma negociação flexível entre cada indivíduo por causa da liberdade interior.

Na Argentina, como em toda América, uma cultura híbrida construída no contato entre povos, estabelece negociações violentas, mas também margeadas de resistência, criando linhas de fuga e flexibilidade.

A nossa ordem é de gestos incontidos e extravagantes. No mundo anglo-saxão, há uma série de coisas que não devem e que devem ser feitas, e você é livre só a partir daqui. Na América Latina, a ordem podemos ter uma grande lista formal do que pode e do que não pode, mas – no fim – tudo se negocia. Essa negociação pode ser para o mal como encobrir um poderoso, ou para o bem quando protege a resistência do mais fraco diante de um contexto injusto. Aqui fica mais claro a dimensão histórico-cultural dessa relação entre liberdade e ordem.

Vejo duas dimensões importantes p/ entender essa relação: a liberdade corporal e a liberdade de decisão. Algumas ordens necessitam de grande disciplina corporal e contenção dos gestos, uma profunda racionalização de onde estar e do que fazer com admitiu o próprio Guardiola.

Aqui, o demiurgo tem poder sobre os corpos. As ordens mais funcionais necessitam de grande capacidade para se movimentar, abrir espaços vazios, ler esses espaços e invadi-los. Aqui, a ordem traz grande flexibilidade para os movimentos dos corpos, exige negociação.

Recentemente, o argentino Zaracho deixou essa distinção bastante clara: “Com Sampaoli não me sentia confortável por causa do estilo. Ele queria que eu fosse mais posicional. Quando veio o Cuca, tive mais liberdade para ir procurar os espaços da bola, lançar diagonais”.

A liberdade de decisão é outro aspecto. Fàbregas e Eriksen afirmam que com Conte tudo era questão de seguir o que já estava pré-definido, enquanto que com outros treinadores podiam usar mais da sua intuição para decidir no momento.

Declaração de Cesc Fabregás sobre Antonio Conte
Declaração de Cesc Fabregás sobre Antonio Conte.

Não faz sentido discutir se há liberdade em Guardiola, pois a indisciplina é também parte do livre-arbítrio. Mais interessante é abordar as relações entre liberdade e ordem a partir da LIBERDADE DO CORPO E DA MENTE. A partir disso, perceber que existem ordens mais flexíveis.

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